Especialistas apresentam alternativas à transposição do rio

 20/12/2003

Especialistas discutem alternativas à transposição do rio: para eles, falta gerenciar melhor os recursos hídricos do semi-árido, investindo na conclusão de obras inacabadas, ampliação do acesso e na construção de uma cultura de convivência com a seca

“Levar água para o Nordeste Setentrional, sem alterar as condições de uso dessa água, constitui uma grande aberração”, alerta Aldo Rebouças, especialista em recursos hídricos e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, para quem esse é um dos primeiros aspectos a se destacar na análise do projeto de transposição das águas do São Francisco para outros bacias hidrográficas dos estados do Ceará, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte.

No Brasil, o desperdício médio na rede pública de abastecimento é de 45%. Novas tecnologias permitiriam economizar em torno de 50% da água utilizada na agricultura e o reuso da água nas indústrias também leva a uma economia de 30% em média. Para os representantes do governo federal à frente do projeto, porém, há situações de comprovada escassez de água, que estariam entre as principais justificavas do projeto (Leia também "Projeto de transposição não garante água aos necessitados”).

Rebouças, que é professor titular do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (IG-USP) e pesquisador Associado do Centro de Pesquisas de Águas Subterrâneas do IG-USP ressalta que “é necessário um grande estímulo à conservação de água”, que deveria ser estruturado por meio de “investimentos dirigidos, políticas públicas de Estado e não de governos”.

Canal do Jacaré, Juazeiro, Bahia (Antonio Biondi)

Em linhas gerais, os diversos especialistas entrevistados pela reportagem da Agência Carta Maior para analisar as alternativas para o abastecimento de água no Semi-Árido afirmaram que, antes de se decidir por uma obra desse porte na área de recursos hídricos no Nordeste, é fundamental investir na finalização das obras de distribuição de água inacabadas; na ampliação do acesso à água, sobretudo dos mais necessitados – através de intervenções de baixo custo como cisternas e microbarragens –; e na consolidação de uma nova cultura de uso racional da água e de melhor gerenciamento.

Em sua análise, Rebouças acrescenta a importância de ser realizado um debate mais aprofundado no Semi-Árido e na região da bacia do rio São Francisco acerca de suas respectivas políticas de exportação. A produção de ferro gusa na região do alto São Francisco em Minas Gerais é um dos exemplos de produtos exportados problemáticos. Trata-se de um processo “extremamente danoso ao meio ambiente” segundo Rebouças. E baseado em um modelo no qual os custos sociais e ambientais ficam todos com a região produtora, aumentando os lucros de quem importa o ferro gusa e depois o transforma em outros produtos de maior valor agregado.

O questionamento de Rebouças ao atual modelo de produção agrícola e industrial que marca a região do Semi-Árido foi um dos temas essenciais no Fórum Social Nordestino, realizado em Recife no final de novembro (leia também "Fórum se consolida como espaço de reinvenção da esquerda"), assim como em dois outros encontros da sociedade civil realizados no mesmo mês – a Conferência Nacional da Terra e da Água, em Brasília, e o 5º Encontro Nacional da Articulação do Semi-Árido Brasileiro.

Entre os especialistas ouvidos pela Agência Carta Maior, a necessidade de uma melhor convivência com o Semi-Árido e com a seca, em lugar de um suposto enfrentamento a ambos, também foi destacada de forma recorrente.

Caminho das pedras

O professor José Carlos Araújo, do Departamento de Engenharia Hidráulica e Ambiental da Universidade Federal do Ceará, participa atualmente de uma pesquisa que propõe medidas como prioritárias na gestão da água no Ceará, um dos estados que seriam beneficiados pela transposição. Araújo explica que, a pesquisa tem como objetivo quantificar os custos e avaliar os impactos de cada uma dessas medidas e, ao final “os custos e impactos dessa política que eu, particularmente, defendo, serão comparados com os da política do governo do Ceará desde 2001 até 2006”. O Ceará é reconhecido no Brasil como um dos estados que mais avançaram na gestão de recursos hídricos, mas ainda se destaca especialmente pelas grandes obras, como a construção do Açude do Castanhão, do Canal do Trabalhador e do canal conhecido por Eixão. Nos instrumentos de gestão em geral e na democratização do acesso às obras, os avanços foram mais tímidos do que nas obras.

Entre as medidas destacadas na pesquisa, o professor da UFC ressalta o investimento maciço na gestão da demanda, com incremento tecnológico da agricultura irrigada, programa de reducão de perdas nos sistemas de abastecimento público e estímulo para reuso e/ou reciclagem da água nas indústrias e complexos comerciais. A recuperação de poços construídos e fora de operação atualmente é outra medida defendida na pesquisa. “Somente no Ceará, estima-se que um terço dos poços construídos estejam sem funcionar”, afirma Araújo, acrescentando que essa medida deveria ser acompanhada pela dessalinização dos poços sempre que necessário.

