Artigo – Transposição do Velho Chico: o empirismo continua

Percebe-se claramente o desconhecimento das autoridades no que se refere ao ambiente natural por onde corre o rio São Francisco, principalmente na parte semi-árida de sua bacia. Não se pode tratar um assunto polêmico como esse sem se ter um conhecimento profundo de geologia e, principalmente, de clima, variáveis naturais extremamente marcantes na região.
Por João Suassuna
 29/07/2004

Foi editado no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro, do dia 16 de julho do corrente, que o governo decidiu alterar o projeto da transposição do rio São Francisco. Na referida matéria, alguns pontos nos chamaram atenção, principalmente no tocante aos novos critérios que serão adotados para a realização do projeto:

-de agora em diante, pretende-se transpor apenas as águas que estiverem “sobrando” (aspas nossas) na sua bacia;
-haverá também redução nas retiradas da água: em vez de uma média de 64 m³/s, pretende-se retirar apenas 56 m³/s;
-as bombas somente serão ligadas nos momentos em que o reservatório de Sobradinho, o maior da bacia do São Francisco, estiver cheio, pois se acredita que “Sobradinho está freqüentemente vertendo” (aspas nossas);
-na ocorrência de seca, se Sobradinho não estiver cheio não se bombeará água para encher açudes.

O governo argumenta que a disputa no São Francisco não é por água, mas por prioridade de investimentos e admite que o projeto causará uma perda na produção de energia no sistema do São Francisco, calculada em torno de 13,5%, mas recusa a idéia de transpor águas do Rio Tocantins no futuro para compensá-la, sugerindo, finalmente, que a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) centralize a operação do sistema.

Diante de tantas modificações impostas ao projeto, percebe-se claramente o desconhecimento das autoridades no que se refere ao ambiente natural por onde corre o rio São Francisco, principalmente na parte semi-árida de sua bacia e o empirismo com o qual estão sendo conduzidas essas questões. Não se pode tratar um assunto polêmico como esse sem se ter um conhecimento profundo de geologia e, principalmente, de clima, variáveis naturais extremamente marcantes na região. Da forma como esses aspectos estão sendo tratados na matéria, nota-se claramente, além de uma total falta de conhecimento sobre os mesmos, uma falta também de compromisso para com o povo nordestino. E isso não é de hoje.

No início da década de 90, por exemplo, tornou-se pública proposta do então ministro Aluísio Alves, político norte-riograndense, que previa a retirada de 260 m³/s do rio São Francisco para abastecer as regiões semi-áridas dos estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Em pouco mais de uma década, aquele volume foi reduzido em cerca de cinco vezes. Qual a razão disso? Por que agora querem retirar apenas 56 m³/s?

Ao contrário do que parece, as águas na bacia do rio São Francisco não estão sobrando, conforme consta na matéria. A prova disso ocorreu entre o ano de 97 e os dias atuais. Naquele ano, a represa de Sobradinho verteu e nos sete anos subseqüentes, o Nordeste passou pela mais séria crise energética de sua história, motivada por longos períodos de secas. A maioria do povo nordestino foi socorrida por caminhões-pipa e não pode apresentar-se desmemoriada com relação às conseqüências nefastas dos racionamentos de energia, com adoção de feriadões e do acionamento do parque de termelétricas, que tantas mazelas trouxeram para o desenvolvimento da região, para o ambiente e para o bolso do cidadão. Às vezes torna-se difícil entender as razões que levam as autoridades a acreditar na freqüência dos vertimentos da represa de Sobradinho, como saídas desejáveis para se transpor as água do São Francisco. O que na realidade vem ocorrendo são ciclos de relativa abundância, intercalados por períodos de penúria hídrica que já se tornaram uma constante em toda a bacia do Velho Chico. O ano de 2004, por exemplo, dado o enorme volume pluviométrico caído, provavelmente vem-se mostrando como início de um desses ciclos. Nele, Sobradinho voltou a verter, como a maioria das grandes represas do Nordeste, e o que resta é se estabelecer formas coerentes de usos dessas águas, agora disponíveis com relativa abundância em toda a região. Nesse sentido, torna-se imprescindível e mais sensata a utilização das águas da represa Castanhão (reservatório cearense e o maior do Nordeste, com cerca de 6,7 bilhões de m³ de capacidade), a qual, sozinha, resolveria, e por gerações, o problema de abastecimento da grande Fortaleza e regiões circunvizinhas, ao invés de se transpor as águas do São Francisco, a 500 km de distância, para abastecer essa represa. Isso, no nosso modo de entender, deveria ser enquadrado como crime ambiental, além de um exagerado despreparo nas questões econômicas.

