Artigo – O gerenciamento da água no Nordeste

O recurso existe, faltando apenas seu indispensável gerenciamento para a satisfação das necessidades do povo. É importante explorar o que está disponível em cada estado para então usufruir das águas do São Francisco
Por João Suassuna
 07/05/2004

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estabeleceu parâmetros de disponibilidades hídricas per capita para as diversas regiões do planeta, baseando-se nas ofertas volumétricas existentes em tais regiões para o atendimento às suas populações. Assim, considerou como abundante a região que apresentasse condições de disponibilizar, em termos volumétricos, mais de 20 mil m³/habitante/ano. Em uma escala decrescente de valores, estabeleceu como muito rica a região que possibilitasse o fornecimento de mais de 10 mil m³/habitante/ano; como rica, mais de 5 mil m³/habitante/ano; como situação limite, mais de 2,5 mil m³/habitante/ano; como pobre, menos de 2,5 mil m³/habitante/ano e, por último, como situação crítica a região capaz de fornecer menos de 1,5 mil m³/habitante/ano.

O Brasil, segundo a OMS, é um país privilegiado em termos de recursos hídricos, pois possui cerca de 12% de toda a água doce que escorre na superfície do mundo. Porém, a distribuição dessa água no território nacional deixa muito a desejar: 72% desses 12% localizam-se na região norte do país (o potencial médio de água doce nos rios na região norte é de cerca de 3.845,5 km³/ano), onde vivem cerca de apenas 7% de sua população. Muita água numa região com poucos habitantes. Enquanto isso, o Nordeste brasileiro (28% da população do país) possui míseros 3%, 2/3 dos quais localizados na bacia do rio São Francisco – o potencial médio de água doce nos rios nordestinos é de 186,2 km³/ano. Para se ter idéia dessa problemática de distribuição, todos os estados do Norte do país são considerados abundantes em termos de disponibilidade hídrica, capazes de ofertar, a cada um de seus habitantes, um volume superior a 20 mil m³ por ano. Roraima é o estado hidrologicamente mais rico do país, com condições de ofertar a incrível marca de 1,7 milhão de m³/habitante/ano.

Já os estados nordestinos estão distribuídos nas mais variadas classes de oferta hídrica, uma vez que possuem condições ambientais as mais diversas, seja em termos climáticos, seja em termos geológicos. O estado do Maranhão, por exemplo, de clima pré-amazônico, e, portanto, localizado fora do polígono das secas, além de possuir uma bacia sedimentária riquíssima em água de subsolo – com cerca de 17,5 mil km³/ano – está numa classe considerada muito rica, pois tem condições de ofertar cerca de 17,2 mil m³ para cada um de seus habitantes por ano. Por sua vez, o estado do Piauí, por apresentar boa parte de seu território com geologia sedimentária (junto com o estado do Maranhão, o Piauí detém cerca de 70% das águas de subsolo de todo o Nordeste, portanto com enorme riqueza de água subterrânea) e por possuir o segundo maior rio nordestino em importância (o Parnaíba), está numa classe considerada rica, pois oferta cerca de 9,6 mil m³/habitante/ano.

O estado da Bahia está numa situação limite, chegando a ofertar cerca de 3 mil m³/habitante/ano. Além de possuir áreas sedimentárias importantes, distribuídas de forma esparsa no estado, tem o rio São Francisco como seu maior aliado, cortando o território baiano de sul a norte.

A situação dos demais estados nordestinos preocupa, pois os mesmos encontram-se localizados entre as classes pobre – a exemplo do Ceará, Rio Grande do Norte, Alagoas e Sergipe, os quais fornecem cerca de 2.440, 1.780, 1.750 e 1.740 m³/habitante/ano, respectivamente – e em situação crítica, a exemplo da Paraíba e Pernambuco, estados campeões nacionais em termos de pobreza na oferta hídrica, por disponibilizarem, cerca de 1.440 e 1.320 m³ a cada um de seus habitantes por ano, respectivamente. Levando-se em consideração essas duas últimas classes distributivas de recursos hídricos (pobre e em situação crítica), chega-se à conclusão de que, mesmo com os riscos iminentes de desabastecimento, os estados nordestinos localizados nas referidas classes poderão vir a suprir a demanda de água de suas populações, de forma coerente e satisfatória. Para tanto, é necessário proceder ao gerenciamento adequado de suas águas. Essa assertiva prende-se ao fato de o Nordeste, hoje, possuir o maior volume de água represado em regiões semi-áridas do mundo, com cerca de 30 bilhões de m³, e as descargas de seus rios proporcionarem infiltrações de água nos aqüíferos da ordem de 58 bilhões de m³/ano, segundo estimativas de Aldo Rebouças, renomado hidrólogo da USP, São Paulo.

