Jogo de interesses marca projeto de transposição do rio

 20/12/2003
Pôr do Sol no rio na região de Juazeiro, Bahia, e Petrolina, Pernambuco (Aldo Maranhão)

Conflito em torno do projeto envolve interesses políticos, econômicos e regionais aparentemente inconciliáveis. Em meio à queda-de-braço que cerca a proposta, as contradições e possibilidades para o desenvolvimento do semi-árido nordestino saltam à vista.

Fortalecimento da agricultura irrigada nos estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco, assim como da criação de camarões em terras cearenses e potiguares. Atendimento às comunidades que não possuem acesso à água no Nordeste Setentrional. Abandono das populações do Vale do São Francisco, especialmente do baixo curso do rio (leia também “Revitalização carece de verba à altura de sua relevância”). Um grande projeto para fortalecer em 2006 o presidente Lula em uma possível disputa pela reeleição ou o ministro Ciro Gomes em uma eventual candidatura ao governo do Ceará. Uma iniciativa voltada a combater a indústria da seca. Um projeto feito sob encomenda para as empreiteiras. Mais desenvolvimento para o Nordeste. Menos energia elétrica para o desenvolvimento da região.

As justificativas e interpretações para o projeto de transposição das águas do rio São Francisco são inúmeras e explicitam os conflitos e disputas que envolvem a proposta. Nesta reportagem, a Agência Carta Maior busca apresentar os vários interesses em jogo, que explicitam uma questão: a decisão final sobre o projeto será de grande importância também para o futuro do semi-árido.

Futuro irrigado

O pesquisador João Suassuna, da Fundação Joaquim Nabuco, afirma que no Nordeste existem hoje cerca de 700 mil hectares dedicados à agricultura irrigada, sendo 340 mil no Vale do São Francisco. Segundo dados da assessoria de imprensa da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba (Codevasf), criada em 1974, “os 26 perímetros de irrigação implantados pela Codevasf no Vale do São Francisco, que equivalem a cerca de 105 mil hectares, geram perto de 112 mil empregos diretos e 224 mil indiretos”.

Para o presidente da Codevasf, Luiz Carlos Everton de Farias, a transposição “é importante para garantir o desenvolvimento sustentável de toda a Região Nordeste”. Em recente audiência realizada no Congresso Nacional para debater a criação de um fundo de desenvolvimento sustentável e revitalização da região do rio São Francisco, o presidente da companhia destacou que “Dados do Banco Mundial mostram o impulso socioeconômico que a implantação dos perímetros irrigados trouxe para a região do Vale do São Francisco. Não vejo nenhuma razão para impedir que esses benefícios se estendam às populações dos outros Estados nordestinos, já que o Velho Chico vem sendo recuperado e deve ganhar ainda mais recursos com a aprovação desta proposta”, afirmou Luiz Carlos de Farias.

O professor de Hidrologia e Irrigação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, João Abner analisa a possibilidade de outra forma. Para Abner, “o projeto é politicamente inconseqüente por que gera um conflito entre os estados do Nordeste”. O professor explica que a transposição, por um lado, “compromete toda a vazão alocável de água que resta na calha do rio, de apenas 25 m³/s, e, por outro, as bacias hidrográficas receptoras apresentam uma disponibilidade de água per capita semelhante à dos moradores da bacia do rio São Francisco, porém com um nível de comprometimento bastante inferior”.

As contradições verificadas na análise do projeto de transposição voltam à cena quando se avaliam os resultados que a agricultura irrigada tem trazido para o Nordeste. Segundo o presidente da Codevasf, o estudo do Banco Mundial sobre municípios do semi-árido brasileiro citado acima mostrou que a implantação de projetos de irrigação permitiu o desenvolvimento da região, gerou divisas e empregos e ainda contribuiu com a melhoria da qualidade de vida das populações locais. O levantamento apontou ainda que o êxodo rural nas localidades que não possuem áreas irrigadas foi de 31,7%, enquanto as regiões que já dispõem da tecnologia registraram índices negativos, de 41%.

