Barraco onde dormiam parte dos trabalhadores da fazenda Nossa Senhora, incluindo o adolescente Pedro |
“Nem estudei um ano direito. Não dá tempo, a gente fica trabalhando direto! Só sei assinar o começo do meu nome. O sobrenome, não sei fazer ainda”. Pedro (nome fictício, para preservar a vítima) foi encontrado por uma equipe do grupo móvel de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego na fazenda Nossa Senhora Aparecida, em Goianésia (PA), em 29 de novembro. Havia três meses estava no “roço da juquira”. Retirava arbustos, ervas daninhas e outras plantas indesejáveis para garantir o bem-estar do pasto e dos bois.
Do alto de seus 16 anos, é homem formado pela necessidade e trabalha para ajudar a mãe, viúva. Morava em um barraco de lona, amontoado com outros companheiros, no meio do pasto. A água do pequeno lago, formado por um córrego que passava ao lado ao alojamento, servia para matar a sede, lavar roupa, tomar banho e preparar a comida. Carne só de caça, quando um cabra bom de mira conseguia acertar algum tatu, paca ou macaco.
3 mil cabeças de gado pastam na fazenda, que se espreguiça por cerca de 7,5 mil hectares de terra – parte dela não regularizada |
Enquanto isso, mais de 3 mil cabeças de gado pastam na fazenda, que se espreguiça por cerca de 7,5 mil hectares de terra – parte dela não regularizada. O proprietário, Aloísio Alves de Souza, ainda afirmou que possui outra fazenda na região, com mais 1,5 mil hectares e outras 800 reses. “Tem vez que a gente passa mais de mês sem carne”, lembra Charles Monteiro, outro peão que, havia oito anos, prestava serviço na fazenda.
A ação do governo contou com a presença do Ministério Público do Trabalho e da Polícia Federal. Andar com a polícia é fundamental para fazer valer a lei nesse mundo de chão, onde, no melhor estilo dos faroestes americanos, fala mais alto quem tem o argumento de uma arma de fogo. Aliás, na sede da fazenda, a PF encontrou dois revólveres 38 e dois rifles, calibre 20 e um 12 de repetição, além de farta munição. Como as armas não possuíam registro, Souza teve que acompanhar os policiais até a delegacia da cidade para ser lavrada uma ocorrência. Os trabalhadores tinham medo dos argumentos do patrão, que havia imposto até um toque de recolher. Sob a justificativa de impedir assaltos, proibiu que qualquer pessoa ultrapassasse a porteira da fazenda à noite. O peão que desobedeceu a ordem conta que foi recebido a balas.
As 37 pessoas libertadas nessa fazenda receberam R$ 61.563,37 em direitos trabalhistas pagos pelo proprietário. Após a fiscalização, Aloísio teria ido ao hospital, com pressão alta, após um súbito mal estar. No sábado, antes de saber o valor, ele estava bem de saúde. Contava que chegou na região em 1972, para “desbravar”.
Auditor do MTE fiscaliza barracão no meio da mata na fazenda Nossa Senhora Aparecida |
“Minha fazenda não é diferente das demais”, diz. Aloísio sabe que as condições de trabalho não são ideais, mas explica que mantém os funcionários por ser uma boa pessoa: “O coração fala mais alto. Pessoas chegam aqui, pedindo pelo amor de Deus que lhes dêem um emprego”. Um peão libertado não concorda com essa bondade explícita: “É, quando ele tá de bom coração, até dá carona até a cidade [distante dezenas de quilômetros, boa parte por estrada de terra]. Quando não, diz que é para a gente ir a pé mesmo. Ele diz que é um homem educado. Pela ignorância que trata nós, parece que não”.
Ao todo, foram 57 pessoas resgatadas nas três fazendas visitadas pelo grupo móvel de fiscalização em Sapucaia, Ourilândia do Norte e Goianésia, Sul do Pará, em ação iniciada no dia 25 de novembro e finalizada neste dia 03. Esta reportagem acompanhou a equipe para mostrar de que forma um trabalhador se torna cativo do dia para a noite, como é possível libertá-lo e a dificuldade no combate ao trabalho escravo no Brasil.
Em outra fazenda vistoriada, a São Luiz, em Ourilândia do Norte, de propriedade de Luiz Antônio Sacarelli* (leia nota abaixo), foram resgatadas duas crianças: Andréa e Roberto (nomes fictícios). Sob um calor forte e a poeira da estrada de terra em que foi encontrada, Andréa diz que fazia a comida dos cerqueiros e limpava o alojamento. Não ganhava nada pelo serviço e nem imaginava que tivesse direito a alguma coisa. Completou 14 anos no mês passado.
