Viver com dignidade

 01/03/2004
Luciana Vítor, 17 anos, estudante e moradora de um prédio ocupado pelo MSTC

Movimentos populares são os principais responsáveis pelas políticas públicas de moradia

 

Apesar da chuva intermitente de um sábado de setembro, cerca de 500 pessoas trabalhavam num mutirão no Itaim Paulista – bairro da Zona Leste distante mais de 50 quilômetros da planejada região dos Jardins. O conjunto habitacional está sendo erguido no alto de um morro, cercado de um lado por uma empresa de ônibus – da qual muitos desses pedreiros amadores são funcionários – e do outro por um CEU. A construção dos 508 apartamentos com dois dormitórios, sala, cozinha, banheiro e área de serviço foi viabilizada por uma parceria com o governo estadual. O trabalho segue contínuo, com costureiras peneirando areia, ambulantes carregando blocos, vendedores preparando o cimento e pedreiros erguendo as paredes.

Somente no Natal, no ano-novo e na sexta-feira santa não há mutirão. Francisca de Souza, de 45 anos, peneirava areia naquela tarde de sábado. Com dois filhos casados, mora apenas com o marido, motorista da Viação Penha, e desembolsa R$ 350 por mês de aluguel. Se não fosse o mutirão, ela diz que continuaria pagando para morar até o final da vida.

"O mutirão é um sacrifício que as pessoas enfrentam porque não têm outra alternativa", explica Dalcides Neto, coordenador do Movimento de Moradia da Zona Leste (MMZL), que reúne a Pastoral da Moradia e a Central de Entidades Populares e atua em 42 comunidades da região, num total de dez bairros. Além do canteiro de obras do Itaim Paulista, há outros 308 apartamentos em construção em Cangaíba, 200 no Jardim Naceja e 560 em Cidade Tiradentes, aos quais se somam 20 sobrados em São Miguel. Até setembro de 2003, os mutirões dessas organizações já haviam entregado mais de 5,6 mil moradias. Um respeitável currículo para o MMZL, que completa 20 anos de vida em 2004.

Há parcerias estabelecidas com os governos municipal, através da Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (Cohab), e estadual, por intermédio da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU). Os mutirões são tocados em sistema de autogestão, ou seja, os recursos são transferidos para as entidades que erguem os conjuntos habitacionais. Nos acordos com a prefeitura, o MMZL fica responsável por todas as etapas da construção, da terraplanagem até a organização das contas do condomínio, com os moradores já nos apartamentos. O governo estadual, por sua vez, assume a execução de algumas etapas do processo nas parcerias firmadas, como é o caso do conjunto que está sendo erguido no Itaim Paulista, o que tem provocado críticas. "Seria mais rápido se recebêssemos os recursos para fazer tudo", diz Neto. "O sistema de autogestão prevê a contratação de mão-de-obra qualificada, como mestre-de-obras e eletricistas, enquanto o mutirante trabalha apenas como ajudante. Nós nos preocupamos com a qualidade, ao passo que as construtoras se interessam apenas pelo lucro", completa ele.

Está previsto em lei estadual o investimento de 1% do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) em construção de moradias. Desse montante, pelo menos 10% devem ser direcionados aos mutirões – pouco para movimentos populares que afirmam ter capacidade para construir mais, melhor e mais rápido que a máquina estatal. A prefeitura, por sua vez, destina 2,5% de sua arrecadação total para moradias populares, na maioria dos casos em regime de mutirão.

Infelizmente, não há integração entre essas duas esferas de poder. Cada uma desenvolve um programa próprio de construção de moradias populares, sem nenhum planejamento comum. "Há uma competição pública eleitoral, em que a população não é beneficiada", afirma Neto. Ele diz que melhor seria se os recursos fossem todos transferidos aos municípios, já que o poder local está mais próximo dos moradores.

Apesar dos mutirões, o acesso das populações carentes à moradia própria tem um sério problema: financiamento. Arrastam-se há anos as discussões sobre a criação de um fundo nacional para habitação, com recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e do orçamento da União, com uma reserva para bancar aquele que não puder pagar as mensalidades do apartamento novo. De acordo com Neto, uma pesquisa realizada pelo movimento mostra que cerca de 80% das famílias das 42 comunidades participantes recebem menos de três salários mínimos, ou seja, estão fora dos programas de financiamento habitacional existentes. Ou seja, quem mais precisa é excluído do planejamento estatal.

"Se o fundo nacional estivesse aprovado, poderíamos gerar milhões de empregos e estancar a migração de pessoas que vão em busca de uma vida melhor em outras regiões", afirma Neto. Lisete Gomes, uma das coordenadoras do MSTC, concorda com ele. "Estamos pressionando o governo para que atenda às pessoas de baixa renda. O Programa de Arrendamento Residencial (PAR), da Caixa Econômica Federal (CEF), não é bom, pois destina-se a famílias que ganham mais de três salários mínimos." Além disso, o teto de financiamento do PAR é de R$ 32 mil, insuficiente para comprar um imóvel no centro da cidade.

Ocupações

Pensativa, Lisete tenta encontrar uma explicação para o que aconteceu na madrugada do dia 7 de setembro de 2003, quando um incêndio consumiu cinco andares de um edifício na Rua Brigadeiro Tobias. Por trás, o prédio fica encostado ao de número 700 da Avenida Prestes Maia, ambos ocupados pelo MSTC. Naquela noite, uma menina de 4 anos morreu, e 72 famílias perderam tudo.

"Ouvimos barulho de vidros se quebrando. As labaredas eram enormes. Se os bombeiros tivessem agido como fazem em prédios da classe alta, como já vi acontecer, não teria queimado tanto", lembra Lisete. Com a interdição do prédio que pegou fogo, seus antigos ocupantes foram se abrigar no edifício da Prestes Maia. Resultado: 468 famílias espremidas em 18 andares. Uma área de 28 metros quadrados abrigava entre duas e três famílias. Senhoras idosas e doentes subiam e desciam lentamente as escadas, pois não existe elevador.