Estação de bombeamento da Codevasf em Neópolis, Sergipe (Antonio Biondi)

De acordo com Farias, nas cidades sem áreas irrigadas, o índice registrado de pobreza foi de 44,6% da população, ao passo que nos municípios com perímetros irrigados a situação de pobreza atinge 36,7% da população.

A própria Codevasf diz em seu site porém, que “O Vale, apesar dos esforços desenvolvidos na área social, ainda apresenta baixos índices de educação, saúde e saneamento básico”. Em que pese o site conter muitos dados desatualizados, informa que apenas 29 das 465 cidades do Vale estudadas apresentavam uma média melhor que a nacional em termos de famílias indigentes (dados do Censo IBGE de 1991). Das 465 cidades, 261 possuíam mais de 40% das famílias nessa situação.

Documento elaborado em agosto de 2004 por um grupo de pesquisadores especialistas que fazem parte da Sociedade Brasileira de Pesquisa Científica (SBPC) destaca que “(…) A agricultura irrigada, maior consumidora de água entre todos os usos, é necessidadeimperiosa para o atendimento das necessidades das populações e o desenvolvimento das regiões. Há na bacia do São Francisco um grande potencial de áreas irrigáveis. Da mesma forma também existe potencial significativo nas regiões do Nordeste externas à bacia. (…)”.

No documento, os especialistas afirma que “(…) disponibilidade de água na bacia do São Francisco ainda a alocar para outros usos não é suficiente para o atendimento à demanda potencial para irrigação das duas regiões, nem mesmo para a própria bacia. Portanto, há conflito potencial neste sentido e a solução requer análise social, ambiental, técnica, econômica, gerencial, mecanismos de compensação e outras avaliações, como tem sido feito em todas as partes do mundo onde ocorrem transferências de águas entre grandes bacias hidrográficas (…)”.

Dentre um de seus principais apontamentos, o
documento destaca que “(…) Independentemente da proposta de transposição de águas do rio São Francisco para fora da bacia, os conflitos pelo uso da água para irrigação poderão se estabelecer. Parte significativa dos projetos usam técnicas de baixa eficiência e portanto tais projetos precisam ter suas outorgas [autorizações para uso da água] condicionadas ao aumento da eficiência (…)”.

O professor Abner destaca que o custo de distribuição da água utilizada nos empreendimentos de agricultura irrigada fez com “com que muitas experiências não tivessem sucesso, tal como o caso do projeto Jaíba, no norte de Minas Gerais, com 100 mil hectares. Além disso, em praticamente todos os estados da região existem projetos públicos de irrigação inviabilizados”.

A reportagem da Agência Carta Maior também apurou que, em algumas localidades, às dificuldades recorrentes com a inadimplência no pagamento pelo uso da água somam-se os problemas com o lançamento de agrotóxicos nos cursos d’água e as dificuldades para o pagamento da energia utilizada no bombeamento da água, demonstrando a importância de se aperfeiçoar os projetos.

Quem paga?

O professor Abner estima em R$ 20 bilhões o custo total das obras de transposição, “enorme volume de recursos, caso o projeto tenha continuidade, que compromete grande parte dos investimentos dos próximos governos, sem, contudo, alterar o quadro de seca da região”. Para ele, o projeto é economicamente inviável.

“Hoje, no Nordeste, não se cobra pela água bruta. Os custos da água para os usuários dizem respeito apenas ao bombeamento da fonte de suprimento até a área agrícola”, explica. De acordo com Abner, o custo da água advinda da transposição será, “no mínimo, 5 a 6 vezes maior do que os valores atualmente praticados na região”. Abner entende que essa questão poderia restringir bastante a inserção dos produtos hidro-agrícolas das bacias receptoras no mercado globalizado.