Andréa e Roberto, crianças encontradas na fazenda São Luiz, em Ourilândia do Norte (PA) |
Sua mãe morreu no parto do irmão mais novo há sete anos. Depois disso, ela foi “dada” a uma vizinha, pois o pai não tinha dinheiro para garantir seu sustento. Esses anos em casa alheia foram os piores de sua vida: “A mulher que cuidava de mim brigava muito comigo”. As marcas das agressões ficaram, como uma cicatriz no lábio superior, que não combina com o seu sorriso grande e fácil.
O pai acabou pegando-a de volta e, desde então, Andréa o acompanha em todos os serviços. Valdemar Rodrigues da Silva é “peão de trecho”, fazendo um serviço aqui, outro ali, de trecho em trecho, sem rumo ou morada certa. Por isso, ela aprendeu a cozinhar desde cedo e aos cinco já o ajudava. Limpou casas, lavou roupa para os patrões do pai, cuidou de porcos. Por causa das constantes mudanças, Andréa, por quatro anos, entrou em uma escola, mas não conseguiu terminar a série, saindo na metade para acompanhar Valdemar. Hoje, está no segundo ano do ensino fundamental na Escola Municipal Reino da Alegria, no povoado de Fogão Queimado, a seis quilômetros da sede da fazenda. Estuda na parte da tarde, quando o serviço não lhe toma o dia.
Seu primo, Roberto, de 13 anos, ajudava os maiores a puxar arame e levantar mourões. Os cerqueiros estavam havia pouco tempo na fazenda quando a fiscalização chegou. Mas, a situaç&at
ilde;o de exploração já começava a se instalar, com comida como pagamento, alojamentos insalubres e nenhuma previsão de data para o dinheiro chegar. Com a ação do grupo móvel, Andréa recebeu R$ 806, 64, o primeiro pagamento de sua vida, por toda a infância que não teve. Enquanto esperavam o desenrolar da fiscalização, ela e Roberto conversavam sobre a vida. “Meu maior sonho”, diz Andréa, “é o meu pai ter uma casa pra gente aquietá, ficar em um lugar”.
Auditor do Trabalho toma depoimento de trabalhador encontrado em barraco na fazenda São Luiz (PA) |
Já Geraldo (nome fictício) fugiu da miséria do Nordeste na época em que Andréa nasceu. Há 14 anos, rumou em direção às promessas de fartura e prato cheio da Amazônia. Virou peão de trecho. Rodou por garimpos de Minas Gerais, Amapá, Goiás, Pará. Conseguiu ouro, mas não enricou: “Já rodei esse país inteiro”.
Havia seis meses trabalhava na Fazenda São Luiz, sem ver a cor do dinheiro. Só a dívida da comida e dos instrumentos de trabalho que pegava com o gerente, uma conta que aumentava a cada dia: “O gerente dizia que não tinha dinheiro, nem cheque, e que não podia acertar o salário”. Com uma dor de dente que lhe tirava do sério, pediu as contas mais uma vez para ir se tratar na cidade mais próxima. Ouviu outro não.
“Olha, moço, estou esse tanto de anos como peão de trecho e nunca levei tapa de ninguém, nunca fui para a cadeia, nunca tive problema. Essa aqui foi a pior coisa que aconteceu na minha vida”. Geraldo mostra, com indignação, a sua cabana de folhas de babaçu: “Quando tinha época da cheia, só a rede dentro do barraco ficava seca. O resto molhava tudo”.
Geraldo foi libertado aos 53 anos da Fazenda São Luiz e recebeu a maior indenização entre todos os libertados: R$ 4.687. Diz que tem saudades de sua terra. “Faz tempo que a gente quer voltar”. Apesar de ter sido reduzido à condição de não-cidadão por tanto tempo, mantém seu orgulho e quer ganhar dinheiro antes de reencontrar os irmãos: “Voltar para casa pior do que saiu fica ruim”.
São Paulo, dezembro de 2003
*O juiz Carlos Henrique Borlido Haddad, da Vara Federal de Marabá, rejeitou, em primeira instância, as denúncias contra os acusados Luiz Antonio Zapparoli Sacarelli e Luiz Carlos Joaquim de Oliveira, relativos ao caso relatado nesta matéria. A sentença, que se baseou no princípio da atipicidade do crime (uma vez que o flagrante ocorreu antes da última mudança de tipificação do crime de exploração de mão-de-obra análoga à escravidão), foi publicada no dia 11 de março de 2009 no Diário da Justiça Federal da 1ª Região (Ed. 44). O Minitério Público Federal (MPF) já recorreu da decisão.