O investimento em infra-estrutura de reuso da agua nos sistemas de abastecimento municipal é outra medida prioritária proposta na pesquisa, junto à construção de cisternas [pequeno reservatório usado para captar as águas da chuva, armazenando-as para uso doméstico e para a agricultura em pequenas áreas] para todas as comunidades rurais não atendidas pelo sistema de recursos hidricos.

Por fim, após avaliar o impacto dessas medidas, “o restante dos recursos financeiros deveria ser voltado para complementar o sistema de oferta ainda não explorado”. Nesse sentido, o professor de Hidrologia e Irrigação da Universidade Federal do Rio Grandedo Norte (UFRN) João Abner explica, entre os estados que seriam beneficiados pelo projeto de transposição das águas do rio São Francisco, “o Ceará apresenta uma oferta potencial de 215 m³/s para atender um consumo atual de cerca de 54 m³/s; o Rio Grande do Norte, com uma população 2,7 milhões de habitantes dispõe de uma vazão garantida de 70 m³/s para atender uma demanda de 33 m³/s. Até mesmo na
Paraíba, o menos dotado de recursos hídricos da região, apresenta-se com um superávit significativo, pois sua disponibilidade é de 32 m³/s para uma demanda de 21 m³/s”

Exemplos concretos

Para Carlos de Oliveira Galvão, professor do Departamento de Engenharia Civil da Universidade Federal de Campina Grande, na Paraíba, um grande equívoco presente no discurso da transposição é que, em geral “assume-se que o Nordeste Setentrional precisa e quer a água do São Francisco. Olhem-se os planos [de investimentos, planejamento e obras] das bacias dessa região e se verá que são superavitárias em água, particularmente para consumo humano”.

Lavadeiras no rio São Francisco, em Piaçabuçu, Alagoas (Antonio Biondi)

O professor afirma que outro grande equívoco refere-se em associar a transposição às pequenas propriedades e comunidades dispersas no meio rural. “Estas, de onde provêm as imagens televisivas das trágicas migrações das famílias sedentas e famintas de nordestinos, não serão atingidas pela eventual transposição”, destaca. Galvão frisa que a transposição trata do aumento da oferta de água em determinadas regiões do Nordeste, “e não do aumento da capilaridade a seu acesso ou melhoria de sua distribuição”.

Galvão acredita que alternativas na linha das propostas acima por José Carlos de Araújo devem ser conduzidas independentes de transposição. “Elas não são excludentes, não são alternativas uma à outra”.

O raciocínio do professor da Universidade Federal de Campina Grande completa-se com a questão: “se temos água, por que padecemos dos impactos das secas? Porque não a gerimos bem!”. Ele se utiliza de uma imagem forte do sertão para a desenvolver a resposta. “É como se usássemos uns poucos baldes para distribuir a água, menos do que o necessário para levá-la a todos. E mais: os baldes são furados!”. Galvão acredita que “a administração cuidadosa e responsável da água, garantindo sua sustentabilidade às gerações futuras, é trabalhosa e não rende obras faraônicas”.

Segundo Galvão, a cidade de Campina Grande, onde o professor também reside, é citada com freqüência como justificativa ao projeto de transposição, “por ter passado nos últimos dez anos por três períodos de forte escassez hídrica”. Galvão destaca que, a despeito dos problemas de escassez enfrentados, a boa gestão da bacia hidrográfica que alimenta o reservatório que supre a cidade, já bastante degradada, a manutenção da rede de distribuição de água sem vazamentos e outras perdas (estimadas entre 30 e 50%), a adoção medidas de redução de desperdício nos usuários residenciais, comerciais, industriais e agrícolas, o aproveitamento da água de chuva, o reúso das águas residuárias, entre outras medidas, reduziriam no mínimo à metade a quantidade de água hoje retirada do reservatório.

O problema se repete na agricultura irrigada, que, na avaliação do professor “ainda é realizada com técnicas não apropriadas ao Semi-Árido, como a aspersão convencional, em que boa parte da água se evapora sem ao menos chegar ao solo”. Galvão destaca que “técnicas mais apropriadas, como a irrigação localizada, ainda não são amplamente utilizadas” e que a economia de água seria enorme com esta mudança”.

Por fim, Galvão acredita que o aparente acesso a água fácil e barata prometido pela transposição é um “soco no estômago” do processo gradativo em que se tenta convencer pessoas, empresas, governos e instituições a assumir a gestão participativa e responsável dos recursos hídricos. Para o professor, “configura um retrocesso grave, principalmente em se tratando de uma região que necessita de uma gestão hídrica bastante eficiente”.