Abner explica que o governo federal, para contornar essa limitação, sugere no Estudo de Impacto Ambiental do projeto a prática de um subsídio cruzado. “O consumo humano, principalmente das grandes cidades, deverá subsidiar a água dos pólos tradicionais deirrigação, devendo contribuir com 80% das receitas do projeto, tendo em vista que o custo da água é muito elevado para fins de irrigação”. Segundo Abner, apenas 4% da água do projeto teriam fins para o abastecimento difuso de água que está associado diretamente com o quadro mais grave das secas. “O projeto destina-se, principalmente, à irrigação – no caso do Rio Grande do Norte, a irrigação consumiria 92% da água destinada ao Estado”.

Quem leva

O chefe de gabinete do Ministério da Integração Nacional, Pedro Brito, discorda dos números de Abner. Brito afirma que os investimentos destinados ao projeto estão estimados em R$ 4 bilhões e que a operação do sistema terá um custo anual de cerca de R$ 80a R$ 100 milhões por ano, que serão divididos entre os quatro estados beneficiários do projeto.

Para Brito “a integração de bacias faz parte de um complexo de medidas para garantir a sustentabilidade do semi-árido nordestino”. O chefe de gabinete de Ciro Gomes afirma tratar-se de um projeto de segurança hídrica, que terá como complementos a construção de cisternas, a construção e manutenção de poços e de adutoras para interligar açudes. A avaliação que aponta essas alternativas como complementares choca-se com o que dizem os especialistas sobre os recursos hídricos da região (leia também “Especialistas apresentam alternativas à transposição do São Francisco”).

Segundo Brito, a água não será voltada essencialmente para a irrigação. “É água para viver e produzir. Com constância”. Dentre os aspectos positivos no projeto apontados por Brito, ele destaca a possibilidade de se instalarem nas regiões beneficiadas do Nordeste Setentrional novas indústrias e projetos de irrigação. Além disso, Brito afirma que cerca de 2 mil km de rios que hoje são intermitentes no Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco se tornarão perenes, criando condições de “sobrevivência e desenvolvimento”.

Com base nessas questões, Brito assegura que o projeto terá “uma repercussão oposta à lógica da indústria da seca”. Para ele, trata-se de um “projeto que vai contra interesses da elite que se vale da pobreza para se beneficiar”. Brito finaliza sua defesa do projeto apontando um sentido de urgência que faz com que o governo não possa mais esperar. “As pessoas estão morrendo agora”.

Na análise de João Paulo Maranhão de Aguiar, diretor da ONG Ilumina e adjunto da presidência da Chesf (Companhia Hidro Elétrica do São Francisco) “isso de dizer que é para levar água para quem passa sede é uma balela”. Aguiar entende que, “se a transposição vier a ser feita, não é para matar a sede do nordestino. É para a indústria e para a agricultura. O governo precisa ter coragem de dizer que é uma decisão geopolítica, de governo, de criar pólos de desenvolvimento ao longo da transposição com a pujânciade Petrolina e Juazeiro”. No entendimento do diretor da Ilumina, “O governo federal tem de ter coragem para assumir publicamente o porquê da obra e também assumir publicamente o subsídio” como ocorre com a produção agrícola na Europa por exemplo.

Receptor

No projeto da transposição, a Bacia Hidrográfica do rio Salgado, no Ceará, seria uma das beneficiadas, recebendo as águas do São Francisco a partir do Açude Salgado, no município de Brejo Santo. Segundo o Gerente da Cogerh (Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos – Ceará) no Crato, Yarley Britto, a região possui 298 fontes de água subterrâneas, concentradas na Chapada do Araripe. Yarley conta que as fontes “jorram dia e noite”. São públicas, mas devido a conflitos de legislação, o acesso a muitas delas ainda é privado (Leia também “Projeto de transposição não garante água aos necessitados").

Riacho seco na região de Floresta, Pernambuco (Aldo Maranhão)

Para Yarley, “é preciso avançar na otimização do uso tanto no abastecimento humano, quanto na agricultura e também na indústria. A questão do reúso tem que ser discutida, otimizada”. A an&
aacute;lise do gerente da Cogerh é que existe “uma pressão muito forte porobras no Brasil, que dificultam muito a racionalização do uso da água”.

