Coordenador da CPT explica violência no Sul do Pará

Coordenador da Comissão Pastoral da Terra em Xinguara (PA) e um dos maiores defensores dos direitos dos trabalhadores da Amazônia, frei Henri des Roziers fala do clima de violência no campo e da relação promíscua do poder público com os fazendeiros na região
Por Leonardo Sakamoto
Fotos: Divulgação
 01/01/2004

Frei Henri Burin des Roziers lembra de todas as vezes que recebeu ameaças de morte explícitas. Por sorte ou precaução, nenhuma veio a se concretizar. O que não significa que muitos latifundiários do Pará e Tocantins não queiram vê-lo morto. “Cheguei ao Brasil no fim de 1978. Em 1979, vim para cá acompanhando um agente pastoral ao Bico-do-Papagaio [norte do atual Estado do Tocantins]. É terra sem lei. Os posseiros totalmente oprimidos, pequenos, não tinham uma organização mínima. Queriam minha expulsão do país. Interessante… O delegado que pedia isso e tentou me processar se chamava Hitler Mussolini.” Desde então, Henri ficou por aqui. Advogado de formação e dominicano por vocação, esse parisiense de 74 anos tem sido um defensor dos direitos fundamentais na região de fronteira agrícola amazônica, atuando no combate ao trabalho escravo e na luta pela terra. Durante anos, esse advogado, devidamente registrado na OAB, foi a única assessoria jurídica dos trabalhadores nessas regiões. Há mais de 20 anos, é um dos coordenadores da Comissão Pastoral da Terra (CPT) em Xinguara, sul do Pará. Essa entrevista foi concedida após o lançamento de campanha para a erradicação do trabalho escravo no Pará, realizada em Redenção em novembro, que contou com o protesto de fazendeiros – insatisfeitos com as fiscalizações, as medidas tomadas no combate à essa prática e, é claro, com a atuação de frei Henri.

Por que a região sul, sudeste do Pará enfrenta tantos problemas de violência no campo?

Porque ela tem uma cultura da violência. O problema da posse da terra se tornou mais forte a partir dos anos 70, quando entrou muita gente nesta região pioneira. Daqui até Conceição do Araguaia era mata virgem, Xinguara nem existia. Entrou gente de todo o tipo, fazendeiros, madeireiros. Entraram também muitos sem-terra da época, posseiros. A terra era de todo mundo. Mas chegaram empresários com incentivos fiscais do governo, que incentivava a produção agropecuária através de seus bancos de financiamento.

Empresas como o Bradesco, o Banco Real…

A Volkswagen, todas essas. Isso provocou um conflito entre os posseiros legítimos, com mais de um ano de posse, e as empresas recém-chegadas, que queriam pilhar tudo. A primeira Comarca [de Justiça] de Xinguara foi criada no final da década de 80. Até então, o Estado era coisa inexistente. Até 1989, você tinha uma só comarca em Conceição do Araguaia, que abrangia Santana do Araguaia, Santa Maria das Barreiras, Rio Maria, Xinguara e São Geraldo. Uma área imensa. Um juiz só para toda essa região. E não havia telefone, a comunicação era muito mais difícil. Polícia só em Conceição. Com o Estado totalmente ausente, as coisas se solucionavam necessariamente a partir da própria força de arma de cada um.

Isso vai ao encontro do que o Luciano Guedes, ex-presidente do Sindicato Rural de Xinguara, disse ontem ao senhor durante protesto contra as ações do governo de combate ao trabalho escravo: “frei, vamos resolver nossos problemas sem as pessoas de fora, de Brasília”.

Eles até entram em contradição, porque questionam a todo o momento o governo federal, pedindo recursos. Dizem que o Estado está ausente daqui, que não temos Polícia Federal, não temos Justiça do Trabalho, não temos polícia militar ou civil equipadas, não tem carro. Eles acusam o governo federal e o Estado do Pará de não estarem presentes, reconhecendo que não se pode solucionar os problemas se o Estado não está presente. Mas, por outro lado, eles também pedem para a gente que tudo seja “solucionado” entre nós e acusa a CPT de não ter diálogo.

Querem um Estado “self-service”, em que peguem as instituições que interessem a eles.

Exatamente. Primeiro, utilizaram a ausência do Estado. Agora, que o Estado começou a aparecer, o utilizam pela corrupção. Razão por que a polícia é 95% servil aos fazendeiros, principalmente nessa região.

Policiais fazem bicos como seguranças privados nas fazendas?

