Mão de José ferida pelo trabalho no pasto e agua que os trabalhadores bebiam |
O Maranhão e o Piauí estão no topo da lista dos maiores fornecedores de mão-de-obra escrava do Brasil, de acordo com pesquisas da Organização Internacional do Trabalho. José* nasceu no Maranhão, mas mora no Piauí. Nesses Estados, os trabalhadores acabam fugindo do desemprego nas grandes cidades ou da falta de terra e crédito rural para a região de fronteira agrícola amazônica – movidos por histórias de serviço farto. José deixou sua casinha em uma favela na periferia da capital Teresina e foi se aventurar no Sul do Pará para tentar impedir a fome de sua esposa e de seu filho de quatro meses. Logo chegando, trabalhou em uma serraria em São João do Araguaia, onde perdeu um dedo da mão quando a lâmina giratória desceu sem aviso. "Me deram duas caixas de comprimido: uma para desinflamar e outra para tirar a dor, e me mandaram embora", conta.
Depois, foi limpar o pasto para o gado e levantar cercas na fazenda Cabaceiras, em Marabá (PA), de propriedade da empresa Jorge Mutran Exportação e Importação Ltda. O "gato" (contratador de mão-de-obra que faz a ponte entre o empregador e o peão) o encontrou na rodoviária, quando estava passando fome, e prometeu um bom emprego. Lá chegando, viu que a situação era pior. A carne que lhe era dada estava podre, cheia de vermes. O pagamento do salário ficava na promessa havia dois meses. Só o trabalho, que lhe comia o resto da mão de tanto roçar, era uma certeza diária. Se não fosse o grupo móvel, coordenado pelo Ministério do Trabalho e Emprego – que fiscalizou a fazenda Cabaceiras na quarta-feira, dia 11 de fevereiro – José iria comemorar com foice e enxada o seu 17º aniversário no sábado passado.
A ação, que também contou com a Polícia Federal e o Ministério Público do Trabalho, libertou 13 trabalhadores e obrigou o proprietário a pagar R$ 20.993,15 de direitos trabalhistas. Segundo a responsável pelo grupo móvel, Marinalva Cardoso Dantas, os peões estavam reduzidos à condição de escravos. Belmiro, um dos gatos da fazenda, foi indiciado pelo crime de aliciamento. Desde o dia 11, ações de dois grupos móveis que estão atuando no Sul e Sudeste do Estado já libertaram mais de 110 trabalhadores. Um fazendeiro foi preso.
De acordo com Marinalva, a empresa deixou pendente a situação de outras seis pessoas que teriam sido mantidos durante um dia inteiro em outro local por funcionários da Cabaceiras para não serem vistos pela fiscalização. O Ministério Público do Trabalho dará entrada a uma Ação Civil Pública para garantir que os proprietários reconheçam o vínculo empregatício destes trabalhadores.
Fiscal toma depoimento de trabalhadores na fazenda Cabaceiras |
A Cabaceiras aparece na "lista suja" do trabalho escravo no Brasil, que relaciona 52 pessoas e empresas condenadas pela prática. Elas estão tendo seus financiamentos em agências públicas, como o Banco do Brasil, o Banco do Nordeste, BNDES e a Caixa Econômica Federal, cancelados ou suspensos. O governo federal promete para o final desse semestre a divulgação de uma atualização da "lista suja", com a entrada e saída de nomes. Com essa libertação, vai ser difícil retirar o nome sujo da praça tão cedo, somando mais um capítulo aos problemas da família Mutran, uma das mais ricas do Pará.
"Nós estamos sendo vítimas, estão fazendo terrorismo conosco", afirma Evandro Mutran, o responsável pela empresa proprietária, procurado por esta reportagem em seu escritório em Belém. Ele nega que houvesse trabalho escravo e vê na disputa de terras um motivo para a fiscalização: "Estão fazendo isso porque querem a fazenda para a reforma agrária. Se dormirmos lá, podemos ser mortos pelo MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra], que já queimaram dois carros na fazenda. O Incra é que mandou invadir a fazenda".