A leitura crítica sobre o mau uso dos recursos hídricos e as dificuldades que diversas comunidades enfrentam para acessar à água não impedem Yarley de defender o projeto da transposição. “O Ceará precisa dessa obra, ela é importante para enfrentar situações de escassez. Vejo a transposição como uma reserva de segurança para caso de necessidade”. Yarley afirma que o “Ceará está preparado para receber essas águas, pois se organizou, se preparou para isso”, explica ele, fazendo referência à construção do Açude do Castanhão, o maior da região do Semi-Árido, e à construção de canais e sistemas para interligar as bacias hidrográficas cearenses.

No entender de Yarley, os estados beneficiados pelo São Francisco estão praticando uma verdadeira crueldade com os estados que seriam atendidos pela transposição: “Estamos tendo que fazer uma série de artimanhas para conseguir uma migalha de água que vai para o mar”.

Ao final, o discurso de Yarley revela uma das questões fundamentais da gestão da água e dos políticas de desenvolvimento aplicados no Ceará. “Fortaleza está crescendo muito rápido, por falta de alternativas para o Semi-Árido e pelo fato de o governo ter centralizado todo o desenvolvimento na capital” – à exceção de alguns pólos de agricultura, indústrias e criação de camarões espalhados pelo estado. Uma questão central a ser enfrentada não apenas no Ceará, mas também nas discussões sobre o projeto de transposição e sobre os modelos para o desenvolvimento do Semi-Árido.

Doador

Em decisão tomada em outubro de 2004, o Comitê da Bacia Hidrográfica do rio São Francisco (CBHSF) deliberou que a transposição das águas do rio para usos externos à bacia só pode ocorrer em hipótese de escassez comprovada e voltada somente a abastecimentohumano ou animal. O comitê justifica sua decisão baseando-se na situação de degradação hoje verificada no São Francisco, assim como nas disputas e conflitos já verificados na bacia do rio. Para o comitê, o São Francisco possui hoje 360 m3/s de água como alocáveis para os vários usos. Desses, 325 m3/s já estão autorizados.

O secretário executivo do CBHSF, Luiz Carlos Fontes explica que, apesar das decisões tomadas pelo comitê, a Agência Nacional de Águas (ANA) apresentou uma nota técnica afirmando que podem ser retirados até 525 m3/s do rio. "A competência para determinar isso é do comitê, não da ANA. Além disso, a agência está definindo essa vazão pensando apenas na vazão mínima a chegar na foz [definida em 1300 m3/s pelo Ibama], sem zelar pelos usos múltiplos na bacia". O deputado federal Fernando Ferro (PT-PE), relator daproposta de emenda constitucional (PEC) que cria o fundo permanente para a revitalização do São Francisco e defensor do projeto de transposição rebate: "O comitê de bacias não é dono do rio". A disputa entre o comitê e a ANA encontra-se atualmente sob análise da justiça, assim como todo o processo que envolve o projeto da transposição (leia também "Justiça suspende licenciamento ambiental e audiências públicas").

Para dar apenas um exemplo dos conflitos que já existem na bacia do São Francisco, Fontes acrescenta que hoje há cerca de 180 mil hectares de projetos de irrigação paralisados na bacia, "aguardando recursos, isso sem contar os que estão sendo iniciados".

Na análise do deputado petista, entre os que se opõem ao projeto "há gente séria, gente com pouca informação e gente oportunista". Ferro considera que parte da resistência ao projeto de transposição provém de "pessoas com interesses corporativos locais", por exemplo no campo dos projetos de agricultura irrigada, e que a transposição se constitui, na realidade, como um mecanismo para distribuir interesses. Ao analisar a situação dos projetos de irrigação já existentes, Ferro confirma que existem, em alguns,problemas diversos, como o uso indiscriminado de agrotóxicos e a alta concentração de terras. De acordo com Ferro, parte dos programas se encontram "condenados ao fracasso" e "no ajuste de contas, cerca de 35% já estão em situação de falência". Para o deputado a proposta da transposição mexe nessaa estrutura e "afeta interesses históricos e o poder político local e regional". Opinião reforçada pelas palavra de Pedro Brito, para quem o projeto "acaba com a indústria da seca".