A extração de apenas 1/3 desses volumes infiltrados representariam potenciais suficientes para abastecer a população nordestina atual, estimada em cerca de 47 milhões de pessoas, com uma taxa de 200/litros/habitante/dia, além de irrigar mais de 2 milhões de hectares, com uma taxa de 7.000 m³/ha/ano. Na visão de Rebouças, a água no Nordeste existe, faltando, apenas, o indispensável gerenciamento desse recurso para a satisfação das necessidades do seu povo. Sabendo usar, ela não irá faltar.

Tratamento consistente
Caso sejam consideradas as características de cada um dos estados integrantes das duas classes mais críticas, observa-se que o Ceará, onde o semi-árido chega ao litoral, vem tratando os seus recursos hídricos de forma mais consistente do que aquela habitualmente realizada nos demais estados nordestinos. Após a construção da represa do Castanhão, com cerca de 6,7 bilhões de m³ (depois de Sobradinho, que tem capacidade de armazenar cerca de 34 bilhões de m³, o Castanhão é a maior represa do Nordeste na atualidade), o estado passou a ter um potencial acumulatório em suas represas da ordem de 16 bilhões de m³. Isto é mais de 50% de todo o volume acumulado nas represas nordestinas. Além do mais, o Ceará vem trabalhando no sentido de interligar as diversas bacias que as compõem. Segundo os governantes cearenses, a idéia é fazer com que as regiões do estado que apresentem dificuldades de fornecimento de água às populações sejam supridas por outras regiões que apresentem melhores condições hídricas.

O Rio Grande do Norte dispõe de áreas sedimentares importantes (formação barreira e dunas, além do arenito Açu), que vêm abastecendo inclusive a região de Mossoró, nas necessidades humanas e agrícolas. Possui a segunda maior represa do Nordeste – Armando Ribeiro Gonçalves, com cerca de 2,4 bilhões de m³ – a qual, sozinha, segundo informações contidas no I Plano Estadual de Recursos Hídricos do Rio Grande do Norte, poderia suprir, com 200 litros/habitante/dia, toda a população norte-rio-grandense, nos próximos 20 anos.

Alagoas e Sergipe, por serem estados com áreas reduzidas, possuem uma significativa faixa de sediment&aacut
e;rio em suas regiões litorâneas, cujas reservas hídricas de subsolo se dão em proporções relevantes. Estima-se nas bacias sedimentares de Alagoas/Sergipe um volume aproximado de 100 km³/ano. O problema de abastecimento desses dois estados localiza-se nas suas regiões semi-áridas, daí os baixos índices de oferta hídrica apresentados pela OMS. Ações de instituições não governamentais, principalmente nas questões relativas ao abastecimento, através dos barramentos necessários e do uso de cisternas rurais para o aproveitamento da água de chuva, certamente trarão soluções oportunas e que poderão ser adotadas pelos demais estados nordestinos.

Precariedade
O estado da Paraíba, afora uma estreita faixa litorânea sedimentária (faixa localizada ao longo do litoral dos estados do Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco, a qual possui um volume aproximado de água de subsolo de 230 km³/ano), possui geologia cristalina em praticamente toda a área restante do estado. Esse fato resulta na acumulação de baixos volumes de água no subsolo de tal região e, na maioria das vezes, de péssima qualidade devido à presença de grandes concentrações de sais. Contudo, o estado possui, na região semi-árida, duas represas unidas por um pequeno canal (Coremas e Mãe D`água), cujo potencial de acumulação soma 1,3 bilhão de m³ de água. Apesar de apresentar problemas de abastecimento seríssimos, o estado poderá vir a suprir, com água de ótima qualidade proveniente dessas represas, boa parte da população do sertão, bastando, para tanto, investir em sistemas de adução. É oportuno lembrar que a Paraíba possui, no maciço do município de Teixeira, o ponto mais elevado do Nordeste (o Pico do Jabre com altitude superior a 1.000 m). Recalques de águas daquelas represas para a parte superior desse maciço possibilitaria a distribuição de água, por gravidade, para solucionar os problemas de abastecimento das regiões mais necessitadas do sertão paraibano.

