Brasília – Duas em cada cinco pessoas que fazem parte da população rural do Mato Grosso se envolveram em conflitos agrários no ano passado. O dado é da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que apresentou nesta sexta-feira (16) o relatório “Conflitos no campo – Brasil 2003”. Os número de conflitos, que chegou a 149 no Estado, somam oito categorias: assassinatos, tentativa de assassinatos, mortos em conseqüência, ameaçados de morte, torturados, agredidos fisicamente, presos e feridos.
Fronteira de expansão do agronegócio – em especial da cultura extensiva de soja -, Mato Grosso ocupa o primeiro lugar no ranking de violência rural de 2003 presente no documento divulgado pela CPT. O índice é o resultado de uma operação de divisão do número registrado de casos de violência com a população rural de cada Estado. Em segundo lugar da lista está Rondônia, seguido de Goíás, Tocantins e Mato Grosso do Sul, o que confirma o foco de violência na Região Centro-Oeste.
Autor de análises presentes no relatório, o professor de geografia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Carlos Walter Porto Gonçalves, sublinha a semelhança entre o propalado agronegócio, freqüentemente apontado como atual “motor” do país, e a produção de cana-de-açúcar, nos séculos XVI e XVII. Naquela época, destaca o professor, o Brasil se utilizava de técnicas avançadas e era o maior produtor da “maior mercadoria manufaturada do mundo naquela época”. “A soja é um modelo atualizado, mas tão moderno quanto a produção de cana era naquele período”, compara.
“Aquilo que é moderno e que ’salva’ as finanças do país também está impedindo a democratização na terra”, complementa o presidente da CPT, dom Tomás Balduíno. Somado à questão do modelo de desenvolvimento, Balduíno apontou a atuação do Poder Judiciário, que segundo ele “toma parte para o direito absoluto da prioridade”, como outro fator preponderante no que concerne aos conflitos no campo.
E alguns dados selecionados do relatório pelo professor da UFF parecem sustentar a afirmação do presidente da CPT. Na mesma Unidade Federativa de Mato Grosso, por exemplo, a quantidade de famílias que foram expulsas [sem instrumento jurídico] no ano passado foi extremamente reduzida. “O poder público, principalmente por meio da Justiça estadual, fez o que o poder privado quer que faça. A ‘privatização‘ é tanta que o poder público expulsou as pessoas na forma da lei”, sublinha.
O resultado mostra que o Centro-Oeste foi a região que teve o maior número envolvidos em conflito em 2003: 310.592 (aumento de 27% em relação a 2002), o que equivale a 26% do total de pessoas que fizeram parte desse grupo em todo o Brasil. O número de despejados pelo Poder Judiciário também foi expressivo: 62.995 (36% a mais que em 2002), o que representa 35,7% do total de desepejos do país no ano passado.
Sinal de mobilização
Em números absolutos, 2003 foi o ano com o maior número de assassinatos desde o final dos anos 80 e início de 90. Foram 73 assassinatos, em comparação aos 43 registrados em 2002. “Os [trabalhadores] sem terra acreditaram no governo Lula. Eles pensaram “agora é a nossa vez” e foram acampando”, pontuou o presidente da CPT, dom Tomás Balduíno. “Como não tem escritório para credenciamento, eles pegaram a lona e foram para a terra.”
Para o professor Gonçalves, existe uma similaridade histórica entre a mobilização social da época de pico da violência agrária anterior, da qual as eleições de 1989 é um símbolo, e o ano passado. E os dados do relatório são uma evidência de que, nesses momentos, o poder público brasileiro, mais especificamente no âmbito estadual em 2003, assume seu caráter patriarcal e patrimonialista que resulta no aumento de conflitos agrários. “O Estado, no Brasil, ainda funciona como patrimônio familiar”.
Da Agência Carta Maior