Nesse cenário, a disputa é por água e não por investimentos conforme consta na matéria do jornal. No vale do São Francisco existe um potencial irrigável de 1 milhão de hectares, dos quais 340 mil já estão efetivamente irrigados. E essa área encontra-se em constante processo de expansão. É bem provável que em um futuro próximo seja necessária a negociação para o consumo d´água nas áreas em regime de irrigação na bacia do São Francisco. Projetos que já se encontram em andamento terão que reduzir suas áreas e os que estão em negociação terão suas áreas estipuladas em razão da disponibilidade de água no momento de sua elaboração. Quem viver e for lá verá.

O fato de a transposição só ocorrer se Sobradinho estiver cheio é uma falácia. É impossível se evitar a retirada de água do rio pelos nordestinos, numa situação de sede generalizada. O país poderá empregar todo o seu potencial bélico para proibir o acesso ao precioso líquido e não irá resolver esse tipo de situação criada pelo desespero das populações na busca da água. Alerto mais uma vez que os meses mais secos do Nordeste são aqueles terminados por BRO (setembro, outubro, novembro e dezembro) os quais coincidem com o período em que Sobradinho está com o seu nível mais baixo. Um simples descompasso na caída das chuvas em seu período normal de ocorrência (fato que está acontecendo com certa freqüência) seria suficiente para interromper um projeto que custa aos cofres públicos cerca de R$ 20 bilhões. É muito dinheiro envolvido para que se venha a permitir um número significativo de interrupções nos bombeamentos.

Finalmente, o governo reconhece que a transposição causará uma perda na produção de energia no sistema do São Francisco, em torno de 13,5%. Isso não é pouco se atentarmos para o fato de o potencial gerador do São Francisco já ter sido explorado em sua totalidade. O sistema gera anualmente no Nordeste cerca de 50 milhões de MW/h no atendimento à sua demanda. O fato grave nessa questão é que essa mesma demanda vem crescendo 2% acima do percentual do PIB. Caso continuemos a crescer a uma taxa de 4,5 a 6% ao ano (fato possível e não improvável), em 12 anos teremos que dobrar a produção de energia do Nordeste, ou seja, precisaremos de 100 milhões de MW/h para darmos seqüência ao nosso desenvolvimento. A pergunta a ser respondida é a seguinte: onde será gerada essa energia?

Doravante, o nosso grande desafio será a escolha da melhor matriz de expansão do sistema elétrico para o atendimento da nossa demanda. Dos 100 milhões de MW/h que iremos precisar, quanto será hidrelétrico, quanto será de energia solar, quanto será de gás, quanto será de biomassa da cana-de-açúcar, quanto será de energia eólica, quanto será de nuclear? Cremos que já é chegada a hora de a sociedade ser consultada sobre qual cenário energético deseja para o seu desenvolvimento, nos próximos 25 anos. Isso tem que ser feito com certa rapidez, com vistas a possibilitar, aos responsáveis pelo setor elétrico, tempo suficiente para as mudanças que se fizerem necessárias.

Isto posto, achamos que para as questões da transposição do São Francisco deva haver equilíbrio entre ciência e bom senso. Essa é a verdadeira fórmula para auxiliar o governo na imprescindível tarefa de dar continuidade ao desenvolvimento daqueles que residem na região semi-árida nordestina.

João Suassuna é engenheiro agrônomo, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e um dos maiores especialistas na questão hídrica nordestina

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