A opinião de Luiz Carlos Fontes, no entanto, é de que são justamente os poderosos de plantão que estão buscando garantir a realização de mais um projeto que não vai alterar a situação local e beneficiará os mesmos de sempre – aqueles que se utilizam da seca e da miséria para se fortalecer ainda mais política e economicamente. Fontes afirma que, no próprio Rima (Relatório de Impacto Ambiental) do projeto "fica claro que a pressão dos usos econômicos e a falta de planejamento no uso da água é que levam à transposição, e não o abastecimento humano".

Questões fundiárias

Fernando Gaiger, do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) participou da equipe que elaborou o estudo base para o Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA). Ele explica que "ao longo da bacia do rio São Francisco, existe uma mancha composta de áreas de posses", ocupadas por posseiros, que demonstra uma evidente necessidade de regularização fundiária na região e um grande potencial para a reforma agrária. "O Estado é que tem que correr atrás". Gaiger explica que, nessa mancha, existem desde pequenas propriedades – as grande maioria é composta de minifúndios – até grandes áreas em situação irregular. De acordo com pesquisador, um dos maiores problemas é que a regularização das terras depende dos institutos de terra estaduais. "O poder dos governadores é muito grande" nesse aspecto, e muitas vezes conflitante com os projetos de regularização.

Gaiger afirma que "a bacia do rio São Francisco é um retrato do tratamento que o Estado brasileiro dispensa à questão da terra", ressaltando que, "desde as regiões ocupadas nos primórdios, até as novas áreas do agronegócio, todas elas foram e continuam sendo ocupadas por posseiros. A grilagem continua forte no Brasil". Para o deputado Fernando Ferro "o antídoto para essas questões são os movimentos sociais".

A importância dos movimentos s
ociais para alterar o quadro de desigualdades que marca a região do Semi-Árido é reconhecida por boa parte dos responsáveis no governo federal pela elaboração do projeto de transposição. Mas a leitura dos movimentos a respeito da transposição é bastante distinta à do governo federal, conforme ficou explicitado durante o Fórum Social Nordestino, realizado em Recife no final de novembro (leia também "Fórum se consolida como espaço de reinvenção da esquerda"), assim como em dois outros encontros da sociedade civil realizados no mesmo mês – a Conferência Nacional da Terra e da Água, em Brasília, e o 5º Encontro Nacional da Articulação do Semi-Árido Brasileiro.

Questões fundamentais

Se nas discussões em torno do projeto de transposição a dissonância entre o secretário do CBHSF e o deputado relator da PEC são evidentes, a sintonia entre ambos no que diz respeito à importância da revitalização do rio é ainda maior. A PEC 524, de autoria do senador Antônio Carlos Valadares (PSB-SE), propõe a vinculação de 0,5% dos impostos da União à revitalização do rio, pelo período de 20 anos. O objetivo do Fundo para a Revitalização Hidroambiental e o Desenvolvimento Sustentável da Bacia do Rio São Francisco é custear políticas públicas para a recuperação ambiental do rio e de seus afluentes, além de promover o desenvolvimento sustentável da região. Estima-se que o fundo possa contar com cerca de R$ 300 milhões por ano.

Para Fontes, "a PEC da revitalização é fundamental. A revitalização do rio teria garantias para um projeto a longo prazo e continuado. A revitalização não pode depender somente de verbas definidas a cada ano e que podem até não vir". O deputado Ferro faz coro: "é preciso aprová-la para garantir um instrumento perene de sustentabilidade".

Conflito

Em maio de 2004, as imagens do Reservatório de Sobradinho cheio, vertendo água pela barragem, localizada no rio São Francisco na altura de Juazeiro (BA) eram impressionantes e belas. As usinas hidrelétricas localizadas ao longo do rio são as principais fontes gerados de energia elétrica no Nordeste e o pesquisador João Suassuna lembra que, na ocasião, os dirigentes da Chesf pronunciaram-se de imediato sobre as potencialidades do setor energético em atender a demanda da região Nordeste, ao menos pelos próximos dois anos. Em artigo publicado sobre o tema, Suassuna ressalta que, em novembro, Sobradinho já estava com praticamente metade de sua capacidade preenchida apenas e que, mesmo com o reservatório principal da Chesf vertendo "isso não significa que foram resolvidos os problemas energéticos do Nordeste". Para Suassuna, esse é outro aspecto fundamental a se considerar nas discussões sobre a transposição das águas do São Francisco.

