Ação pede R$ 85 milhões por trabalho escravo

O Ministério Público do Trabalho do Pará está pedindo uma indenização de R$ 85,056 milhões por danos morais coletivos à Empresa Lima Araújo Agropecuária Ltda., proprietária das fazendas Estrela de Alagoas e Estrela de Maceió, localizadas em Piçarra, Sul do Pará. Essas fazendas foram alvo de quatro fiscalizações de equipes do grupo móvel do Ministério do Trabalho e Emprego desde 1998, nas quais foram libertados cerca de 180 trabalhadores, entre os quais nove adolescentes e uma criança em situação de escravidão. O valor corresponde a 40% do patrimônio estimado das duas propriedades, cuja principal atividade é a criação de gado. Este é o maior processo já movido contra uma empresa por trabalho escravo no Brasil
Por Leonardo Sakamoto
 04/02/2004

O Ministério Público do Trabalho do Pará está pedindo uma indenização de R$ 85,056 milhões por danos morais coletivos à Empresa Lima Araújo Agropecuária Ltda., proprietária das fazendas Estrela de Alagoas e Estrela de Maceió, localizadas em Piçarra, Sul do Pará. Essas fazendas foram alvo de quatro fiscalizações de equipes do grupo móvel do Ministério do Trabalho e Emprego desde 1998, nas quais foram libertados cerca de 180 trabalhadores, entre os quais nove adolescentes e uma criança em situação de escravidão. O valor corresponde a 40% do patrimônio estimado das duas propriedades, cuja principal atividade é a criação de gado. Este é o maior processo já movido contra uma empresa por trabalho escravo no Brasil.

Acabou, agora há pouco, em Marabá (PA), mais uma etapa de depoimentos de testemunhas no tribunal. Marinalva Cardoso Dantas, coordenadora de um dos grupos móveis, que fiscalizou a Estrelas de Alagoas em outubro de 2001, defendeu seus autos de infração e lembrou as condições degradantes em que estavam os trabalhadores. Da mesma forma, o gerente da Estrela de Alagoas, convocado para depor, confessou que a fazenda utilizava “gatos”, contratadores de mão-de-obra que freqüentemente estão relacionados ao trabalho escravo. A própria testemunha de defesa, um funcionário da fazenda, afirmou que havia duas categorias de trabalhadores: os fixos e os temporários e que a situação destes últimos era bem pior, com barracões de lona em péssimas condições de higiene. Ainda não há previsão de quando sairá a sentença da Justiça do Trabalho para o caso, pois ainda há mais testemunhas de defesa e acusação para serem ouvidas.

Caso a Justiça do Trabalho acate a ação civil pública movida pelo MPT, será aberto um importante precedente de punição para o crime de trabalho escravo. Até agora, os pedidos de indenização têm apresentado valores bem abaixo que esse – a própria Lima Araújo já havia sido réu em outras três ações, tendo sido condenada a pagar R$ 30 mil por danos morais coletivos. De acordo com Lóris Rocha Pereira Júnior, procurador do Trabalho responsável pela ação milionária, as constantes reincidências da Lima Araújo na utilização de mão-de-obra escrava, a situação degradante em que sempre eram encontrados os seus funcionários e o descaso com a Justiça e o trabalho dos fiscais justificam o tamanho da indenização.

“Eles não respeitam a lei ou as autoridades constituídas. Tanto que, enquanto tramitava uma ação na Justiça do Trabalho [por causa de trabalho escravo encontrado em uma das fazendas], uma quarta fiscalização do grupo móvel do MTE encontrou novamente escravos na Lima Araújo”, afirma Rocha. Além disso, a empresa já havia assinado um termo de compromisso na Justiça do Trabalho, garantindo que não haveria mais descumprimento da legislação trabalhista.

Vida de gado

As denúncias de maus tratos por parte dos trabalhadores eram freqüentes nas fiscalizações. Marinalva Dantas, em seu relatório, conta a situação a que estavam submetidos os trabalhadores na fazenda Estrela de Alagoas:

“Havia barracos (…) localizados após uma espécie de fossa aberta, onde foi represada água. Nesse local, havia muitas fezes. Os trabalhadores passavam por esse charco equilibrando-se sobre dois caules de árvore. A fedentina era insuportável. Os utensílios eram lavados em água represada e imunda, no mesmo local onde se tomava banho e se lavava roupas. Determinamos que os trabalhadores fossem devidamente alimentados e alojados próximos à sede, em local higiênico, até o dia seguinte, quando se daria o transporte para o Tocantins, Estado no qual foram aliciados. Qual não foi nossa surpresa ao chegarmos no dia seguinte e constatarmos que os trabalhadores foram alojados no curral para gado próximo ao escritório da sede. O cenário era deplorável. Havia redes armadas nas cercas do curral, cujo chão estava repleto de fezes do gado. Os trabalhadores já haviam improvisado uma pequena cozinha num dos compartimentos do curral, onde tinha sido feito o jantar do dia anterior e o desjejum.” O gerente considerava todas as condições de trabalho normais para o Pará.

Nessa ação, 49 pessoas foram resgatadas. Os trabalhadores tinham que pagar por tudo o que usavam, incluindo instrumentos de trabalho (motosserra, óleo, lima, botas, lanternas). Isso resultava em uma crescente dívida que comprometia todo o seu salário. “Havia dois empreiteiros, os conhecidos “gatos”, os quais usavam armas de fogo e facões para intimidar os trabalhadores”, relata Marinalva. Ambos foram presos na ação.

