Justiça indicia cinco por trabalho escravo no Rio

Pela primeira vez no Estado do Rio, a Justiça acolheu denúncia-crime de trabalho escravo feita pelo Ministério Público Federal e poderá condenar os cinco indiciados a penas que, somadas, chegam a 16 anos de prisão
Por Gustavo Goulart – O Globo
 28/01/2004

O salário era quinzenal e no máximo de R$ 60; não era necessário sair do local de trabalho para comprar mantimentos, adquiridos a preços altos no armazém do patrão; as ferramentas de trabalho eram os pés e as mãos desprotegidos; e as acomodações tinham colchões de capim e apenas um chuveiro para mais de cem trabalhadores. Eram essas as condições de trabalho de um grupo de cerca de 160 cortadores de cana de duas empresas do setor agroindustrial, localizadas em Cabo Frio, mais de um século depois da Abolição da Escravatura. Mas, pela primeira vez no Estado do Rio, a Justiça acolheu denúncia-crime de trabalho escravo feita pelo Ministério Público Federal e poderá condenar os cinco indiciados a penas que, somadas, chegam a 16 anos de prisão. Os indiciados vão responder por quatro crimes: artigo 149 do Código Penal(redução dos trabalhadores a condição análoga à de escravo); artigo 207 (aliciamento de trabalhadores de um local para outro do território nacional); artigo 203 (frustração dos direitos assegurados pela legislação trabalhista); e 288 (formação de quadrilha). As empresas responsabilizadas são a Agroindustrial São João S/A (Agrisa) e a Fontes Agropecuária, ambas localizadas no distrito cabofriense de Tamoios e de um único dono, Demétrio Fontes Tourinho. O GLOBO tentou contato ontem com Demétrio Tourinho, mas não obteve resposta. Irregularidades são apuradas desde 96 As empresas são investigadas pela polícia e pelo Ministério Público desde 1996 por desrespeito à legislação trabalhista, como abandonar à própria sorte trabalhadores doentes. E aliciar empregados em regiões pobres de Minas, Alagoas e Bahia. A denúncia, oferecida à 1ª Vara Federal de São Pedro da Aldeia no dia 13 passado, foi feita pelos procuradores da República daquele município Orlando Monteiro da Cunha e Neide Cardoso de Oliveira. Para isso, eles tiveram uma ajuda importante do presidente Luiz Inácio Lula da Silva: fizeram uso da Lei 10.803, de 11 de dezembro passado, assinada pelo presidente e pelo ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos. Essa lei alterou o antigo texto do artigo 149, de 7 de dezembro de 1940, lançando luz sobre o que é condição análoga à de escravo. Agora, o novo texto deixa claro que são condições de trabalho escravo: submeter a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, sujeitando a condições degradantes de trabalho e restringindo, por qualquer meio, a locomoção do trabalhador em razão de sua dívida. – O texto não deixava claro o que é reduzir alguém a condição análoga à de escravo. A denúncia-crime é uma grande vitória da sociedade, um marco da Justiça. Pela primeira vez, acredito que a Justiça vai processar e julgar a denúncia. Minha esperança é que haja condenação – torce o procurador Orlando da Cunha, informando que o interrogatório dos acusados está marcado para 19 de fevereiro. No ano passado, uma força-tarefa envolvendo o Ministério Público Federal, o Ministério Público do Trabalho e a Delegacia Regional do Trabalho do Rio fez duas fiscalizações nas empresas Agrisa e Fontes. Na primeira, realizada entre 30 de junho e 3 de julho, os fiscais constataram o seguinte: "A prática do aliciamento continua a mesma; as condições dos alojamentos permanecem péssimas; a maioria ganha menos que o salário-mínimo; os trabalhadores desconhecem quanto vão receber já que a remuneração é por produção que não lhes é informada; há desconto no salário para alimentação, parca e de péssima qualidade; alojamentos de acesso difícil etc…" Foram 21 autos de infração trabalhista aplicados nas duas ações. Na denúncia, Demétrio Fontes é citado como "a figura de proa da quadrilha, presidente das empresas". É o único acusado dos quatro crimes. Os outros denunciados são Adilson de Barbosa de Jesus, apontado como "gato" (aliciador); Mário Rubens Viana; Manoel Messias (aliciador); e Ramilton Pereira da Silva (técnico em agropecuária).

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