No dia 26 de março, completará cinco anos que famílias do MST ocupam parte da fazenda Cabaceiras e travam uma batalha com o proprietário e com o governo pela sua desapropriação. De acordo com Valdimar Lopes Barros, que até este mês era advogado do movimento na região, os trabalhadores já produzem há anos na terra ocupada, com culturas de arroz, feijão e milho. Segundo ele, houve uma armação para impedir que a área fosse desapropriada, pois a primeira avaliação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) teria apontado que a terra era improdutiva, enquanto a segunda apontou o contrário. Os proprietários pediram R$ 33 milhões pelas terras e benfeitorias, o governo ofereceu R$ 11 milhões e a contra-oferta da empresa está em R$ 15 milhões. Evandro Mutran afirma que a terra é produtiva. Uma terceira avaliação ainda será feita, mas não há perspectivas de um acordo.
O preço médio do hectare com benfeitorias na região é de R$ 637, de acordo com a tabela do Incra para Marabá. Os 10 mil hectares da Cabeceiras valeriam R$ 6,37 milhões. O valor seria de R$ 10,93 milhões, com a aplicação do valor máximo (R$ 1.093 por hectare) – preço considerado alto em comparação com outros imóveis na região.
Caderno do gato Belmiro em que está o valor pago pelos peões no hotel |
"No Piauí, é difícil conseguir terreno. Aí, eu fui para o Maranhão." Raimundo* fez o caminho inverso ao de José, mas também não teve muita sorte no sertão e acabou no Sul do Pará a fim de encontrar serviço que o sustentasse. Chegando em Marabá, ele e seu filho Carlos* ficaram hospedados em um "hotel peoneiro". Esses estabelecimentos são conhecidos por deixar que os trabalhadores pendurem as contas de hospedagem e alimentação até que consigam emprego. Quando o gato de uma fazenda aparece procurando mão-de-obra, o dono do hotel lhe vende a dívida. E com ela vai o trabalhador. A pessoa fica devedora do gato e tem que suar para pagar a conta, coisa que dificilmente acontece. Em outras palavras, compra-se uma pessoa – que, na maioria das vezes, vai
feliz, porque acha que está indo para um bom emprego que lhe garanta mandar dinheiro para a família que ficou no Nordeste. (Leia Como alguém se torna escravo no Brasil – Clique aqui.)
Os dois custaram ao gato R$ 80. É isso o que foi pago ao "dormitório do Luís", que fica no km 06 da rodovia PA-150, pelo gato Belmiro, da Cabaceiras, por quatro dias de comida e o uso de um quartinho. Além deles, foram para a fazenda, no dia 18 de novembro, mais cinco homens que estavam no hotel. Esses estabelecimentos agem de forma ilegal, mas permanecem em funcionamento, sem que as autoridades locais tomem providências.
Carlos tem mais 15 filhos além de Raimundo, dos quais apenas dois (duas mulheres) aprenderam a ler. Ambos foram para o Pará após pegar o trem em Santa Inês (MA). A linha entre São Luís e Carajás é uma das duas últimas de passageiros que restaram no Brasil depois do desmantelamento da malha ferroviária que se seguiu à privatização do setor e só se mantém em funcionamento devido ao escoamento da produção mineral. Como ela tem servido ao longo dos anos de rota de muitos fugitivos do desemprego maranhense que se tornam cativos em fazendas do Sul do Pará, a linha recebeu vários apelidos, entre eles "Expresso da Escravidão".
Água de péssima qualidade, falta de equipamentos de segurança, barracos precários, alguns dos quais inundavam com as chuvas, falta de comida e de remuneração. Carregavam mourões com mais de 30 quilos nas costas e levantavam cerca quilômetros a fio. "Chegamos a passar oito dias sem comer, tomando só caldo de maxixe", lembra Carlos. Os cadernos do gato Belmiro anotavam tudo, do valor gasto com os homens no hotel à compra de instrumentos de trabalho, que deveriam ser fornecidos gratuitamente pelo empregador. O gerente da Cabaceiras, Genêncio Chimoka, segundo os trabalhadores, os teria orientado a dizer que eram posseiros ou sem-terra, caso a fiscalização do MTE visitasse o local onde estavam.