Ocupados desde novembro de 2002, os dois prédios foram desapropriados pela prefeitura e, ironicamente, a publicação no "Diário Oficial" ocorrera um dia antes do incêndio. Avaliados em R$ 3,5 milhões e com dívidas de R$ 3,7 milhões relativas a Imposto Predial e Terri
torial Urbano (IPTU), os imóveis foram alvo do Decreto de Interesse Social (DIS), uma vez que estavam vagos havia anos e não vinham cumprindo sua função social, como exige a Constituição. Após uma reforma completa, que será financiada pela CEF, 249 unidades de um ou dois quartos serão entregues às famílias. Os demais moradores terão de continuar na luta por um lugar para morar.

Assim como esses, no centro da capital existem muitos outros imóveis fechados e com enormes dívidas em impostos. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da Fundação João Pinheiro, o município de São Paulo possui 420.327 unidades vagas (11,8% do total) e um déficit habitacional de cerca de 380 mil domicílios. Em todo o país, há 4,6 milhões de imóveis vagos e uma demanda de 6,6 milhões de moradias. No centro de São Paulo, há 39.289 unidades vazias, muitas delas por especulação imobiliária.

Por que a área central da cidade é o alvo preferido de muitos movimentos de moradia hoje? "Porque lá já existe tudo, não é preciso levar estrutura. Há escola, hospital, cultura… Ninguém vai pagar quatro conduções a uma empregada diarista que mora na periferia", explica Lisete. Além daquela ocupação na região da Luz, há outras em Santa Cecília (107 famílias), duas na Avenida 9 de Julho (228) e uma próximo da Estação Bresser do metrô (17). O único grupo do MSTC que não está na região central é aquele acampado num terreno na Avenida Águia de Haia, na Zona Leste.

Além da desapropriação, há outras formas de impedir que a especulação imobiliária faça mais sem-teto. De acordo com o vereador Nabil Bonduki (PT), que é também professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, a aplicação de um IPTU progressivo, que aumenta proporcionalmente ao tempo em que o imóvel permanece fechado, "vai fazer com que os proprietários pensem duas vezes antes de cobrar um valor muito alto pelo aluguel". Proposto no plano diretor da cidade, esse mecanismo aguarda regulamentação.

A recuperação da área central de São Paulo não se restringe a uma valorização funcional e estética das ruas, edifícios e bens culturais, como defendem algumas organizações empresariais. Inclui também o repovoamento do local, trazendo vida à região, com incentivos para o estabelecimento das classes média e baixa.

Há projetos governamentais com esse propósito, mas Lisete avalia que as três esferas de poder não estão empenhadas como deveriam na solução do problema e demoram a entrar em ação. "Coisas que eles fazem hoje eram reivindicadas pelo movimento há muito tempo." A atuação do MSTC se assemelha à do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), que pressiona as autoridades por uma solução e ocupa imóveis que julga improdutivos. A validade das ocupações constitui uma longa e polêmica discussão, mas o fato é que muitas iniciativas e políticas públicas não teriam surgido sem a pressão popular.

Um fato que salta aos olhos é a expressiva participação da mulher nesses movimentos. A coordenação do MSTC é composta por dez pessoas, todas do sexo feminino. Além disso, dos 16 representantes populares do primeiro mandato do Conselho Municipal de Habitação, 12 são mulheres. Uma delas, Marilei Santana, coordenadora executiva do MMZL, foi a conselheira eleita com a maior votação: 14.267. Número expressivo, principalmente se considerarmos que o voto não é obrigatório.

Carta: Centro

“Filha de uma cozinheira desempregada, moro há dez meses em um prédio ocupado pelo Movimento Sem-Teto do Centro [MSTC], na avenida Prestes Maia, 911. Graças à luta por moradia é que não moro debaixo da ponte ou na rua. Pois há mais ou menos um ano minha mãe não consegue emprego e não temos dinheiro para pagar um aluguel.

O movimento por moradia vem revitalizando de verdade o Centro de São Paulo. Pois do que adianta falar de revitalização se a população está toda nas periferias, enquanto a região central está lotada de edifícios enormes, devendo altos valores de IPTU e vazios. Revitalizar o centro não é só pensar em museus e essas coisas enquanto o povo fica na rua. Porque quem paga aluguel não come e quem come não paga aluguel!”

“No início, eu não tinha muita fé. Nunca tinha participado de uma ocupação e não acreditava que ocupando prédios abandonados teria algo no futuro. Com o passar do tempo, vi que as coisas foram mudando e comecei a enxergar o movimento com outros olhos, de seriedade e confiança. Fui me interessando nas atividades que tínhamos pela frente, para a melhoria do prédio que havíamos ocupado. Com muita luta e esforço limpamos tudo e organizamos as coisas da melhor maneira possível.”

“Estou no movimento desde agosto de 2002, quando comecei a participar das reuniões dos grupos de base. Mas foi no dia 03 de novembro do mesmo ano que realmente pude ver o que era tudo aquilo. Nesse dia, ocupamos este prédio da Prestes Maia. Quando chegamos aqui não sabíamos se isso era realmente um prédio ou um depósito de lixo. Tivemos muito trabalho para organizá-lo, com o esforço e determinação de cada família. Ainda não é o que queremos, mas temos que continuar lutando pois, só assim, teremos uma moradia digna.”

Tânia Carolina de Moura, 19 anos, Fernanda Abreu, 20 anos, e Luciana Vítor, 17 anos, estudantes e moradoras de um prédio ocupado pelo MSTC

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