Exploração sexual cresce na tríplice fronteira

Pesquisa da OIT revelou 241 rotas terrestres, marítimas e aéreas para exploração sexual e tráfico de mulheres, adolescentes e crianças no Brasil. A maioria delas passa pelo Norte e Nordeste, mas a tríplice fronteira entre o Brasil, Paraguai e Argentina vem se mostrando foco deste problema
Por Bia Barbosa
 05/01/2004

Mais de dois milhões de crianças e adolescentes em todo o mundo são explorados sexualmente, segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT). São menores entre 8 e 17 anos que sofrem abuso sexual, estão envolvidos em prostituição infantil ou são vítimas de pornografia. No Brasil, uma pesquisa da OIT revelou 241 rotas terrestres, marítimas e aéreas para exploração sexual e tráfico de mulheres, adolescentes e crianças. A maioria delas passa pelo Norte e Nordeste, mas outra região vem se mostrando foco deste problema: a da tríplice fronteira entre o Brasil, Paraguai e Argentina.
No início de 2002, havia cerca de 3.500 crianças e adolescentes afetados por algum tipo de violência sexual na região. Trata-se de um negócio lucrativo no país e que está cada vez mais ligado às redes de crime organizado, que envolvem tráfico de drogas e de armas.

Por ser ilegal e clandestino é um fenômeno ainda com pouca visibilidade e difícil de ser quantificado. Mas sabe-se que a grande maioria das vítimas de exploração sexual é pobre e do sexo feminino. Cerca de 70% residem com a família e, para 100% delas, o envolvimento com o comércio do sexo é uma forma de gerar renda. A pobreza e a indigência são, portanto, condições que propiciam a exploração sexual de crianças e adolescentes. Mas para muitas, a prostituição significa sobrevivência.

“Há meninas que se vendem por um lanche ou por um passe de ônibus”, conta Suely Ruiz, coordenadora nacional do Programa de Eliminação e Prevenção da Exploração Sexual da OIT na região da tríplice fronteira. “A área da Ponte da Amizade é um local onde há a presença de adolescentes na rua e há uma situação de informalidade no trabalho, que leva ao trabalho infantil e, por conseqüência, à exploração sexual. As crianças ali estão vulneráveis à ação dos aliciadores”, explica Suely.

O local do crime

A maior parte dos atos de exploração sexual de crianças e adolescentes se dá em prostíbulos fechados e se apresenta sob formas violentas, como cárcere privado, tráfico de menores e leilões de virgens. Em seguida, vem a violência sofrida por crianças em situação de rua, que usam o corpo como mercadoria para obter afeto e sustento. Há ainda o turismo sexual, também presente na região da tríplice fronteira, organizado por uma rede de aliciamento que inclui agências de turismo, hotéis e taxistas.

No início da década de 90, o uso de crianças e de adolescentes no mercado do sexo era designado por “prostituição infanto-juvenil”. Não havia a percepção de mercado, exploração e muito menos de produção industrial pornográfica. O incremento do turismo sexual e o desenvolvimento de práticas como o tráfico de crianças e adolescentes mudaram a compreensão do fenômeno e a questão da exploração sexual passou a ser vista como violação dos direitos humanos. Segundo a OIT, o uso de crianças e adolescentes no mercado do sexo é uma forma moderna de escravidão.

E, como um dos principais determinantes da inserção de crianças e de adolescentes no mercado do sexo é a pobreza, o enfrentamento do problema passa obrigatoriamente pela inclusão socioeconômica. Trata-se de um trabalho a ser realizado pelo Estado e também por toda a sociedade. “Nossa idéia é sugerir uma espécie de pacto nacional, envolvendo todos os governos, o Parlamento e a sociedade civil no combate ao turismo sexual. Não vamos admitir que pessoas venham ao Brasil com o intuito de explorar sexualmente nossas crianças e adolescentes”, declarou a senadora Patrícia Sabóya, presidente da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito que investiga no Congresso Nacional a violência, o tráfico e a exploração sexual comercial de crianças, adolescentes e mulheres no país. A comissão, que já recebeu mais de 600 denúncias e teve seus trabalhos prorrogados até junho, anunciou um pacote de medidas a serem adotadas para todo o verão de 2004 no Brasil.

Rede de combate

Há mais de dez anos, a região da tríplice fronteira vem sendo alvo de denúncias de exploração sexual infanto-juvenil. Em 1993, acusações do Centro de Direitos Humanos de Foz do Iguaçu chegaram até a uma CPI do Congresso Nacional. Um dossiê apontava a região do município como rota de tráfico de mulheres para a Argentina e para outros centros do país. No Paraguai, um estudo do Unicef e da OIT revelou que 60% das vítimas de exploração sexual em Ciudad Del Este tinham menos de 18 anos e grande parte era brasileira ou trabalhava em prostíbulos que pertenciam a brasileiros.