Entre os cerqueiros, também estava o piauiense Francisco Ferreira Leme, 74 anos. Ele é "peão de trecho", que não possui residência fixa e vai de cidade em cidade, de trecho em trecho, fazendo um serviço aqui, outro ali, sempre na esperança de conseguir um bom dinheiro que o faça voltar à sua terra ou o leve a uma vida melhor. Desde 1983, está no Sul do Pará e trabalhava como cozinheiro do barracão para Belmiro. Mas o gato nunca lhe disse quanto receberia. "Estou desde o início do ano e até agora não vi a cor de um tostão." Com ele, três cerqueiros estavam no serviço havia 90 dias sem ganhar o salário. Uma diária de trabalho de R$ 12 havia sido combinada, mas não cumprida. E,de acordo com eles, Belmiro teria dado calote também no hotel peoneiro.
Francisco, 74 anos, libertado durantefiscalização |
Mutran nega propriedade de terra
Evandro Mutran afirma que não foi constatada nenhuma irregularidade trabalhista dentro da área de sua fazenda. "Encontraram pessoas que não gostavam da comida, apenas. Todos estavam com carteira assinada." Os trabalhadores encontrados no primeiro barracão tinham carteira com registro, mas o documento que era mantido em poder do gerente estava com data de assinatura errada e o salário não era pago, e os direitos não eram recolhidos. Segundo a coordenadora do grupo móvel, essa é uma forma de tentar burlar a fiscalização, dando um verniz de legalidade à exploração do trabalhador. Mas, mesmo que não estivesse em situação análoga à de escravidão, o jovem de 16 anos encontrado não poderia exercer aquele tipo de trabalho, considerado insalubre para menores de dos 18 anos.
O proprietário também diz que a área em que foram encontrados oito cerqueiros não pertencia à Cabaceiras. "A área da fazenda é de 10 mil hectares. A área em que foram encontradas essas pessoas é de 70 hectares e fica a 14 quilômetros da Cabaceiras." O segundo barracão é distante várias porteiras e cancelas do primeiro. "Obrigaram o gerente a pagar os trabalhadores que não eram nem dele."
Segundo o gerente, essa área menor havia sido alugada pelo proprietário de uma terceira pessoa para a utilização do pasto, porém nenhuma pessoa que trabalhava nela estava sob sua responsabilidade ou havia sido contratado por ele. "Nós não temos absolutamente nada a ver com essa gente que trabalha aqui. A irregularidade tem a ver com o dono da terra. O senhor Evandro alugou esse pasto para botar as vacas. Morreu aí a questão." Nesse momento, chegaram os trabalhadores vindos do barracão. E confirmaram que conheciam Chimoka: "É o nosso gerente, né?"
O gato Belmiro, que estava desaparecido no momento da ação, deu um depoimento no dia seguinte à delegada da Polícia Federal afirmando que o dono da área seria Evandro Mutran, a terra teria sido grilada da Companhia Vale do Rio Doce e até o filho do proprietário já teria aparecido na área, desgostado de uma cerca erguida e ordenado que os trabalhadores refizessem o serviço. A situação deve, agora, se resolver na Justiça.
"Tem que diferenciar irregularidade trabalhista de trabalho escravo. Jamais eu faria trabalho escravo na minha vida. Se eu fosse fazer isso, compraria uma fazenda no meio do mato", reclama Mutran. A Cabaceiras é cortada pela rodovia PA-150, asfaltada, e é distante cerca de 25 quilômetros da sede do município de Marabá. "Eles não dão o direito da pessoa se defender. É um julgamento sumário, vão dizendo que é trabalho escravo. Até mereceria um processo por reparação de danos."
O pagamento saiu rápido, no dia seguinte. Também foram lavrados na propriedade 10 autos de infração, e Marinalva Dantas vai confirmar em seu relatório que foi encontrado trabalho escravo na fazenda. Isso ganha importância maior que a usual porque, confirmado o relatório pela SIT, a fazenda Cabaceiras poderá ser uma das primeiras a ter seu nome mantido na próxima "lista suja" das empresas e pessoas que utilizam trabalho escravo no Brasil, o que continuaria inviabilizando a liberação de recursos públicos para o investimento na propriedade.
