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Zé Pereira, um sobrevivente

José Pereira Ferreira conseguiu indenização mais de 14 anos depois de quase ter sido morto ao fugir da fazenda onde era escravo. Por Leonardo Sakamoto Amazônia – José Pereira Ferreira ganhou notoriedade, em novembro do ano passado, quando foi aprovada pelo Congresso uma indenização no valor de R$ 52 mil. Zé Pereira tinha sido reduzido à condição de escravo na fazenda Espírito Santo, cidade de Sapucaia, Sul do Pará. Em setembro de 1989, com 17 anos, fugiu dos maus-tratos e foi emboscado por funcionários da propriedade, que atingiram seu rosto. O caso, esquecido pelas autoridades tupiniquins, foi levado à Organização dos Estados Americanos (OEA), que condenou o Brasil. Ferreira, goiano de São Miguel do Araguaia, veio com oito anos para o Pará acompanhar o pai, que também fazia serviços para fazendas. Hoje, com 31 anos e o dinheiro da indenização, pretende começar vida nova para compensar a vida roubada pelos anos de tratamento para salvar a visão atingida pelos pistoleiros, pelas ameaças recebidas e a escravidão. "Eu estou comprando uma chácara. Bem longe daquele lugar." Como eram tratados os trabalhadores na fazenda Espírito Santo? José Pereira Ferreira – A gente não apanhava lá, não. Mas a gente trabalhava com eles vigiando nós, armados com espingarda calibre 20. A gente dormia fechado, trancado, trabalhava a semana toda… Vocês dormiam trancados no barracão? Ferreira – É. E vigiado por eles. Era mais ou menos uns 10 armados, por aí. E vocês eram quantos? Ferreira – Nós éramos muitos trabalhadores. De 19 a 30, não sei ao certo. Aí eu conheci um amigo meu, apelidado de Paraná, que eu não sei o nome dele. Aí nós vimos que daquele jeito não dava. Nós não ia conseguir trabalhar muito tempo daquele jeito e resolvemos sair da fazenda, tentar uma fuga. Como era o barracão? Ferreira – Uma lona preta cercada de palha. Só? Ferreira – Só. O que vocês comiam? Arroz e feijão, carne de vez em quando. Quando morria um boi atropelado. Faziam o que na fazenda? Ferreira – Fazia roça de juquira, arroz de pasto. É, fazenda de gado. Eles não deixavam a gente andar muito, então eu só conhecia o que fazia os que estavam no barraco com a gente. Já deviam muita coisa para a fazenda, segundo o gato? Ferreira – O gato [aliciador de serviço para a fazenda] já dizia que nós estávamos devendo muito. A gente trabalhava e eles não falavam o preço que iam pagar pra gente, nem das coisas que a gente comprava deles, nem nada. E aí, nós fugimos de madrugada, numa folga que o gato deu. Andamos o dia todo dentro da fazenda. Ela era grande. Mas a fazenda tinha duas estradas, e nós só sabia de uma. Nessa, que nós ia, eles não passavam. Mas eles já tinham rodeado pela outra e tinha botado trincheira na frente, tocaia, né. Nós não sabia…Mais de cinco horas passamos na estrada, perto da mata. E quando nós saímos da mata, fomos surpreendidos pelo Chico, que é o gato, e mais três. Que atiraram no Paraná, nas curvas dele, e ele caiu morrendo. Eles foram, buscaram uma caminhonete com uma lona e forraram a carroceria. Aí colocaram ele de bruços e mandaram eu andar. Eu andei uns dez metros e ele atirou em mim. De costas? Ferreira – É. Onde acertou meu olho. Pegou por trás. Aí eu caí de bruços e fingi de morto. Eles me pegaram também e me arrastaram, me colocaram de bruços, junto com o Paraná, me enrolaram na lona. Entraram na caminhonete, andaram uns 20 quilômetros e jogaram nós na [rodovia] PA-150 […]

José Pereira Ferreira conseguiu indenização mais de 14 anos depois de quase ter sido morto ao fugir da fazenda onde era escravo.

Por Leonardo Sakamoto

Amazônia – José Pereira Ferreira ganhou notoriedade, em novembro do ano passado, quando foi aprovada pelo Congresso uma indenização no valor de R$ 52 mil. Zé Pereira tinha sido reduzido à condição de escravo na fazenda Espírito Santo, cidade de Sapucaia, Sul do Pará. Em setembro de 1989, com 17 anos, fugiu dos maus-tratos e foi emboscado por funcionários da propriedade, que atingiram seu rosto. O caso, esquecido pelas autoridades tupiniquins, foi levado à Organização dos Estados Americanos (OEA), que condenou o Brasil. Ferreira, goiano de São Miguel do Araguaia, veio com oito anos para o Pará acompanhar o pai, que também fazia serviços para fazendas. Hoje, com 31 anos e o dinheiro da indenização, pretende começar vida nova para compensar a vida roubada pelos anos de tratamento para salvar a visão atingida pelos pistoleiros, pelas ameaças recebidas e a escravidão. "Eu estou comprando uma chácara. Bem longe daquele lugar."

