A gente não quer só comida

 01/03/2004
 Simone Oliveira de Santos, 18 anos, estudante e moradora de Paraisópolis

A luta pela qualidade de vida torna-se prioridade na periferia da cidade

O posto de saúde do Jardim Jacira, em Itapecerica da Serra, atende uma média de cinco casos por mês de traumatismo. Os acidentes que provocam esse tipo de lesão são mais freqüentes no mês de agosto, quando há mais vento e crianças e jovens sobem na laje de casa para empinar pipa. A dimensão desse problema, comum em bairros pobres, é inversamente proporcional ao número de equipamentos públicos de cultura e lazer existentes na região. Ou seja, na falta de praças, parques, centros culturais e esportivos, a população fica sem alternativas senão improvisar.

O déficit de espaços públicos de cultura e lazer tem influência direta nos índices de violência urbana. Nos mapas produzidos pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP, constata-se que nas regiões em que há menor investimento do governo nessa área, o número de mortes de jovens é maior. Não por acaso, são os bairros periféricos que apresentam predominância de características como elevado índice de desemprego, menor renda e baixas taxas de escolaridade.

O campus da USP na capital paulista possui uma das maiores áreas verdes da cidade. Em outros tempos, era considerado um espaço cultural e de lazer tão importante quanto parques como o Ibirapuera ou o Carmo, com apresentação de shows musicais e atividades esportivas. Com a justificativa de garantir a segurança de salas de aula, laboratórios e escritórios, a reitoria da universidade determinou que o acesso ao campus, aos domingos, ficasse restrito a alunos, professores e funcionários, deixando os moradores das favelas vizinhas do Jardim São Remo e do Jaguaré sem opção de lazer.

"A miséria de determinadas regiões da cidade é também cultural. O jovem precisa de um espaço que sinta que é seu, com o qual se identifique", afirma Hamilton Faria, coordenador da área de cultura do Instituto Pólis e membro do Fórum Intermunicipal de Cultura. Para ele, a arte e a cultura têm sido a porta de entrada para muitos jovens no processo de participação popular.

As ações estatais de incentivo a projetos culturais, no entanto, têm privilegiado grandes empresas e personalidades de renome em detrimento das associações de bairro, centros de cultura popular ou mesmo grupos de música, teatro ou dança organizados por jovens da periferia. Os entraves burocráticos das leis de renúncia fiscal para incentivo à cultura, como a Mendonça (municipal) e a Rouanet (federal), acabam dificultando o acesso das populações mais pobres aos benefícios que visam conceder. Existem empresas ligadas ao marketing cultural que são contratadas para assessorar projetos e cobram um percentual sobre o montante liberado pelo governo. Além disso, muitos institutos, museus e universidades possuem departamentos especializados em preencher e encaminhar os formulários exigidos por essas leis – facilidade que a população carente não tem.

O "Ponto de Vista" é um jornal comunitário produzido por jovens de Guaianases, Zona Leste de São Paulo, e retrata os problemas da região, como gravidez na adolescência e violência. Feita de forma artesanal, a publicação nasceu na oficina do telecentro municipal do bairro – ponto comunitário de acesso a computadores –, mas sobrevive com muita dificuldade. Os pequenos comerciantes locais reconhecem a importância da iniciativa e têm financiado a impressão por meio de anúncios. Porém, com recursos cada vez mais escassos, o espaço e a possibilidade de integração abertos por essa experiência correm o risco de acabar. Thiago Guimarães, coordenador pedagógico de projetos do Governo Eletrônico da prefeitura, explica que os telecentros da cidade se destinam a promover a inclusão digital e incentivar o desenvolvimento de meios de expressão através de programas como as oficinas de comunicação comunitária. Mas, apesar do esforço pessoal de educadores dos telecentros, a prefeitura garante pouca ajuda a esses jovens.

Agora vai?

Até este momento, a melhor iniciativa para dar uma oportunidade aos projetos que não são assinados por um grande banco ou uma multinacional é o Programa de Valorização de Iniciativas Culturais (VAI), com força de lei. A primeira liberação de recursos para o programa – criado pelo vereador Nabil Bonduki e sancionado pela prefeita Marta Suplicy – deverá acontecer ainda neste início de ano. Segundo Bonduki, a meta do VAI é conceder anualmente até R$ 15 mil a iniciativas artístico-culturais, principalmente de jovens de baixa renda e de regiões desprovidas de equipamentos culturais. A previsão é de que seja destinada a verba de R$ 1 milhão para a primeira leva de projetos – valor ainda muito pequeno para a demanda na cidade. Um aumento na alocação de recursos para essa finalidade vai depender dos debates no Orçamento Participativo sobre a destinação das verbas municipais.