"Estamos até fazendo um auto de infração por embaraço à fiscalização. Corremos até risco de vida, passando por estradas e pontes perigosas à noite só porque o gerente criou embaraços. Tudo isso mostrou má-fé e vontade de dissimular a situação", disse Marinalva. A coordenadora do grupo móvel reclama que os Mutran têm sido um entrave no combate ao trabalho escravo no Sul do Pará. "
;Eles já sabem de tudo o que é errado e até entraram em uma lista. Ou eles não acreditam que vão ser punidos ou vão buscar sempre uma nova forma de burlar a fiscalização", completa.
Chefe da equipe móvel toma depoimento do gerente da fazenda |
A Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) do Ministério do Trabalho e Emprego apresentou na última reunião do Conatrae (Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo), em 9 de fevereiro, um plano para aumentar o número de auditores dos atuais 2.800 para 5.000 até 2005. Esse aumento tem como objetivo melhorar a fiscalização, aumentando também o número de equipes e de pessoal destinados ao grupo móvel de fiscalização. A proposta será encaminhada à Presidência da República. De acordo com dados da própria SIT, o número de fiscais era de 4.000 em 1995.
A região que hoje abriga um rosário de cidades que vai de Marabá até o extremo Sul do Pará já foi mais violenta. Durante a década de 70, milhares de pessoas correram para lá para derrubar a mata, abrir sítios e criar fazendas. Os trabalhadores com enxadas, foices e unhas. Grandes empresas como a Volkswagen, o Bradesco e o Banco Real, com gordos subsídios da ditadura militar.
O Estado estava ausente e a lei vigente era a de quem tinha mais força para fazer valer a sua vontade. E na disputa por terra, a corda sempre rompia do lado do mais fraco. Dezenas de posseiros e trabalhadores rurais foram assassinados. Os dirigentes do sindicato dos trabalhadores rurais do município de Rio Maria, que tinha uma atuação forte nos anos 80 e 90, eram assassinados à luz do dia, um atrás do outro. Frei Henri des Roziers, coordenador da Comissão Pastoral da Terra de Xinguara, que chegou à região no final dos anos 70, afirma que todos os pistoleiros responsáveis foram levados a júri, vários foram condenados, mas não há nenhum preso. "Todos fugiram das penitenciárias de Marabá, de Belém. Condenados a 50 anos, 25 anos…"
Membros da família Mutran participaram da disputa dessas terras. De acordo com ativistas de direitos humanos que atuavam na época, eles foram responsáveis por massacres de posseiros e desaparecimento de trabalhadores. Segundo dados da CPT em Marabá, quase metade dos registros de conflito de terra na região entre 1976 e 1984 envolvem a família.
Com o tempo, a fronteira agrícola tomou rumo oeste – hoje a "terra de ninguém" se chama Iriri-Terra do Meio, a oeste de São Félix do Xingu, uma das zonas menos exploradas da Amazônia. E a antiga fronteira agrícola, hoje quase nua de floresta, região que vai de Marabá a Conceição do Araguaia, ganhou uma estrada, a PA-150, seus vilarejos de madeira se transformaram em cidades de tijolos, e o Estado, perdendo o medo, finalmente entrou. Ainda falta muito para ser respeitado, haja vistas as constantes denúncias de trabalho escravo, mortes de sindicalistas e desaparecimentos de posseiros. Mas a situação está mais estável.
Com o tempo, os Mutran assumiram postos importantes da política local ou se tornaram empresários de renome. Nagib Mutran o patriarca da família, foi deputado estadual. Ele tem dois irmãos, Jorge e Benedito.
O filho de Nagib, Osvaldo dos Reis, o Vavá, foi prefeito nomeado de Marabá e deputado estadual. Dos filhos de Vavá, Nagib Neto foi prefeito de Marabá e Osvaldo Júnior, vereador – casado com Ezilda Pastana, juíza em Marabá. Vavá tem dois irmãos, Guido – com um filho vereador (Guido Filho) – e Aziz.
