As chuvas torrenciais caídas no Nordeste brasileiro no início de 2004 trouxeram, indiscutivelmente, alívio para significativa parcela de sua população, principalmente aquela residente no polígono das secas. A intensidade com a qual elas aconteceram fez com que os aqüíferos fossem reabastecidos em sua plenitude, o que veio em boa hora pois a região amargava estado de calamidade pública em vários municípios, os quais, como sempre, já estavam sendo assistidos, a duras penas, pelos programas assistenciais do governo. Nesse caso, a distribuição de água, através de caminhões-pipa, é um dos mais solicitados.
Os volumes desproporcionais verificados também trouxeram, em conseqüência, muito sofrimento e desespero à população, despreparada que sempre foi para o enfrentamento de fenômenos dessa magnitude. Em meio ao dilúvio, preocupamo-nos sobremaneira com as necessidades dessas pessoas, principalmente por viverem em uma região marcada por constantes estiagens, onde as precipitações ocorridas tiveram forma atípica e proporções exageradas. Chegamos, inclusive, a editar um artigo na internet intitulado As armadilhas do clima , no qual havíamos previsto problemas na condução das culturas, principalmente as de subsistência, plantadas fora da época de semeadura e aproveitando-se a umidade momentânea do solo para o seu pronto estabelecimento.
Alertávamos, no referido artigo, para os insucessos que poderiam ocorrer nas produções das culturas, com perdas significativas de plantas por excesso de água (morte do embrião por encharcamento) ou mesmo pelo risco de elas não concluírem o seu ciclo biológico – de germinar, desenvolver-se, florir e frutificar -, motivado pelo descompasso na ocorrência de novas precipitações, processo este conhecido popularmente como “seca verde”.
Infelizmente, nossas previsões aconteceram. O programa Globo Rural de 25 de abril noticiou quebra de 75% na safra de grãos no Nordeste, principalmente de milho e feijão no chamado “miolão da seca” (que compreende o leste do Piauí, todo o Ceará, oeste dos estados do Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco e uma pequena faixa no norte da Bahia), região na qual o fenômeno costuma ocorrer com maior freqüência.
As esperanças do produtor em obter boas colheitas com as fortes chuvas ocorridas no período foram frustradas pelas condições anormais de intensa umidade verificadas, e pelas condições de falta d´água ocorridas posteriormente – o que é comum no Nordeste seco –, tornando clara a falta de políticas de produção que levem em consideração as características climáticas da região. As conseqüências disso todo mundo já sabe: fome, muito sofrimento e desespero no período seco que se avizinha.
Outra questão a ser mencionada diz respeito ao preenchimento dos reservatórios nordestinos no rio São Francisco, responsáveis diretos pela geração de energia da região. Conforme noticiado pela mídia televisiva, as fortes chuvas caídas no Nordeste fizeram o reservatório de Sobradinho (principal fonte regularizadora da vazão do rio São Francisco) alcançar 100% de sua capacidade, levando os dirigentes da Chesf a pronunciar-se sobre as potencialidades do setor energético em atender a demanda da região, pelo menos nos próximos dois anos. Sobre essas questões, apenas alertaríamos para o fato de que, mesmo com o reservatório principal da Chesf vertendo, não foram resolvidos os problemas energéticos do Nordeste.
A prova disso é a própria represa de Sobradinho que, em 1997, atingiu o volume máximo verificado em 2004, havendo a necessidade de se proceder, já em 1999, dois anos depois, à importação de uma grande quantidade de energia (cerca de 800 MW) da hidrelétrica de Tucuruí (PA), quantidade esta equivalente a 15% do consumo energético nordestino. Em 2001, em meio a fortes estiagens na bacia do rio, o volume útil da represa chegou a atingir cerca de 5%, havendo a necessidade de se proceder ao racionamento de energia. Em dezembro de 2003, com o reservatório voltando a atingir volume crítico (cerca de 10%), o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) foi obrigado a acionar 20 máquinas do parque de termelétricas existente na região, vindo a onerar, em cerca de 2%, as contas de luz da população no mês de janeiro de 2004.
Esses problemas não costumam freqüentar a agenda de debates da maior parte das instituições brasileiras, nem a agenda de decisões do nosso governo. Por quê? Porque isso não interessa em nada aos investidores internacionais, não afeta o “risco Brasil”, não influencia a cotação do dólar, não faz as bolsas oscilarem. Estamos apontando uma situação que consideramos grave: as autoridades brasileiras não têm mais discernimento quanto à sua própria competência, não sabem mais escolher o que devem tratar. Não sabem mais olhar para o povo e o território, e identificar os problemas e as potencialidades. Gravitam em torno de temas artificiais e importados. Em breve as pessoas não poderão mais tomar cerveja, ouvir determinadas músicas, comer alimentos naturais ou beber água "comum"… A sociedade está sendo programada para a ignorância dos seus problemas reais e para a tolerância das arbitrariedades a que está sendo submetida. Tudo, para que os cofres públicos não tenham que pagar a conta. Somos nós – povo – que pagamos a conta, sempre!
João Suassuna é engenheiro agrônomo, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e um dos maiores especialistas na questão hídrica nordestina.