Sim. E também todas as diligências policiais são feitas em favor do fazendeiro. Quando os trabalhadores querem fazer uma ocorrência, eles não conseguem se não vão acompanhados de um de nós. Mas como acompanhar todos eles? A polícia aqui no Sul do Estado é privatizada. Na semana passada, aqui perto do município de Rio Maria houve um despejo. Foi ordenado que fosse cumprido um mandado de reintegração de posse. Nele, estava escrito nome, apelido, de dez que se encontravam na fazenda Dona Maria. Mas aí foi despejado um pessoal que estava em outra fazenda, Dona Vânia, que não constava do mandato. Como é possível isso? Tinha coronéis, tinha delegados especiais, tinha 50 policiais militares. Há muita conivência e cumplicidade com os fazendeiros da região. Em setembro [de 2003] houve outro caso. Escandaloso. Em São Félix do Xingu, despejaram 80 famílias. Nenhum dos nomes dos posseiros que eles tiraram constava na ordem do juiz. Tinha três nomes e eles tiraram 80 de maneira totalmente ilegal.

Histórias de chacinas realizadas por pistoleiros são comuns. Os fazendeiros estão criando seus exércitos particulares para não ter problemas no futuro?

Sim, e não são poucos. Tivemos, por exemplo, um conflito em janeiro [de 2003] em Ourilândia do Norte quando os posseiros foram forçados a sair. Na ocasião, um posseiro perdeu a perna. E tinha 15 pistoleiros. Quinze! São milícias privadas. E muito armadas. Existem armas que são do Exército, armas importadas.

Por que essa área chamada de Iriri [região de expansão agrícola próxima ao município de São Félix do Xingu, a oeste de Xinguara] é uma das áreas mais preocupantes hoje?

Porque lá é a mesma história que havia aqui há 20 anos. Primeiro, cheio de mata virgem, cheio de terra que ninguém sabe de quem é. Segundo, ausência total do Estado. Então, tudo se soluciona através da lei do mais forte. O que aconteceu aqui? Depois que as fazendas foram feitas, o Estado chegou, então está um pouco mais regularizada a situação. De maneira anormal, porque às vezes regularizaram grilado. Mas tudo já está ocupado. Mas há mais terra virgem lá na região do Iriri. Muitas terras que ninguém sabe quem é o dono.

Está acontecendo lá o que aconteceu aqui no passado.

Exatamente. Todo o pessoal que quer enriquecer mais ou que quer sobreviver vai para lá. Aqui em Xinguara, você pode pesquisar, todos os fazen
deiros têm terra lá, mesmo os miudinhos, os pequenos. Todos daqui, todos vão aumentar seu patrimônio lá. Desmatamento feroz. Grilagem de terra feroz. Tráfico de drogas feroz.

Trafico de drogas?

Muito. O famoso Leonardo Mendonça, que está preso, que os Estados Unidos dizem ser um dos mais perigosos traficantes – alguns dizem que é mais perigoso do que Fernandinho Beira-Mar – é da região de Tucumã. Lá tem plantio de drogas, pista de avião ilegal. Tudo faz parte de uma máfia terrível. E máfia envolvendo inclusive juizes. Há um juiz que foi processado em São Félix do Xingu. Ele foi condenado e afastado.

Como tem sido a atuação da Comissão Pastoral de Terra na região frente à violência?

Acompanhamos, por exemplo, toda a apuração, o processo e o julgamento dos assassinos dos sindicalistas na região Rio Maria nos anos 80 e 90. Os fazendeiros resolveram acabar com o sindicato dos trabalhadores de Rio Maria e assassinaram uma série de presidentes. Nessa época, era um dos sindicatos mais atuantes da região. Foi assassinado o primeiro presidente em 1985. Depois, foi a vez de um dos líderes em 90 e seus dois filhos, que eram do sindicato, o terceiro saiu ferido. Foi assassinado, em 90, um diretor. E, em 91, o sucessor dele, além de baleados outros. Passei da região do Bico-do-Papagaio para aqui a fim de ajudar na apuração desses crimes. Tem dado um trabalho enorme até hoje, mas conseguimos que todos os pistoleiros fossem a júri. Vários foram condenados. Todos fugiram.

Não há nenhum pistoleiro preso?