“Naquele momento, foram feitas ações de resgate, mas não havia infra-estrutura para atender esses adolescentes. Muitos foram resgatados e voltaram para a exploração sexual. Não havia ação concreta no âmbito de governo e das ONGs e tudo ficava apenas nas denúncias”, conta Suely Ruiz. Enquanto isso, a rede de exploração de crianças se fortalecia. Em Foz do Iguaçu, a carga de trabalho dos menores chegava a 19 horas diárias.

Para tentar combater esta rede de exploração, a OIT propôs a criação, em 2002, de uma rede de proteção. Foi criado então o Programa de Prevenção e Eliminação da Exploração Sexual Comercial Infantil (ESCI) na Tríplice Fronteira, que apóia uma rede interinstitucional para identificar, afastar e oferecer atenção integral às crianças e adolescentes nesta situação. O programa também conta com processos de esclarecimento social, responsabilização e punição dos autores, reinserção social das crianças e adolescentes marginalizados e instalação de uma cultura de prevenção e de vigilância social.

“Como há mobilidade nesta rede de exploração, de nada adianta fazer um trabalho no Paraguai e não fazer em Foz do Iguaçu. Por isso, tínhamos que ter uma ação, naquele primeiro momento, binacional.”, explica Suely. A partir de agosto 2002, ações em Puerto Iguazu, na Argentina, foram incorporadas aos objetivos do programa, o primeiro que a OIT desenvolve em regiões de fronteiras.

Por meio de comitês locais formados por representantes da sociedade civil, do poder público e de instituições como a própria polícia, o projeto também faz um trabalho de prevenção com as famílias das vítimas, principalmente com os irmãos e irmãs dos meninos e meninas explorados sexualmente. Cursos de profissionalização, reinserção escolar, assistência médica e le
gal e encaminhamento ao mercado de trabalho já beneficiaram centenas de famílias.

Um dos centros brasileiros que prestam este tipo de atendimento é o Programa Sentinela, de Foz do Iguaçu. Em janeiro de 2003, ele passou a integrar a Rede de Centros de Referência do programa da OIT e já alcançou resultados concretos em termos de resgate da cidadania de famílias que estavam desamparadas socialmente. O Sentinela possui um disque-denúncia (0800 643-8111) e a Sala Legal, que funciona 24 horas com um profissional de direito para regularizar a documentação das famílias cadastradas e atuar sobre os aspectos jurídicos e legais dos crimes de exploração de menores.

O resultado da ação aparece em atitudes inéditas como as de mães procurando ajuda nos Centros de Referência para recuperar as próprias filhas da exploração sexual comercial, e agressores pedindo apoio profissional para se tratar nesses mesmos locais. “Também avançamos muito na questão da cultura. Quando começamos, a tendência era negar de forma veemente que o problema existia. Hoje, as pessoas dizem que precisamos enfrentá-lo”, conta Suely.

Velhos desafios

Um dos maiores inimigos do combate à exploração sexual de menores no país é o próprio Código Penal que, desatualizado, não considera os crimes sexuais como ofensa às pessoas mas aos costumes, numa concepção herdada do final do século 19. O processo criminal, em suas diferentes etapas e procedimentos, também se mostra um importante entrave à resolubilidade das situações de violência sexual. A polícia e o sistema judiciário são vistos pela população como amedrontadores, obscuros, ineficazes. Há ainda um sentimento de que os crimes de abuso sexual não são punidos, o que inibe as denúncias e alimenta o silêncio e a tolerância em relação a eles.

“A criminalidade está presente também nos organismos que deveriam combater a exploração, como a polícia. É muito difícil saber em quem confiar. Podemos atender a 100, 200 crianças… mas se não há ação efetiva na punição desses exploradores, o problema não tem fim”, acredita a coordenadora da OIT.

Mas algumas redes criminosas já foram desmanteladas, e cidadãos antes tidos como respeitadores da lei estão sob investigação. “Estão sendo investigados três vereadores e um ex-prefeito de Foz do Iguaçu, além de empresários e policiais do Paraná”, afirmou Alexandre Rorato Macedo, da Promotoria de Investigações Criminais (PIC).

Em Foz do Iguaçu, proprietários de hotéis assinaram um termo de compromisso com a Delegacia Regional do Trabalho e com a OIT para combater a exploração sexual de menores. Os infratores serão multados em R$ 10 mil para cada caso ou para cada criança encontrada no local em situação irregular.

Outra proposta da OIT para facilitar o trabalho na área da punição é a assinatura de um acordo trilateral entre Brasil, Argentina e Paraguai. Além da assistência jurídica mútua em matéria penal, o acordo permitiria a coordenação de políticas públicas nas áreas de assistência social, saúde, educação e direitos humanos.

Da Agência Carta Maior

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