Estão sendo libertados, desde a noite de ontem, cerca de 120 pessoas – incluindo mulheres e crianças – reduzidas à condição de escravas na fazenda Guariba, localizada a 130 quilômetros do centro do município de Vila Rica, norte do Estado do Mato Grosso. Essa é uma das maiores libertações deste ano. Segundo informações do grupo móvel de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que coordena a operação, os trabalhadores estavam desde o início do ano sob vigilância armada na fazenda.
Na ação, que contou com a participação da Polícia Federal e o Ministério Público do Trabalho, o Ibama encontrou 60 motosserras – a maior apreensão dos últimos cinco anos na região. O proprietário tinha autorização para desmatar 300 hectares, mas já tinha limpado mais de 1300 ha de floresta amazônica.
Os trabalhadores estavam presos a dívidas ilegais com a fazenda (ver texto abaixo), por conta de transporte e alimentação. Os fiscais do MTE constataram que o arroz vendido estava vencido há mais de cinco anos e é oriundo de antigos programas de alimentação do governo federal, como o Comunidade Solidária.
Alcides Augusto da Costa Aguiar, o dono da fazenda, mora em São Paulo. Ele tem propriedades nos Estados do Mato Grosso e Bahia – onde é um dos maiores plantadores de mamão. O pagamento de rescisões trabalhistas deverá ser concluído nos próximos dias.
Como alguém se torna um escravo
Os direitos dos trabalhadores rurais freqüentemente são ignorados na chamada “fronteira agrícola”, onde a floresta amazônica perde espaço a cada dia para grandes fazendas de gado. Péssimos alojamentos e alimentação, atraso ou não pagamento de salários e até privação de liberdade sob ameaça de morte acontecem com freqüência na região. Homens se tornam escravos do dia para a noite.
Para impedir que isso aconteça, grupos móveis de fiscalização do Ministério do Trabalho realizam vistorias de surpresa, aplicando multas e resgatando pessoas quando são constatadas irregularidades. De acordo com levantamento realizado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), Pará e Mato Grosso são estados com maior incidência de utilização de trabalho escravo.
A escravidão de hoje é diferente daquela existente no século 19, mas tão perversa quanto. Devido à seca, à falta de terra para plantar e de incentivos dos governos para fixação do homem no campo, ao desemprego nas pequenas cidades do interior ou a tudo isso junto, o trabalhador acaba não vendo outra saída senão deixar sua casa em busca de sustento para a família. Ao ouvir rumores de que existe serviço farto em fazendas, ele vai para esses locais espontaneamente ou é aliciado por gatos (contratadores de mão-de-obra que fazem a ponte entre o empregador e o peão). Estes, muitas vezes, vêm buscá-lo de ônibus ou caminhão – o velho pau-de-arara.
Já na chegada, o peão vê que a realidade é bem diferente. A dívida que tem por conta do transporte aumentará, uma vez que o material de trabalho pessoal, como botas, é comprado na “cantina” do próprio gato, do dono da fazenda ou de alguém indicado por eles. Os gastos com refeições, remédios, pilhas ou cigarros vão para um “caderninho”, e o que é cobrado por um produto dificilmente será o seu preço real. Um par de chinelos pode custar o triplo. Além disso, é costume do gato não informar o montante, só anotar. Saber o valor correto não adiantaria muito, pois, na maioria das vezes, o local de trabalho fica em áreas isoladas e os peões não têm dinheiro. Cobra-se por alojamentos precários, sem condições de higiene.
No dia do pagamento, a dívida do trabalhador é maior do que o total que ele teria a receber – isso considerando que o acordo verbal feito com o gato é quebrado, tendo o peão direito a um valor bem menor que o combinado. Em outras situações, até os próprios gatos da fazenda são enganados pelo proprietário. Ao final, quem trabalhou meses sem receber nada acaba devedor do gato e do dono da fazenda, e tem de continuar suando para poder quitar a dívida. Um poço sem fundo.