De acordo com Suassuna, a própria represa de Sobradinho, em 1997, também atingiu seu volume máximo mas, já em 1999 foi necessário se importar uma grande quantidade de energia (cerca de 800 MW) da hidrelétrica de Tucuruí (PA), o equivalente a 15% do consumo energético nordestino. Já em 2001, Suassuna destaca que "em meio a fortes estiagens na bacia do rio, o volume útil da represa chegou a atingir cerca de 5%, havendo a necessidade de se proceder ao racionamento de energia" – o famigerado apagão.

Para o diretor da ONG Ilumina, João Paulo Maranhão de Aguiar, que acumula mais de 40 anos como funcionário da Chesf, o risco de uma situação como a do Apagão se repetir está mais que afastado, por dois motivos básicos: o sistema brasileiro de transmissão e distribuição de energia é hoje muito mais interligado que em 2001, e o governo federal não conta mais com a sanha privatizante dos tempos de FHC. Para ele, caso o projeto da transposição venha a se concretizar, "a perda na geração de energia não é significativa". Ele estima que "as perdas ficariam em cerca de R$ 92 milhões ao ano, amplamente compensados com o desenvolvimento gerado nas regiões beneficiadas". Por outro lado, ao ser questionado sobre a situação de falta de alternativas enfrentada por várias comunidades do baixo São Francisco em função das conseqüências trazidas ao rio pelas barragens (leia também “Projeto de transposição não garante água aos necessitados"), João Paulo tem análise quase oposta. "Outras formas de geração de energia no baixo São Francisco seriam muito mais caras, de modo que a redução do pescado, por exemplo, é mil vezes compensada na geração de energia e no desenvolvimento econômico".

Foz do rio São Francisco, Piaçabuçu, Alagoas (Antonio Biondi)

Comunhão

O chefe de ganinete do Ministério da Integração Nacional, Pedro Brito, também entende que as pessoas que vivem na bacia do São Francisco "certamente sofrem com a indústria da seca", e que é preciso dar condições para o desenvolvimento de projetos na região. Brito garante que vários órgãos do governo federal estão trabalhando nesse sentido, mas a sensação de que foi feita uma opção por uma região do Semi-Árido é latente entre as pessoas da bacia do São Francisco. Na avaliação de João Paulo "existe a mesma miséria no São Francisco e nas regiões beneficiadas pela transposição".

Em recente artigo, o professor da UFRN, João Abner, faz a ressalva de que "não existe uma panacéia que venha a modificar, a curto e médio prazo, o quadro de profunda estagnação econômica que a região vem atravessando nos últimos anos", lembrando que cada município apresenta-se com soluções específicas.

Para ele, a lógica da convivência com o semi-árido pode ser determinante na alteração desse quadro, mas "ainda é muito recente, ainda não se tornou uma cultura, ainda não está na pauta do meio político". Abner afirma no artigo que "certas atividades excelentes no Semi-Árido que estão escondidas. Por exemplo, o mel já é o décimo produto na exportação brasileira. Toda região do sul do Piauí e norte da Bahia forma a melhor área apícola do país. Esse ano, no interior de Campo Alegre de Lurdes, Bahia, uma cooperativa de pequenos produtores de mel colheu 88 toneladas do produto e arrecadou quase 500 mil reais. É também de se perguntar quem coloca 25 mil cabeças de caprinos todo mês nas mesas dos petrolinenses e juazeirenses, além do consumo dessa
carne em todo semi-árido. São pequenos criadores do sequeiro". Abner conclui que existem diversas saídas e "formas de produção muito viáveis em todo o Semi-Árido".

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