Para investir nessa área, as empresas querem garantia de grande visibilidade, e como na periferia o retorno institucional é pequeno, não interessa a quem visa unicamente ao lucro. Vale lembrar que as atuais leis de incentivo à cultura transferem para a iniciativa privada a escolha dos projetos beneficiados, apesar de boa parte dos recursos vir do Estado, ou seja, trata-se de dinheiro público, proveniente da renúncia fiscal. Por essa razão, o papel do governo no controle sobre os incentivos vem sendo debatido pela sociedade civil.

Outra proposta de Bonduki que tramita na Câmara propõe uma mudança na forma como o município investe em cultura, de forma a ampliar as ações para além da renúncia fiscal. O projeto prevê a criação do Sistema Municipal de Apoio à Cultura (Simac) e de um Fundo Municipal de Cultura e Comunicação, com o objetivo de incentivar projetos comunitários e de formação cultural. Seu ponto mais interessante e também polêmico é uma espécie de "pedágio" de até 30% dos recursos captados pelos grandes projetos, que iriam para um fundo de financiamento de iniciativas que não conseguem obter patrocínio. A aprovação, contudo, encontra resistência entre os vereadores e enfrenta o lobby das empresas de marketing cultural.

As primeiras tentativas de estabelecer o Conselho Municipal de Cultura na capital, para discutir com a sociedade civil as prioridades nessa área, remontam à década de 70. A lei atual que regulamenta o conselho é da administração de Luiza Erundina (1989-92). Mas o órgão permanec
eu desativado durante as gestões de Paulo Maluf e de Celso Pitta e só voltou a funcionar em 2001, como tantos outros na cidade.

"Não temos no município uma tradição de descentralização cultural, não apenas de equipamentos, mas de iniciativas, de criatividade, de trabalho, que garanta a autonomia dos grupos locais", lembra Hamilton Faria. Hoje, o papel da cultura e do lazer é discutido em fóruns, com artistas, pessoas interessadas nesses temas e organizações que trabalham na área reunidos para pensar políticas, projetos e ações que mudem o panorama de abandono que se vê em São Paulo.

Carta: Paraisópolis, zona Sul

“Paraisópolis é uma favela gigantesca em meio aos belíssimos prédios do bairro do Morumbi. Sua população é composta em maioria por imigrantes nordestinos, que vieram pra São Paulo em busca de seus sonhos e, hoje compõe uma massa de suores, cheiros, cores e histórias tão distintas, que fazem dessa favela um lugar inigualável para se morar. No entanto, nos últimos anos, houve (e ainda há) um crescimento descontrolado da favela, decorrente de outra migração: a de pessoas de outros bairros de São Paulo. Problemas que já eram preocupantes, se agravaram. Um deles, que talvez seja até a causa de outros, é a falta de lazer.

Pode-se apontar como razões desse problema a falta de espaço decorrente da construção não planejada de moradias, o descaso das autoridades públicas com relação à construção de praças ou quadras de esportes e a falta de projetos de inserção cultural na comunidade. As conseqüências são inúmeras: só para citar um exemplo, o número de bares que oferecem música ao vivo se multiplicou em Paraisópolis no último ano e o público freqüentador deixou de ser apenas de adultos e passou a contar com adolescentes. Esses bares têm como objetivo principal o comércio de bebida alcoólica e isso induz o jovem a consumi-la e o levando ao caminho do alcoolismo.

As crianças, grupo mais atingido pela falta de áreas de lazer, jogam futebol na rua, sobem nas lajes ou ficam até mesmo nos becos para poderem soltar pipa. Jogam bolinha de gude sobre a terra das vielas, ou, o que é pior, ficam enclausuradas em suas casas, assistindo televisão. Essas últimas, correm o risco de se tornarem adolescentes alienados do mundo que os rodeiam, pois não sabem o que é brincar fora dos portões de casa ou da escola.

A população possui alguns espaços culturais, que são a biblioteca da comunidade e projetos sociais tais como o Barracão dos Sonhos e o Projeto Florescer, surgidos de iniciativas de moradores, e o Telecentro, implantado pela Prefeitura. Porém, são insuficientes para uma população de 65 mil habitantes, segundo o censo de 2000. Muitos nem sabem da existência desses projetos.

É inacreditável, mas grande parte das pessoas que vivem em Paraisópolis jamais foi ao cinema ou teatro, raramente passeou em um shopping center, não reconhece o prazer de se ler um livro e muito menos já entrou em um museu. É uma realidade dura, pois o significado de cidadania, cultura, diversão e liberdade se perdem em meio às rotinas de trabalho, problemas e dificuldades que todos enfrentam.

Paraisópolis não é apenas mais uma favela que agride o belo rosto da capital, mas sim é a cara do Brasil miscigenado e do povo sofrido, que cansa de esperar para ser apresentado à cartilha dos Diretos Humanos, que diz que todos têm o direito de desfrutar da arte e da cultura, além do direito ao descanso e ao lazer.”

Simone Oliveira de Santos, 18 anos, estudante e moradora de Paraisópolis

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