Jorge Mutran teve três herdeiros, Délio, Celso e Evandro – que é responsável pela empresa Jorge Mutran Exportação e Importação Ltda., em sociedade com os irmãos e proprietária da fazenda Cabaceiras. Por fim, o último irmão de Nagib, Benedito, é pai de Benedito Filho. Isso, é claro, não resume toda a família.
José, encontrado aos 16 anos na fazenda Cabaceiras |
Trabalhadores já foram encontrados em situação de escravidão outras vezes na própria Cabaceiras ou em terras de Evandro Mutran, de acordo com os registros do MTE. Em dezembro de 2001, 54 trabalhadores foram libertados na fazenda Peruano, do mesmo proprietário, município de Eldorado dos Carajás (PA), e foram pagos cerca de R$ 48 mil em direitos trabalhistas. Em agosto de 2002, 22 pessoas ganharam a liberdade na Cabaceiras e foram restituídos R$ 19.815,63 em direitos. Em julho de 2003, 36 pessoas foram libertadas na fazenda Baguá, também propriedade de Evandro, em Eldorado dos Carajás. Na ação, R$ 25 mil foram pagos.
De acordo com Marinalva Dantas, da Secretaria de Inspeção do Trabalho, em abril de 2001, uma ação na Cabaceiras não chegou a ser finalizada, pois o gerente, Genêncio Chimoka, retirou mais de 30 trabalhadores na surdina para evitar o pagamento dos direitos, mesmo após os fiscais os terem entrevistado. Uma gravação em vídeo serve como prova, na qual os peões dão depoimento aos fiscais do trabalho e contam a situação a que eram submetidos. "Havia oito vigilantes com armas de grosso calibre. Elas foram apreendidas, inclusive a do gerente. Os trabalhadores disseram que as armas eram usadas para intimidá-los", relata a coordenadora do grupo móvel.
Além destes, há outro resgate de trabalhadores reduzidos à condição de escravos em propriedade da família. Em agosto de 2002, 25 pessoas foram libertadas da fazenda Mutamba, de Aziz Mutran, também em Marabá.
Evandro Mutran é conhecido nacionalmente devido à qualidade de suas matrizes e de seu gado. É o maior criador individual de nelore no Norte do país, pioneiro na utilização de tecnologia de fecundação in vitro na região, com leilões bem concorridos. É também chamado de o "Rei da Castanha" por liderar sua produção e comercialização. Vale lembrar que a castanha brasileira é exportada para os Estados Unidos, a União Européia e a Ásia.
Benedito Filho, o Bené Mutran, possui mais de 45 mil cabeça de gado, já foi escolhido duas vezes consecutivas o melhor criador e expositor da ExpoZebu, tradicional feira do setor em Uberaba (MG). É presidente da Associação dos Exportadores de Castanha do Brasil.
Em setembro de 1989, aos 17 anos, José Pereira Ferreira foi atingido por uma bala no rosto por funcionários da fazenda Espírito Santo quando tentava fugir do trabalho escravo. A propriedade era de Benedito Mutran Filho, na cidade d
e Sapucaia, Sul do Pará.
O caso ganhou notoriedade em novembro de 2003, quando foi aprovada pelo Congresso uma indenização no valor de R$ 52 mil. O caso, esquecido pelas autoridades tupiniquins, foi levado à Organização dos Estados Americanos (OEA), que condenou o Brasil. Questionado se a União não entraria com uma ação regressiva para cobrar do proprietário o dinheiro pago na indenização, Nilmário Miranda, secretário especial de Direitos Humanos, afirmou que o governo federal assumiu a responsabilidade internacional pelo caso e os seus custos.
A petição número 11.289, relativa à solução amistosa do caso de Zé Pereira na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA afirma que "o Estado brasileiro assume o compromisso de continuar com os esforços para o cumprimento dos mandados judiciais de prisão contra os acusados pelos crimes cometidos contra José Pereira". O caso ainda está aberto, aguardando julgamento de acusados.
Tanto no processo da OEA quanto no que correu na Justiça brasileira, Benedito Mutran Filho não aparece entre os réus. O proprietário da fazenda foi arrolado como testemunha pela acusação e afirmou que raramente ia a Espírito Santo e que demitiu os funcionários envolvidos assim que soube do acontecido.