Não, nenhum. Todos fugiram das penitenciárias de Marabá, de Belém. Condenados a 50 anos, 25 anos… Um pistoleiro foi condenado a 25 anos. Fugiu da penitenciária de Marabá. Um intermediário foi condenado e é o único que se comportou bem na prisão e está terminando e respondendo em liberdade já. Um outro pistoleiro foi condenado a 50 anos de prisão. Seis meses depois fugiu tranqüilamente. Foi também para prisão preventiva um outro que era um ex-agente da polícia militar, que foi detido no quartel central da Polícia Militar em Belém. Fugiu. Mas conseguimos júri de três mandantes de crime, que foram condenados. Três fazendeiros. Um, o Jerônimo Alves de Amorim, está condenado a 19 anos e meio. Na época, ele teve um apoio muito forte de todas as articulações dos fazendeiros do Brasil. Mas por causa de uma pressão internacional fantástica, a Polícia Federal o prendeu no México, com falsos documentos. Ele estava lá fazendo um cruzeiro. Foi trazido aqui, preso, julgado. Hoje, está Goiânia com todas as mordomias, em regime domiciliar, apesar de ser condenado a 19 anos e meio em regime fechado. Pôde sair para ir ao casamento de sua filha. Ele está respondendo a um outro processo na Justiça Federal, em Goiânia, que está mais ou menos andando como tartaruga.

A violência contra menores de idade também é grande?

Pegamos um processo que deu uma repercussão muito forte contra policiais civis daqui que torturaram um menor, em 1999, de 15 anos, causando graves problemas psicológicos. O rapaz ainda viaja sempre para Belém para fazer tratamento especializado, pago por decisão judicial, e vai ficar prejudicado a vida inteira.

Qual foi o motivo da tortura?

Pegaram ele com um pouco de droga. O processo está nas alegações finais, extremamente forte porque conseguimos que o próprio Instituto Médico Legal de Belém, Instituto Renato Chaves, reconhecesse, o que é raríssimo, através do seu psicólogo e psiquiatra, que a causa dos problemas do menino foram os três dias que ele passou na delegacia. Acredito que os policiais serão condenados. Em 2000, em um relatório sobre torturas, a Anistia Internacional colocou esse caso entre dez casos exemplares em todo o mundo para mostrar o que as torturas podem provocar.


Relatos de quem se livrou da escravidão

Zé Pereira, um sobrevivente

José Pereira Ferreira conseguiu indenização mais de 14 anos depois de quase ter sido morto ao fugir da fazenda onde era escravo. Andréa, 14 anos, foi libertada no final do ano passado.

Amazônia – José Pereira Ferreira ganhou notoriedade, em novembro do ano passado, quando foi aprovada pelo Congresso uma indenização no valor de R$ 52 mil. Zé Pereira tinha sido reduzido à condição de escravo na fazenda Espírito Santo, cidade de Sapucaia, Sul do Pará. Em setembro de 1989, com 17 anos, fugiu dos maus-tratos e foi emboscado por funcionários da propriedade, que atingiram seu rosto. O caso, esquecido pelas autoridades tupiniquins, foi levado à Organização dos Estados Americanos (OEA), que condenou o Brasil. Vale ressaltar que a fiscalização móvel do Ministério do Trabalho e Emprego constatou diversas vezes, ao longo dos anos, trabalho escravo nas fazendas dessa família, a ponto de os Mutran figurarem na lista suja de condenados pela prática divulgada pelo governo no ano passado.

Ferreira, goiano de São Miguel do Araguaia, veio com oito anos para o Pará acompanhar o pai, que também fazia serviços para fazendas. Hoje, com 31 anos e o dinheiro da indenização, pretende começar vida nova para compensar a vida roubada pelos anos de tratamento para salvar a visão atingida pelos pistoleiros, pelas ameaças recebidas e a escravidão. “Eu estou comprando uma chácara. Bem longe daquele lugar.”

Como eram tratados os trabalhadores na fazenda Espírito Santo?
José Pereira Ferreira – A gente não apanhava lá, não. Mas a gente trabalhava com eles vigiando nós, armados com espingarda calibre 20. A gente dormia fechado, trancado, trabalhava a semana toda…

Vocês dormiam trancados no barracão?
É. E vigiado por eles. Era mais ou menos uns 10 armados, por aí.

E vocês eram quantos?
Nós éramos muitos trabalhadores. De 19 a 30, não sei ao certo. Aí eu conheci um amigo meu, apelidado de Paraná, que eu não sei o nome dele. Aí nós vimos que daquele jeito não dava. Nós não ia conseguir trabalhar muito tempo daquele jeito e resolvemos sair da fazenda, tentar uma fuga.

