O povo entra em cena

Como os jovens excluídos da cidade de São Paulo, que conta com mais de 10 milhões de habitantes, estão se transformando de espectadores em protagonistas nas decisões de seu futuro
Texto e fotos: Leonardo Sakamoto
 01/03/2004
Rodrigo Tadeu Mendonça, 19 anos (à esquerda) e Ricardo dos Reis Souza, 21, são alfabetizadores na Paróquia Santos Mártires, Jardim Ângela

Logo após a fundação da vila de São Paulo de Piratininga, José de Anchieta, com a ajuda de índios catequizados, ergueu um muro de taipa e estacas para ajudar a mantê-la "segura de todo o embate", como descreveu o próprio jesuíta. Os indesejados eram índios carijós e tupis, entre outros, que não haviam se convertido à fé cristã e, por diversas vezes, tentaram tomar o arraial, como na fracassada invasão de 10 de julho de 1562. Ao longo dos anos, a vila se expandiu para além da cerca de barro, que caiu de velha. Vieram os bandeirantes – hoje considerados heróis paulistas –, que caçaram, mataram e escravizaram milhares de índios sertão adentro. Da África foram trazidos negros, que tiveram de suportar árduos trabalhos nas fazendas do interior ou o açoite de comerciantes e artesãos na capital. No início do século 19, a cidade tornou-se reduto de estudantes de direito, que fizeram poemas sobre a morte e discursos pela liberdade. Depois cheirou a café torrado e a fumaça de chaminé, odores misturados ao suor de imigrantes, camponeses e operários. Mas, apesar da frenética transformação do pequeno burgo quinhentista em uma das maiores e mais populosas metrópoles do mundo, centro financeiro e comercial da América do Sul, a barreira ainda existe, agora invisível. E, hoje, 450 anos após a fundação de São Paulo, impede o acesso dos excluídos à cidadania.

Mas não se pode dizer que a história da cidade tenha sido marcada pela passividade das classes mais pobres. Se houve melhora na maneira como o poder público as trata, isso se deve à mobilização, pressão e luta dos movimentos populares, que saíram da clandestinidade com o fim da ditadura militar. Mesmo assim, a violência não deixou de ser utilizada para reprimir atitudes de "insubordinação", como ainda acontece na retirada à força de famílias de imóveis ocupados na região central ou de terrenos da periferia.

O Brasil, quinto maior país do mundo em extensão territorial e em população, é quase um continente. A capital paulista, com seus mais de 10 milhões de habitantes, equivale a um estado. Se vivêssemos numa pequena comunidade democrática, poderíamos participar diretamente da solução de todas as questões que afetam nossa vida. Entretanto, como isso é inviável, temos de ser representados por políticos que defendam nossos interesses nas tomadas de decisão em instâncias públicas. Ainda assim, cada pessoa pode e deve ter influência direta em assuntos que atingem sua realidade, num contínuo processo de descentralização do poder.

A Carta Magna aprovada em 1988 deixa bem claro em seu primeiro artigo, parágrafo único: "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição". Com base nesse princípio, a população está legalmente habilitada a compartilhar decisões e responsabilidades com o poder público – como se vê nos conselhos gestores, nos orçamentos participativos e em parcerias firmadas entre organizações da sociedade civil e o governo. E para que as pessoas pudessem se organizar, tanto para desenvolver projetos próprios quanto para pressionar o Estado para que efetivamente respeite os direitos sociais, foram surgindo espaços públicos de discussão, como por exemplo as Pastorais, ligadas à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), órgão da Igreja Católica, o Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC) e os fóruns de cultura do município de São Paulo.

Esta reportagem percorreu, no final de 2003, mais de 3 mil quilômetros na periferia da cidade, e constatou que a população pobre e carente está, aos poucos, procurando tomar as rédeas de seu futuro e alterar uma herança de 450 anos de injustiça social. E como exclusão não obedece a nenhum zoneamento urbano, aqui periferia extrapola o sentido estritamente geográfico para assumir um significado mais amplo, abarcando a grande massa de pessoas espalhadas por toda a cidade que nunca tiveram a oportunidade de vivenciar a cidadania em sua plenitude. Gente como Rodrigo, Simone, Luciana, Maurantonia, jovens autores das cartas reproduzidas ao longo desta reportagem. Todos eles estão do lado de fora do muro que separa a cidade legal – com boa qualidade de vida – da ilegal, em que o acesso a uma existência digna ainda é precário.