Galvão defende que a toma da de água de outra bacia só deve ocorrer “quando já não há meios de atender às demandas justificáveis de água de uma bacia, e, obrigatoriamente, após implementar todos os recursos de uma gestão eficiente e integrada da oferta e da demanda de água”.

Contextualização regional

“O Semi-Árido nordestino é uma grande região com diversidade de aspectos ambientais e geo-econômicos que diferenciam bastante as soluções para a problemática das secas” em cada município ou localidade, contextualiza o professor João Abner, da UFRN. Em termos gerais, porém, Abner ressalta que a questão do abastecimento humano, bastante precário na região nos períodos secos, em que grande parte da população é atendida por carros pipa, deve ser elencada como a prioridade número um de investimentos públicos.

Para Abner, “a construção de adutoras, a partir das grandes barragens da região, tem se mostrado como a solução mais viável para o abastecimento das cidades e comunidades rurais nos anos secos”. Abner cita o exemplo do estado do Rio Grande do Norte, onde o governo estadual investiu nos últimos anos um total de R$ 250 milhões, com recursos oriundos da privatização da companhia de energia elétrica do Estado, em mais de 1.000 km de adutoras, que abastecem 50% da população potiguar. Abner explica que as adutoras levam as águas do litoral e da barragem Armando Ribeiro Gonçalves, no rio Piranhas-Açu – segundo maior reservatório do Semi-Árido, com capacidade de 2,4 bilhões de m³ –, para a região semi-árida do Estado.

Ao apresentar inúmeros dados que confirmam que a região que seria beneficiada pela transposição apresenta-se com recursos hídricos suficientes para suprir as suas demandas a curto e médio prazo, Abner faz questão de dizer que “o horizonte desse atendimento poderá ser bastante ampliado caso ocorra a implementação de um programa eficiente de gestão de recursos hídricos”.

E a água se vai…

O pesquisador João Suassuna, da Fundação Joaquim Nabuco, é um dos maiores especialistas em recursos hídricos e desenvolvimento do Semi-Árido. Suassuna explica que a cada ano chovem cerca de 58 bilhões de m3 no Nordeste. “Se você captasse um terço desse total, seria possível abastecer toda a população da região e ainda irrigar até 2 milhões de hectares (ha) de terras para agricultura”. Em contraponto a esses dados, Suassuna explica que,
atualmente, o Nordeste possui 700 mil ha em áreas de agricultura irrigada, e a cidade em que vive, Recife, convive com inúmeros problemas de abastecimento.

“Recife está sobre um tesouro de água subterrânea, mas a distribuição de água na cidade é caótica e a perda na rede de abastecimento chega a 45%”, lamenta o pesquisador. Suassuna afirma que seria possível resolver boa parte dos problemas de abastecimento da capital pernambucana reduzindo o desperdício e com a captação racional e organizada dessa água subterrânea. “A cidade tem uma demanda de 14 m3/s, mas a companhia de abastecimento fornece somente 12m3/s”.

E, ainda assim, haveria outras alternativas. “A represa de Pirapama demorou 20 anos para ter suas obras concluídas. Agora, está lotada d’água, mas falta adução para levar até a capital. Essas adutoras já resolveriam o problema de Recife”, registra Suassuna. “E a região de Caruaru poderia ter toda sua demanda atendida com obras de adução para trazer as águas do reservatório de Jucazinho”.

E para quem acha que o quadro de desperdício em Pernambuco – outro estado que teria regiões beneficiadas pela transposição – é único, Suassuna apresenta números definitivos. “Temos cerca de 60 mil poços no Nordeste, e aproximadamente 35% deles já se encontram em situação inadequada de uso”. Suassuna explica que a maior parte do solo do Semi-Árido não possui características que levem à formação de grandes reservatórios de água subterrânea e com boa qualidade para os vários usos – os estados do Piauí e Maranhão concentram 70% das águas subterrâneas do Nordeste. “E nesse quadro, temos regiões no Piauí, como o Vale do Gurguéia, em que os poços de água jorram durante 24 horas ao dia. Agora somente é que começaram a instalar válvulas nos poços”, para controlar a saída de água. Suassuna conclui que, ao se analisar os dados a fundo, o Nordeste tem água para atender suas necessidades. “Falta saber usá-la”.

Lá e cá

Ao longo da bacia do rio São Francisco, as contradições entre oferta de recursos hídricos e situações de dificuldades de acesso, desperdício e má-gestão da água também são recorrentes (leia também “Revitalização carece de verba à altura de sua relevância”), conforme aponta documento elaborado em agosto de 2004 por um grupo de pesquisadores especialistas que fazem parte da Sociedade Brasileira de Pesquisa Científica (SBPC).