Como eram tratados os trabalhadores na fazenda Espírito Santo?
José Pereira Ferreira – A gente não apanhava lá, não. Mas a gente trabalhava com eles vigiando nós, armados com espingarda calibre 20. A gente dormia fechado, trancado, trabalhava a semana toda…

Vocês dormiam trancados no barracão?
Ferreira – É. E vigiado por eles. Era mais ou menos uns 10 armados, por aí.

E vocês eram quantos?
Ferreira – Nós éramos muitos trabalhadores. De 19 a 30, não sei ao certo. Aí eu conheci um amigo meu, apelidado de Paraná, que eu não sei o nome dele. Aí nós vimos que daquele jeito não dava. Nós não ia conseguir trabalhar muito tempo daquele jeito e resolvemos sair da fazenda, tentar uma fuga.

Como era o barracão?
Ferreira – Uma lona preta cercada de palha.

Só?
Ferreira – Só.

O que vocês comiam?
Arroz e feijão, carne de vez em quando. Quando morria um boi atropelado.

Faziam o que na fazenda?
Ferreira – Fazia roça de juquira, arroz de pasto. É, fazenda de gado. Eles não deixavam a gente andar muito, então eu só conhecia o que fazia os que estavam no barraco com a gente.

Já deviam muita coisa para a fazenda, segundo o gato?
Ferreira – O gato [aliciador de serviço para a fazenda] já dizia que nós estávamos devendo muito. A gente trabalhava e eles não falavam o preço que iam pagar pra gente, nem das coisas que a gente comprava deles, nem nada. E aí, nós fugimos de madrugada, numa folga que o gato deu. Andamos o dia todo dentro da fazenda. Ela era grande. Mas a fazenda tinha duas estradas, e nós só sabia de uma. Nessa, que nós ia, eles não passavam. Mas eles já tinham rodeado pela outra e tinha botado trincheira na frente, tocaia, né. Nós não sabia…Mais de cinco horas passamos na estrada, perto da mata. E quando nós saímos da mata, fomos surpreendidos pelo Chico, que é o gato, e mais três. Que atiraram no Paraná, nas curvas dele, e ele caiu morrendo. Eles foram, buscaram uma caminhonete com uma lona e forraram a carroceria. Aí colocaram ele de bruços e mandaram eu andar. Eu andei uns dez metros e ele atirou em mim.

De costas?
Ferreira – É. Onde acertou meu olho. Pegou por trás. Aí eu caí de bruços e fingi de morto. Eles me pegaram também e me arrastaram, me colocaram de bruços, junto com o Paraná, me enrolaram na lona. Entraram na caminhonete, andaram uns 20 quilômetros e jogaram nós na [rodovia] PA-150 em frente da [fazenda] Brasil Verde.

Eles eram inimigos da Brasil Verde?
Ferreira – Não sei. Acho que era só jogar fora da fazenda deles, longe. Para não levantar suspeita. Aí eles jogaram nós lá e foram embora. O Paraná estava morto. Eu levantei e fui pra fazenda Brasil Verde. Procurei socorro e o guarda me levou ao gerente da fazenda, que autorizou um carro a me deixar em Xinguara, onde eu fui hospitalizado no Hospital Santa Luzia.

Como você fez a denúncia de trabalho escravo?
Ferreira – Fui para Belém para fazer um tratamento [no olho] e denunciar o trabalho escravo na fazenda Espírito Santo à Polícia Federal. Tinha ficado muito companheiro meu lá dentro. Eu fui em Belém, denunciei, voltei na fazenda com a Polícia Federal. Eles chegaram lá e já tinha uns 60 trabalhadores. O Chico e os outros ficaram sabendo que eu tinha escapado da morte e tinham fugido já. A Polícia Federal fez dar o dinheiro da passagem daqueles trabalhadores e deixou eles na beira do asfalto.

Mas eles tiveram os direitos trabalhistas pagos?
Ferreira – Não. Acho que naquela ocasião deram muito pouco dinheiro para eles. Depois disso, conheci o frei Henri [des Roziers, da Comissão Pastoral da Terra], e ele sempre me ajudou, até chegar o dia de eu receber essa indenização.

Quanto você recebeu do governo federal?
Ferreira – Recebi o valor de R$ 52 mil, em novembro. Para mim, foi muito importante. Mudou muito a minha vida aquele dinheiro. Não vou depender mais de trabalho de fazenda.

Quando é que foi que você fugiu da fazenda?
Ferreira – Foi em 1989.

Demorou então, para você…
Ferreira – Catorze anos.

Você vai abrir um negócio?
Ferreira – Eu estou comprando uma chácara. Bem longe daquele lugar. Lá, vou mexer com o gado, alguma roça, plantação… Começar vida nova.

O que você recomenda para outros trabalhadores que enfrentam situações iguais à sua?
Ferreira – Se eu for submetido a trabalho escravo, eu denuncio tudo de novo. E as pessoas que forem submetidas a trabalho escravo, acho que não devem se intimidar não. A pessoa tem que procurar as autoridades, o sindicato, a CPT, o Ministério do Trabalho e denunciar o trabalho escravo, pois isso não pode existir.

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