Como era o barracão?
Uma lona preta cercada de palha.

Só?
Só.

O que vocês comiam?
Arroz e feijão, carne de vez em quando. Quando morria um boi atropelado.

Faziam o que na fazenda?
Fazia roça de juquira, arroz de pasto. É, fazenda de gado. Eles não deixavam a gente andar muito, então eu só conhecia o que fazia os que estavam no barraco com a gente.

Já deviam muita coisa para a fazenda, segundo o gato?
O gato [aliciador de serviço para a fazenda] já
dizia que nós estávamos devendo muito. A gente trabalhava e eles não falavam o preço que iam pagar pra gente, nem das coisas que a gente comprava deles, nem nada. E aí, nós fugimos de madrugada, numa folga que o gato deu. Andamos o dia todo dentro da fazenda. Ela era grande. Mas a fazenda tinha duas estradas, e nós só sabia de uma. Nessa, que nós ia, eles não passavam. Mas eles já tinham rodeado pela outra e tinha botado trincheira na frente, tocaia, né. Nós não sabia…Mais de cinco horas passamos na estrada, perto da mata. E quando nós saímos da mata, fomos surpreendidos pelo Chico, que é o gato, e mais três. Que atiraram no Paraná, nas curvas dele, e ele caiu morrendo. Eles foram, buscaram uma caminhonete com uma lona e forraram a carroceria. Aí colocaram ele de bruços e mandaram eu andar. Eu andei uns dez metros e ele atirou em mim.

De costas?
É. Onde acertou meu olho. Pegou por trás. Aí eu caí de bruços e fingi de morto. Eles me pegaram também e me arrastaram, me colocaram de bruços, junto com o Paraná, me enrolaram na lona. Entraram na caminhonete, andaram uns 20 quilômetros e jogaram nós na [rodovia] PA-150 em frente da [fazenda] Brasil Verde.

Eles eram inimigos da Brasil Verde?
Não sei. Acho que era só jogar fora da fazenda deles, longe. Para não levantar suspeita. Aí eles jogaram nós lá e foram embora. O Paraná estava morto. Eu levantei e fui pra fazenda Brasil Verde. Procurei socorro e o guarda me levou ao gerente da fazenda, que autorizou um carro a me deixar em Xinguara, onde eu fui hospitalizado no Hospital Santa Luzia.

Como você fez a denúncia de trabalho escravo?
Fui para Belém para fazer um tratamento [no olho] e denunciar o trabalho escravo na fazenda Espírito Santo à Polícia Federal. Tinha ficado muito companheiro meu lá dentro. Eu fui em Belém, denunciei, voltei na fazenda com a Polícia Federal. Eles chegaram lá e já tinha uns 60 trabalhadores. O Chico e os outros ficaram sabendo que eu tinha escapado da morte e tinham fugido já. A Polícia Federal fez dar o dinheiro da passagem daqueles trabalhadores e deixou eles na beira do asfalto.

Mas eles tiveram os direitos trabalhistas pagos?
Não. Acho que naquela ocasião deram muito pouco dinheiro para eles. Depois disso, conheci o frei Henri [des Roziers, da Comissão Pastoral da Terra], e ele sempre me ajudou, até chegar o dia de eu receber essa indenização.

Quanto você recebeu do governo federal?
Recebi o valor de R$ 52 mil, em novembro. Para mim, foi muito importante. Mudou muito a minha vida aquele dinheiro. Não vou depender mais de trabalho de fazenda.

Quando é que foi que você fugiu da fazenda?
Foi em 1989.

Demorou então, para você…
Catorze anos.

Você vai abrir um negócio?
Eu estou comprando uma chácara. Bem longe daquele lugar. Lá, vou mexer com o gado, alguma roça, plantação… Começar vida nova.

O que você recomenda para outros trabalhadores que enfrentam situações iguais à sua?
Se eu for submetido a trabalho escravo, eu denuncio tudo de novo. E as pessoas que forem submetidas a trabalho escravo, acho que não devem se intimidar não. A pessoa tem que procurar as autoridades, o sindicato, a CPT, o Ministério do Trabalho e denunciar o trabalho escravo, pois isso não pode existir.