Dignidade

As cartas reproduzidas nesta matéria foram inspiradas na experiência desenvolvida pela Rede de Observatórios de Direitos Humanos – uma iniciativa que reuniu dezenas de ONGs sob a coordenação do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) e do Instituto São Paulo contra a Violência. O trabalho envolveu jovens de diversos estados do país, visando traçar um panorama dos direitos humanos no Brasil.

Em 2002, a terceira edição do evento teve a participação de 180 pessoas, que durante meses discutiram a Declaração Universal dos Direitos Humanos e trocaram informações, por meio de cartas, a respeito de sua vida e sua visão de mundo. Muitos perceberam que seus problemas do dia-a-dia, como gravidez na adolescência e alcoolismo dos pais, são os mesmos enfrentados em outras partes do país, o que significa que não estão isolados. "A conquista da dignidade passa por uma noção de coletividade, por você perceber o outro e se projetar no grupo", afirma Marcelo Daher, coordenador executivo do projeto e pesquisador do NEV.

Ao final, foi preparado um relatório para propagar essa discussão. Vale lembrar que um dos principais objetivos do projeto é incluir os jovens no debate sobre direitos humanos, até porque são eles que terão de procurar solução para os problemas sociais no futuro. "Não faz sentido dizer que as pessoas não conhecem os direitos humanos, pois todos sabem o que é necessário para ter dignidade", conclui Daher.

Com a transição de administração federal, os recursos para a continuidade do projeto deixaram de ser alocados, e o último relatório publicado foi o de 2002.

Carta: Jardim Ângela, zona Sul

Eu morava no Parque Fernanda, uma região onde não havia muitas opções de futuro. Ou eu entrava nas rodinhas de “amigos” – e lá, há muitas – ou vinha morar com a minha avó aqui no Jardim Ângela. E assim entrei no grupo de jovens da Igreja. Com eles, comecei a ajudar em uma casa chamada “Arca”, que cuida de crianças deficientes da região. No come&cced
il;o, foi chocante e complicado ao mesmo tempo, pois não sabia direito como cuidar daquelas crianças com tantas dificuldades. Mas com algumas instruções, logo peguei o jeito. Foi muito gratificante e aprendi a dar mais valor à minha própria saúde e vida todos os dias. Além do mais, elas me passaram um carinho e um amor tão grandes… Isso faz seis meses e só não estou mais lá por falta de tempo.

Com quase dois anos participando de projetos sociais, aprendi a ser mais humano, a tentar solucionar os problemas das pessoas ao meu redor e comecei a entender os porquês de tanta judiação que assola a população do Jardim Ângela. Hoje, tenho vários trabalhos na comunidade. Também sou educador de alfabetização de jovens e adultos, monitor na igreja, mediador de leitura na Biblioteca, enfim participo ao máximo de tudo, promovendo o ser humano, com a educação, a cultura e o diálogo.

Mesmo sendo jovem, julgo já ter uma mente aberta para as soluções de muitos problemas de uma sociedade esquecida pelos barões do poder. Sei que não posso só ficar me lamentando dos problemas e procuro fazer a minha parte, dedicando meu tempo e meus dons. Até para dar mais esperança a mim e aos outros

Tenho a certeza de que podia muito bem estar curtindo a vida e fazendo baderna, mas nos dias de hoje você tem que alcançar a maturidade o mais rápido possível para viver nessa selva que é São Paulo. E a pessoa que consegue colocar a mente voltada para o social tem muito mais chance de enfrentar os seus problemas individuais.

Rodrigo Tadeu Mendonça, 19 anos, é estudante e educador no Jardim Ângela

Tomada de decisões
A população assume poder institucional e decide o próprio caminho

Viver com dignidade
Movimentos populares são os principais responsáveis pelas políticas públicas de moradia

Saúde e meio ambiente
O objetivo é conquistar melhor qualidade de vida

A gente não quer só comida
A luta pela qualidade de vida torna-se prioridade na periferia da cidade

Educação e comunidade
Do combate ao analfabetismo ao ensino superior

Primeiro semestre 2004

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