Em outra fiscalização, em fevereiro de 1998, na fazenda Estrela de Maceió, consta do relatório que “os trabalhadores aliciados foram transportados a partir de Redenção [município no Sul do Pará] até a fazenda (mais ou menos, 240 quilômetros) em caminhão com carroceria tipo gaiola, destinado ao transporte de gado bovino”.

Expropriação de terras

As duas fazendas somam juntas 90 mil hectares de área e possuem cerca de 40 mil cabeça de gado, segundo informações obtidas pelo MPT. Com base nos valores de mercado da terra e do boi na região, a Estrela de Alagoas e a Estrela de Maceió valem R$ 212,64 milhões. Inicialmente, a ação era de R$ 22,5 milhões, porém teve seu valor corrigido pois o tamanho do patrimônio estava baseado em informações subestimadas. Caso a ação seja deferida, o montante será destinado ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).

A Lima Araújo Agropecuária Ltda. e suas duas fazendas estão na “lista suja” divulgada pelo governo federal no final do ano passado com 52 propriedades rurais cujas autuações levaram à condenação de seus donos por trabalho escravo. Há na lista apenas cinco nomes que se repetem duas vezes: a Lima Araújo e o das famílias Bannach, Mutran e Quagliato – que possuem fazendas de gado na região Sul do Pará e, historicamente, têm dificultado a erradicação do trabalho escravo na região de expansão agrícola amazônica.

Em sua contestação na Justiça, a Lima Araújo critica o Ministério Público do Trabalho devido à desproporção entre a ação anterior de R$ 30 mil e esta de R$ 85 milhões.

Porém, esse valor é menos da metade dos R$ 180 milhões que valem os 90 mil hectares das fazendas. Caso o projeto de emenda constitucional do deputado Paulo Rocha (PT-PA) – que expropria para fins de reforma agrária terras em que for encontrado trabalho escravo – já tivesse sido aprovado pelo Congresso, as constantes reincidências da Lima Araújo poderiam levar
aos seus proprietários a um prejuízo muito maior. A Câmara ensaia pela nona vez a votação da PEC, devido ao clima de comoção popular gerado pela morte dos auditores do Trabalho em Unaí (MG) na semana passada. Mas apesar dos discursos indignados do presidente da Câmara, João Paulo Cunha, e de relatores das comissões, o projeto ainda espera vontade política para sair do papel.

Nova escravidão

Os direitos dos trabalhadores rurais freqüentemente são ignorados na chamada “fronteira agrícola”, onde a floresta amazônica perde espaço a cada dia para grandes fazendas de gado. Péssimos alojamentos e alimentação, atraso ou não-pagamento de salários e até privação de liberdade sob ameaça de morte acontecem com freqüência na região. Homens se tornam escravos do dia para a noite.

Para impedir que isso aconteça, grupos móveis de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego realizam vistorias de surpresa, aplicando multas e resgatando pessoas quando são constatadas irregularidades. De acordo com levantamento realizado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), Pará e Mato Grosso são os Estados com maior incidência de utilização de trabalho escravo. Os estados do Nordeste são grandes fornecedores de mão-de-obra. Em 2003, a Bahia entrou no rol dos que mais utilizam trabalho escravo, com mais de mil pessoas libertadas. A fiscalização do MTE libertou cerca de 5 mil pessoas no ano passado.

A escravidão de hoje é diferente daquela existente no século 19, mas tão perversa quanto. Devido à seca, à falta de terra para plantar e de incentivos dos governos para fixação do homem no campo, ao desemprego nas pequenas cidades do interior ou a tudo isso junto, o trabalhador acaba não vendo outra saída senão deixar sua casa em busca de sustento para a família. Ao ouvir rumores de que existe serviço farto em fazendas, ele vai para esses locais espontaneamente ou é aliciado por gatos (contratadores de mão-de-obra que fazem a ponte entre o empregador e o peão). Estes, muitas vezes, vêm buscá-lo de ônibus ou caminhão – o velho pau-de-arara.

Já na chegada, o peão vê que a realidade é bem diferente. A dívida que tem por conta do transporte aumentará em um ritmo constante, uma vez que o material de trabalho pessoal, como botas, é comprado na “cantina” do próprio gato, do dono da fazenda ou de alguém indicado por eles. Os gastos com refeições, remédios, pilhas ou cigarros vão para um “caderninho”, e o que é cobrado por um produto dificilmente será o seu preço real. Um par de chinelos pode custar o triplo. Além disso, é costume do gato não informar o montante, só anotar. Saber o valor correto não adiantaria muito, pois, na maioria das vezes, o local de trabalho fica em áreas isoladas e os peões não têm dinheiro. Cobra-se por alojamentos precários, sem condições de higiene.

No dia do pagamento, a dívida do trabalhador é maior do que o total que ele teria a receber – isso considerando que o acordo verbal feito com o gato é quebrado, tendo o peão direito a um valor bem menor que o combinado. Ao final, quem trabalhou meses sem receber nada acaba devedor do gato e do dono da fazenda e tem de continuar suando para poder quitar a dívida. Ou não consegue voltar para casa, pois a fazenda à qual foi levado fica a dezenas de quilômetros selva afora de algum lugar habitado.

APOIE

A REPÓRTER BRASIL

Sua contribuição permite que a gente continue revelando o que muita gente faz de tudo para esconder

LEIA TAMBÉM