O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) ocupou neste sábado, 17 de abril, a fazenda Peruano, em Eldorado dos Carajás (PA), após evento que lembrou o oitavo aniversário do assassinato de 19 trabalhadores rurais pela polícia militar em uma manifestação pela reforma agrária. De acordo com o movimento, cerca de 1200 famílias marcharam 12 quilômetros, da "Curva do ‘S’" – local na rodovia PA-150 onde ocorreu o massacre em 1996 – até a propriedade e estão acampadas a um quilômetro da sede. Os trabalhadores pretendem continuar na Peruano.
A fazenda com mais de 10 mil hectares de área e, de acordo com o proprietário Evandro Mutran, 11 mil cabeças de gado, estava na pauta de reivindicações dos movimentos sociais para a reforma agrária. Uma das principais justificativas foi a constatação de trabalho escravo na propriedade em 13 de dezembro de 2001, quando 54 pessoas foram libertadas pelo grupo móvel de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego.
A equipe de fiscalização verificou em 2001 que pessoas não eram pagas havia meses, recebendo apenas arroz, feijão e alojamento – pequenas barracas de madeira, palha ou lona, em que se amontoavam mais de dez redes. A água, suja e imprópria, servia para consumo, banho e lavagem de roupa. Um perigo, haja visto que muitas vezes a pele ficava contaminada com veneno usado no pasto e não havia equipamentos de proteção. Segundo Marinalva Cardoso Dantas, chefe da equipe, ao todo foram registrados 20 autos de infração – entre eles o de trabalho infantil. A fazenda de gado, considerada modelo no desenvolvimento de matrizes reprodutoras, inseminação artificial e comercialização de embriões, foi obrigada a pagar os salários e direitos trabalhistas devidos.
A família Mutran tem um histórico de problemas relacionado com o trabalho escravo na região Sudeste do Pará e outras de suas fazendas estão tendo suas desapropriações exigidas pelo MST e pela Federação dos Trabalhadores da Agricultura no Pará (Fetagri), como a Cabaceiras, a Mutamba, a Balão e a Lajedo (colocar o link da Carta Maior para a matéria sobre os Mutran).
Vida de gado
A pele de Manuel (nome fictício para proteger a vítima) se transformou em couro, curtida anos a fio pelo sol da Amazônia e pelo suor de seu rosto. No sudeste do Pará, onde boi vale mais que gente, talvez isso lhe fosse útil. Mas acabou servente dos próprios bois, com a tarefa de limpar o pasto. “Fizeram açude para o gado beber e nós bebíamos e usávamos também.” Trabalhava de domingo a domingo, mas nada de pagamento, só feijão, arroz e a lona para cobrir-se de noite. Um outro tipo de cerca, com farpas que iam mais fundo, o impedia de desistir: “O fiscal de serviço andava armado. Se o pessoal quisesse ir embora sem terminar a tarefa, eles ameaçavam, e aí o sujeito voltava”.
Na hora de acertar as contas, os gatos informaram que Manuel e os outros tinham “comido” todo o pagamento e, se quisessem dinheiro, teriam de ficar e trabalhar mais. “Eles dizem que a lei não entra na fazenda.” Mesmo assim, Manuel resolveu ir atrás dos seus direitos.
Com base em sua denúncia, a fiscalização entrou na Peruano em dezembro de 2001. Após ter seus direitos pagos pela fazenda, disse que tomaria o rumo de volta ao Nordeste para rever os filhos, depois de quatro anos. “Quem dá queixa tem de sair, porque senão dança. Perde a vida e ninguém sabe quem matou.” A intenção era começar de novo, de forma diferente, pois, na verdade, o cativeiro é apenas a ponta de um novelo que, desenrolado, se inicia na própria terra de cada trabalhador.
Manuel nasceu às margens do rio Parnaíba, no dia 8 de outubro. Do ano não se lembra, e os documentos que poderiam atestar sua idade se perderam. De lá se mudou ainda jovem. Acredita que hoje tenha em torno de 40 anos. Certeza fica para a quantidade de filhos: cinco, todos com o primeiro nome do pai. Manuel das Chagas é o mais novo, com 8 anos.
A região possui água o ano inteiro por conta do rio. Terra é que é difícil. Morador de um vilarejo, não conseguiu área para fazer um roçado só seu e por isso era obrigado a plantar na propriedade dos outros e dividir o resultado da produção de subsistência com o dono. “Se tivesse terra não teria vindo para o Pará”, explicou.
A família o acompanhou quando decidiu ir a Eldorado dos Carajás, atraído pelas histórias de trabalho farto naquela região de fronteira agrícola. Com o tempo, foram embora e ele continuou sozinho, de pasto em pasto. Em uma das oito vezes que pegou malária, parou o serviço para se tratar e ficou sem receber os 30 dias que tinha trabalhado.