Ao lado da Paraíba, o estado de Pernambuco é campeoníssimo em termos de precariedade de fornecimento de água ao seu povo. De características geológicas semelhantes ao do estado da Paraíba (cerca de 80% do estado possui geologia cristalina), Pernambuco encontra-se em uma situação mais complicada, por não possuir represamentos significativos de água em seu território. Para se ter idéia desse problema, todos os volumes de água acumulados superficialmente no estado somam cerca de apenas 3,4 bilhões de m³, ou seja, toda a água de superfície do estado de Pernambuco representa uma vez e meia o volume acumulável da represa de Orós, o segundo maior açude do estado do Ceará. Por outro lado, o maior açude de Pernambuco, localizado no município de Ibimirim (Açude Poço da Cruz, com volume acumulável de 500 milhões de m³), vem sofrendo problemas de abandono por parte das autoridades. Atualmente, encontra-se com menos de 30% de sua capacidade, havendo a necessidade de reparos constantes em sua estrutura, principalmente em vazamentos existentes nas comportas de descarga de fundo. Essa falha resultou em liberações indesejadas de água da ordem de 20 milhões de m³, em curto espaço de tempo e, o que é pior, numa época de extrema escassez hídrica na região. Entre a segunda quinzena de dezembro de 2001 e o final de janeiro de 2002 a represa havia acumulado 160 milhões de m³, e, em junho de 2003, encontrava-se com 140 milhões de m³).

A benção do Velho Chico
Sabedor dessa deficiência, o governo tem investido na adução das águas do rio São Francisco para a solução dos problemas de abastecimento das regiões mais carentes do estado, especificamente aquelas localizadas na parte oeste pernambucana. Embora sem se preocupar com as deficiências hídricas existentes no rio, envidou esforços no sentido de possibilitar a construção da Adutora do Oeste, em operação com as águas do Velho Chico, para o abastecimento dos municípios de Ouricurí, Ipubí, Trindade e Araripina. Retira-se atualmente do São Francisco cerca de 0,5 m³/s e há previsões de a água ser conduzida rumo ao estado do Piauí.

Sobre o Velho Chico é de bom termo lembrar que o rio tem múltiplos usos. Possui um parque respeitável gerador de energia elétrica, com cerca de 10.000 MW de potência instalada, responsável por mais de 95% da energia elétrica que é produzida no Nordeste. Dispõe de uma área irrigável estimada em cerca de 800 mil ha. Desse total, 340 mil ha já se encontram efetivamente irrigados, com perspectivas de ampliação de mais 100 mil ha, sendo 60 mil ha com o projeto Irecê, 30 mil ha com o projeto Salitre, ambos na Bahia, e 10 mil ha com o projeto Pontal, em Pernambuco. Essas áreas somadas irão consumir do rio um volume de cerca de 320 m³/s, sendo 170 m³/s nos 340 mil ha já irrigados e 50 m³/s nos 100 mil ha em processos de implantação. É oportuno ressaltar que esse caudal é hidrologicamente pobre e encontra-se com sua bacia extremamente degradada pela ação humana. Em termos comparativos, o rio Tocantins (localizado na bacia amazônica), com área de bacia semelhante à do rio São Francisco, tem uma vazão média de aproximadamente 11,8 mil m³/s, enquanto o São Francisco possui apenas 2,8 mil m³/s.

A explicação prende-se ao fato de que 60% da bacia do São Francisco possuem geologia cristalina, estão localizados em região semi-árida e, conseqüentemente, têm a maioria dos seus afluentes com regime temporário. Esse fato, aliado aos problemas de degradação ambiental, tem causado sérios problemas de geração elétrica, a exemplo do que ocorreu quando o governo federal, diante de reservatórios das usinas hidrelétricas praticamente vazios, precisou valer-se dos racionamentos de energia para evitar os apagões iminentes. Diante desse quadro, o povo nordestino não pode apresentar-se desmemoriado com relação aos acontecimentos da mais grave crise energética de sua história.

Soluções para o Nordeste
Finalmente, é preciso que se encontrem alternativas para o abastecimento do povo nordestino, observando as sugestões de Aldo Rebouças quanto à necessidade de um melhor gerenciamento dos recursos hídricos existentes em cada um dos estados da região. É importante, em primeiro lugar, explorar ao máximo os recursos disponíveis em cada estado, para, a partir daí, usufruir das águas do rio São Francisco, após ter este passado por processo revitalizante em toda sua bacia. Essa alternativa só alcançará êxito se for colocado em prática um orçamento hídrico que garanta volumes suficientes ao atendimento das atividades promotoras do desenvolvimento da região, tais como, a irrigação, o uso nas ind&u
acute;strias, a geração de energia, a navegação e o abastecimento humano. Um orçamento que seja atrelado às características hidrológicas de cada ano, ou seja, em anos com abundância de chuvas, teria-se folga na distribuição dos volumes orçados, em caso contrário, em períodos de secas, teria-se que proceder a uma distribuição mais equilibrada.

A sociedade precisa ser estimulada a tomar conhecimento dessas questões e apoiar essas ações, conhecendo quais as prioridades promotoras do gerenciamento dos recursos hídricos da região. E, inclusive, a maneira através da qual elas se inserem num plano de conjunto que se desdobra ao longo do tempo. Só assim pode-se ter cidadania pelo uso das águas.

João Suassuna é engenheiro agrônomo, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e um dos maiores especialistas na questão hídrica nordestina.

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