Dentre outros pontos, o documento destaca que “(…) Na situação atual existem outorgas de direitos de uso da água emitidas na bacia do São Francisco que comprometem quase toda a vazão não utilizada no presente para usos consuntivos. (…)”, referindo-se ao fato que, dos 360 m3/s apresentados pelo Comitê da Bacia Hidrográfica do rio São Francisco como alocáveis para os vários usos, 325 m3/s já estão autorizados. O documento da SBPC pondera que “(…) Se essas outorgas são respeitadas, nenhum projeto significativo de irrigação pode ser instalado na bacia nem captação para usos externos pode ser efetivada. Os valores outorgados mostram uma situação grave de direitos concedidos em excesso, que precisam ser revistos imediatamente. (…)”.

Para os pesquisadores que elaboraram o documento “(…) quanto ao atendimento das necessidades de água para consumo humano e animal, resta a questão das populações dispersas no Semi-Árido, tanto fora da bacia do São Francisco como no seu interior. Tecnicamente não há como atender esse contingente populacional com água do São Francisco, restando as formas tradicionais (ou um pouco mais inovadoras, para evitar as elevadas perdas por evaporação) de convivência com o semi-árido: cisternas, poços, dessalinização, pequenos açudes, barragens subterrâneas, etc. (…)”.

Dentre seus principais pontos, o documento da SBPC afirma a existência concreta do “(…) projeto de transposição de águas e acenos do governo federal de uma política de revitalização da bacia. A solução dos problemas da população rural difusa em todo o Semi-Árido se resume a um programa de construção de cisternas rurais que transcorre muito lentamente. Urge, assim, a construção de um plano de ação integrada nas duas regiões, com cronograma e fontes de recursos definidos. Os preceitos de prioridades, de justiça social, de racionalidade dos investimentos públicos devem ser obedecidos para o bem do país. (…)”.

Convivência e cooperação

Em artigo publicado na revista “ConViver”, do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), no início de 2004, o presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva escreveu que, na região do Semi-Árido, “o entrave maior ao desenvolvimento não é aescassez de água ou de recursos para investimentos, mas a falta de justiça”. No artigo, o presidente afirma que “A parceria entre Estado e sociedade é essencial para a retomada do desenvolvimento, e isso passa pelo consenso, pela sinergia e pelo compromisso entre todos os que estão envolvidos no processo”.

Um dos principais projetos para a região a gerar essa cooperação entre Estado e sociedade de forma consensuada é o programa “1 Milhão de Cisternas”, que tem na Articulação pelo Semi-Árido (ASA), a principal entidade da sociedade envolvida. João Suassuna explica que uma cisterna de 15 mil litros, por exemplo, pode atender a uma família de cinco pessoas durante os oito meses em que não chove no Semi-Árido. A água da chuva acumulada na cisterna é usada para tudo: cozinhar, beber, lavar, para consumo dos animais e até para a agricultura em pequenas propriedades. As cisternas são construídas com participação da comunidade, fortalecendo os laços entre as pessoas da região e gerando debates e aprendizado sobre como melhorar o uso da água. Para Suassuna, a construção das cisternas é tão importante que não deveria ser vista como uma iniciativa voltada apenas às pequenas cidades e comunidades mais isoladas do Semi-Árido. “Deveria inclusive ser obrigatória nas grandes cidades”.

Para se alcançar a marca simbólica de um milhão de cisternas construídas, que permitiria a melhora das condições de vida de milhões de pessoas no Semi-Árido, seriam necessários investimentos entre R$ 700 milhões e R$ 1,5 bilhão – a construção de uma cisterna custa entre R$ 700 e R$ 1.5 mil.

Segundo informações da assessoria de imprensa da ASA, em 2003 foram construídas 17.721 cisternas no âmbito do programa “1 Milhão de Cisternas” e, até novembro de 2004 o número chegou a 16.966 cisternas &nda
sh; sendo que 11.444 delas contaram com a contribuição do governo federal. Já o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome do governo federal (MDS) informa que, de janeiro a outubro de 2004, o MDS financiou a construção de mais de 23 mil cisternas, por meio de diversos programas, dentre eles o realizado junto à ASA.

Mantido o ritmo atual, o horizonte para a construção do total de um milhão de cisternas pretendido no programa poderia ser estimado para um período superior a 30 anos. Já o projeto para a transposição das águas do rio São Francisco conta com um total de R$ 1.07 bilhão no Orçamento 2005 enviado pelo governo federal ao Congresso. Mais de um bilhão de reais. Apenas para o próximo ano.

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