Infância roubada

Ourilândia do Norte – Durante fiscalização na fazenda São Luiz, de propriedade de Luiz Antônio Sacarelli* (veja nota abaixo), em dezembro do ano passado, Andréa foi resgatada pelo grupo móvel de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego. Sob um calor forte e a poeira da estrada de terra em que foi encontrada, Andréa diz que fazia a comida dos cerqueiros e limpava o alojamento. Não ganhava nada pelo serviço e nem imaginava que tivesse direito a alguma coisa. Tinha 14 anos. Ela acompanha o pai em todos os serviços e por causa das constantes mudanças, por quatro anos, entrou em uma escola, mas não conseguiu terminar a série, saindo na metade. No dia da libertação, estava cursando o segundo ano do ensino fundamental na Escola Municipal “Reino da Alegria”, no povoado de Fogão Queimado, a seis quilômetros da sede da fazenda. Estudava na parte da tarde, quando o serviço não lhe tomava o dia.

Quantos irmãos você tem?
Morreu um. Aí ficou eu, meu pai, meus dois irmãos e minhas duas irmãs vivas. Mas minha mãe morreu de parto do mais novo.

Andréa, quem continua com seu pai?
Só eu, só. Uma mulher lá de Xinguara quebrou o nariz, rachou a boca…

De quem?
De mim [Andréa possui uma cicatriz no lábio superior].

Quem é essa mulher?
Ela pediu para Painho deixar e meus irmãos lá depois que minha mãe morreu. Painho confiou nela e deixou lá.

E como ela tratava vocês?
Judiava de nós. Pendurou nós de cabeça para baixo no poço. Eu não tinha feito nada, eu era pequena.

Até quando você ficou lá?
Uma mulher viu que eu estava judiada e ela foi e me pegou de lá. Aí eu quis vir embora com meu pai.

Onde estão seus outros irmãos?
No Tucumã. Com conhecidos do meu pai ou com parentes. Minha irmã está casada.

Quantos anos você tinha quando começou a ajudar seu pai no serviço?
Cinco. Mas com cinco anos eu só lavava vasilhas e varria a casa. Almoço era o pai que vinha do serviço, vinha e fazia.

Antes de começar esse serviço da cerca aqui, você já tinha cozinhado para o seu pai em outras ocasiões?
Já. Direto. Teve uma vez que meu pai foi trabalhar para um homem, prá lá de Redenção. Ele roçava, matava erva, e eu ficava lavando vasilha pro homem, lavava a roupa do homem e colocava coisa para os porcos de comida…

Quanto tempo você ficou fazendo isso?
Um bocado de tempo. Uns quatro anos.

Você recebeu algum dinheiro por esse trabalho?
Não. O homem não pagou nem o meu pai. E ele falou que iria matar o pai na unha que nem carrapato.

Se ele reclamasse do dinheiro?
Sim.

Você já pegou malária?
Eu já.

Quantas vezes?
Muitas vezes. Nem sei, eu não lembro, uai!

Há quanto tempo o senhor não tem casa?
Valdemar, pai de Andréa – Está com sete anos. Quan
do eu tinha mulher, tinha a minha casa. Tinha quem cuidasse das crianças. Hoje não tem porque, ela morreu. Eu tinha as crianças tudo pequenininha. Aí eu fiquei trabalhando nas fazendas. Por aqui, por ali, por aqui, por ali… E aí onde eu trabalho eu levo ela, trabalho onde tem perto um colégio pra ela estudar.

Andréa, você sonha com alguma coisa?
Andréa – O meu pai arrumar uma casa para nós aquietar, ficar em um lugar.
Valdemar – É o seguinte: quando eu ganhar o meu dinheiro [os direitos trabalhistas pagos a libertação feita pelo grupo móvel], eu compro na rua [na cidade]. Eu coloco minha filha lá, arrumo uma pessoa de responsabilidade, deixo mais ela e saio pra trabalhar. Porque não tem como eu trabalhar na cidade, né? Eu não tenho leitura nenhuma.

Xinguara, Janeiro de 2004

*O juiz Carlos Henrique Borlido Haddad, da Vara Federal de Marabá, rejeitou, em primeira instância, as denúncias contra os acusados Luiz Antonio Zapparoli Sacarelli e Luiz Carlos Joaquim de Oliveira, relativos ao caso relatado nesta matéria. A sentença, que se baseou no princípio da atipicidade do crime (uma vez que o flagrante ocorreu antes da última mudança de tipificação do crime de exploração de mão-de-obra análoga à escravidão), foi publicada no dia 11 de março de 2009 no Diário da Justiça Federal da 1ª Região (Ed. 44). O Minitério Público Federal (MPF) já recorreu da decisão.

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