É comum a tentativa de transferência da responsabilidade trabalhista para os gatos, gerentes e prepostos, em que o proprietário afirma desconhecer as práticas dentro de sua fazenda. Porém, nos últimos anos, desde o início da fiscalização móvel e do endurecimento da Justiça com relação ao crime de trabalho escravo, está mais difícil emplacar essa justificativa. Mas vale lembrar que há poucos casos transitados em julgado (em que não cabe mais recurso) de proprietários de terra condenados por trabalho escravo – o primeiro foi Antônio Barbosa, da fazenda Alvorada, em Água Azul do Norte (PA), cuja pena foi comutada em pagamento de cestas básicas.
Veja entrevista exclusiva com Zé Pereira.
O ramo da família Mutran composto por Vavá e Nagib Neto é o que mais gerou escândalos, uma vez que ambos foram cassados de seus mandatos públicos. Vavá matou um fiscal da Receita, após o funcionário não concordar em deixar o fazendeiro passar gado sem registro, o que o livraria de pagar impostos. Por isso foi alvo de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, cassado do cargo de deputado estadual e condenado a oito anos de prisão – o caso chegou a ganhar repercussão nacional e apareceram denúncias de cemitérios clandestinos mantidos por ele para os desafetos. Não cumpriu a pena integralmente. Em 2002, matou uma criança que brincava em frente à sua casa em Marabá com um tiro na cabeça. Hoje, aguarda julgamento em liberdade. Seu filho, Nagib Neto, utilizava crianças pequenas para varrer as ruas de Marabá. Quando o caso repercutiu mal, ele demitiu as crianças e contratou maiores de 16 anos. Foi afastado da prefeitura por corrupção.
Ocupação na fazenda Cabaceiras |
O pistoleiro Sebastião da Terezona – que possuía um escritório em Marabá para agenciar pessoas, inclusive policiais, para trabalharem como assassinos pagos, preso e condenado por cometer 50 assassinatos, confessou que trabalhou para Vavá Mutran e seu irmão Aziz.
Hoje, a maior briga talvez seja contra os trabalhadores sem-terra que ocupam suas fazendas. De acordo com Raimundo Nonato, da Federação dos Trabalhadores da Agricultura no Pará (Fetagri), além da Cabaceiras, a Peruano e a Mutamba também estão na pauta de reivindicação dos movimentos sociais para desapropriação e reforma agrária. José Batista Afonso, da Comissão Pastoral da Terra de Marabá, acrescenta as fazendas Balão e Lajedo à lista. Recentemente, em uma tentativa de ocupação da Mutamba, houve um conflito entre camponeses e policiais, com feridos de ambos os lados e seis sem-terra presos.
Jader Barbalho, hoje deputado federal pelo PMDB-PA, foi acusado de favorecer proprietários de terra do Sul do Pará na compra de mais de 70 imóveis do Polígono dos Castanhais quando era ministro da Reforma Agrária (setembro de 1987 a julho de 1988). A família Mutran teria sido uma das beneficiadas com a venda superfaturada de algumas de suas fazendas. As denúncias, que ganharam repercussão na mídia nacional, afirmam que o governo não fez avaliação de preço das terras ou mesmo vistoria para checar se elas seriam adequadas para o estabelecimento de assentamentos. As fazendas dos Mutran desapropriadas nessa época foram: a Centro Novo, a Juriti e a Pacus (de Benedito Mutran), a Bela Vista e a Boa Fé (Evandro Mutran), a Figuras (Maria José Mutran), a Limpeza (Benedito Mutran Filho), Fortaleza I e Boa Esperança (Helena Mutran), a Veneza, a Cotovelo e a Terra Nova (Alzira Mutran) e a Santo Antônio I e II (Osvaldo Mutran).
Na década de 90, mais fazendas dos Mutran foram desapropriadas para a reforma agrária, como o Assentamento São Francisco (antiga Virasebo, de Osvaldo Mutran) e o Assentamento Cabanos (antiga Volta do Rio, da empresa Jorge Mutran).
*Os nomes reais de José, Raimundo e Carlos foram substituídos por questões de segurança.
Pará, fevereiro de 2004