Artigo – A má distribuição da água no Brasil

A extração de apenas 1/3 das reservas de água dos rios do Nordeste representa potencial suficiente para abastecer os 47 milhões de nordestinos com a taxa estipulada por organismos mundiais
Por João Suassuna
 05/04/2004

Aprendemos na escola que o nosso planeta é constituído de 1/3 de terra e 2/3 de água. Essa fração hídrica corresponde a aproximadamente 1,37 bilhão de km³, 97% dos quais constituem as águas dos oceanos e dos mares – portanto são águas salgadas –, restando apenas 3% de água doce.

Desse percentual de água doce, que corresponde a cerca de 40 milhões de km³, grande parte está localizada nas calotas polares e nos glaciares, onde não existe tecnologia disponível para a captação e o transporte dessa água para uso das populações. O que resta são cerca de 100 mil km³, ou aproximadamente 0,3% do total de água doce disponível, para serem utilizados pelos habitantes do planeta, hoje estimados em mais de 6 bilhões de pessoas (70% desse volume são destinados à irrigação, 20% à indústria e somente 10% ao consumo humano). Há muita água, mas desigualmente distribuída: 60% se encontram em apenas 9 países, enquanto 80 outros enfrentam escassez. Pouco menos de um bilhão de pessoas consomem 86% da água existente no planeta, enquanto para 1,4 bilhão é insuficiente e para dois bilhões não é tratada, o que gera 85% de doenças veiculadas pela água.

O Brasil é considerado um país riquíssimo em termos hidrológicos, pois detém cerca de 12% da água doce que escorre superficialmente no mundo. O problema é que esse volume é desigualmente distribuído: 70% estão na Amazônia, região com menos de 7% da população nacional (existe muita água em local com poucos habitantes), 15% no Centro-Oeste, 6% no Sul e no Sudeste e apenas 3% no Nordeste, sendo 2/3 destes localizados na bacia do rio São Francisco. Além dessas desigualdades, não sabemos usar a água, pois 46% dela é desperdiçada nos vazamentos das tubulações ao longo das redes de distribuição, o que daria para abastecer toda a França, a Bélgica, a Suíça e o Norte da Itália. É urgente, portanto, um novo padrão cultural para utilização dos nossos recursos hídricos.

Mesmo com esses quantitativos extremamente reduzidos com relação ao Nordeste, as descargas dos seus rios representam uma infiltração de água nos aqüíferos da ordem de 58 bilhões de m³/ano. A extração de apenas 1/3 dessas reservas representa potencial suficiente para abastecer toda a população nordestina (estimada hoje em cerca de 47 milhões de pessoas) com uma taxa de 200/litros/pessoa/dia, preconizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), e irrigar ainda cerca de 2 milhões de hectares com uma taxa de 7.000 m³/ha/ano.

Em termos de disponibilidade hídrica per capita, existem modalidades de distribuição classificadas pela OMS, em diversos locais do planeta, inclusive no território nacional, que consideram regiões abundantes em água aquelas que disponibilizam volumes superiores a 20 mil m³/pessoa/ano, passando pelas classes intermediárias, que disponibilizam cerca de 5 mil m³/pessoa/ano, até as portadoras de situações críticas, que disponibilizam volumes inferiores a 1.500 m³/pessoa/ano. Na classe abundante, estão considerados todos os Estados da região Norte do país, sendo Roraima o campeão em oferta de água, com a incrível marca de 1,7 bilhão m³/pessoa/ano.

Dos estados nordestinos pertencentes ao Semi-Árido, apenas o Piauí – em posição intermediária – está em situação confortável, fato este advindo da riqueza hídrica em seu subsolo sedimentário e da existência de um grande rio perene, o Parnaíba, que faz fronteira com o Maranhão.

A Bahia – em situação próxima à crítica, com fornecimentos volumétricos superiores a 2.500 m³/pessoa/ano – chega a ter mais água do que o Estado de São Paulo, por ser beneficiado pelo rio São Francisco, que corta o estado de sul a norte, e por possuir áreas sedimentares esparsas, mas significativas, em seu território. A situação dos demais estados nordestinos (Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas e Sergipe) é preocupante, pois estão numa posição crítica pelo fato de oferecerem volumes inferiores a 2.500 m³/pessoa/ano, destacando-se, entre eles, a Paraíba, com fornecimento de cerca de 1.437 m³/pessoa/ano, e Pernambuco, estado campeoníssimo em baixa oferta hídrica para os seus habitantes, com o fornecimento de apenas 1.320 m³/pessoa/ano.

Essa desigualdade de percentuais hídricos existente no país, com visível desvantagem para o Nordeste brasileiro, é conseqüência das características geoambientais da região, notadamente da presença do escudo cristalino em cerca de 70% da superfície do Semi-Árido nordestino (o que dificulta o acúmulo de água no seu subsolo), da topografia, pela insuficiência de boqueirões para serem fechados, e das secas que costumeiramente assolam a região. Além do mais, outros problemas têm agravado a escassez dos recursos hídricos: o aumento da temperatura global, elevando os índices de evaporação, o desmatamento das nascentes, a poluição, o crescimento das cidades, o aumento das demandas para consumo humano e irrigação e a má gestão dos recursos hídricos (pela falta de cuidado no uso da água disponível). Em conseqüência disso, 45% da população do país não têm acesso a água tratada e 96 milhões de pessoas vivem sem esgoto.

Finalmente, seguindo os ensinamentos do hidrólogo da USP, Aldo Rebouças, é mais importante saber usar a gota d´água disponível do que ostentar sua abundância. Por ser um bem natural escasso, nota-se uma corrida desenfreada à posse privada da água doce. Quem controla a água controla a vida. Quem controla a vida detém o poder.

João Suassuna é engenheiro agrônomo, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e um nos maiores especialistas na questão hídrica nordestina

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