Presente de grego

Indústria do petróleo promete trazer royalties e desenvolvimento para a Costa do Dendê, no litoral sul da Bahia. Até o momento, porém, só trouxe prejuízos à pesca e apreensão ao setor de turismo. Com o aumento da exploração petrolífera, conflitos semelhantes multiplicam-se pela costa brasileira.
Texto e Fotos: André Campos
 03/08/2004
 Plataforma localizada a poucos quilômetros da praia: poluição visual

O fim do monopólio da Petrobras na exploração e produção de petróleo e gás natural, regulamentado em 1997, atraiu diversas multinacionais para o Brasil e intensificou significativamente a atividade do setor no país. Nos dias atuais, o segmento engloba 38 concessionárias provenientes de 15 nações diferentes. O cenário montado contribuiu para que, somente entre 1998 e 2002, as reservas nacionais comprovadas de petróleo crescessem cerca de 25%, numa realidade que aproxima ainda mais o Brasil da auto-suficiência nessa área. Apesar do incremento nos números da indústria do petróleo, a intensificação da atividade, principalmente em áreas oceânicas, tem gerado um profundo choque de interesses em diversas regiões costeiras do país. Comunidades de pescadores têm sofrido prejuízos significativos por conta da presença desse novo e gigantesco vizinho nos mares. Além disso, o medo de ver transformada pela poluição a paisagem de diversos paraísos naturais colocou pessoas ligadas ao setor de turismo em alerta. Questionamento de informações sobre impacto ambiental, interesses de governos e prefeituras, decisões unilaterais e dificuldades de fiscalização são apenas alguns dos aspectos que tornam mais complexa a discussão sobre como gerenciar esse conflito.

A Costa do Dendê, no litoral sul da Bahia, é um exemplo típico dessa situação. Composta por oito municípios e com cerca de 200 mil habitantes, a região foi incorporada com força total ao mapa da exploração de petróleo e gás natural após a abertura do mercado. A chegada da indústria petrolífera, porém, trouxe consigo apreensão para a comunidade local, que tem no ambiente marinho uma de suas principais fontes de sustento. Pesca artesanal e turismo formam, junto com a agropecuária, a base da frágil economia regional, que proporciona à população rendimento mensal médio inferior ao salário mínimo nacional.

A preocupação inicial logo deu lugar a um clima de profunda insatisfação entre os pescadores, uma vez que há estimativas de perda de até 50% nos seus rendimentos, devido à atuação de empresas petrolíferas. Os problemas financeiros, segundo muitos dos pescadores, têm dificultado inclusive a compra de óleo diesel e gelo, itens essenciais à sua atividade. "Nunca vivi situação tão ruim", afirma Gerson Machado Oliveira, da cidade de Valença, que há 50 anos se sustenta com a pesca e atualmente tem dívidas em torno de R$ 1,7 mil. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que determina as medidas compensatórias a serem adotadas pelas empresas, estabeleceu um sistema de reparação das perdas por meio do financiamento de projetos sociais para colônias e associações de pesca. Aquisição de computadores e investimentos em consultórios dentários são alguns exemplos de benefícios direcionados às comunidades.

O arranjo, porém, está longe de ser satisfatório, segundo Raimundo Costa, administrador da Colônia de Pescadores Z-15, em Valença. "Isso não resolve nossos problemas financeiros", diz. Ele afirma ainda que o montante estipulado não corresponde às perdas reais. "Quando se fala em compensação, nunca ninguém fica satisfeito", rebate Eduardo Freitas, representante de meio ambiente da El Paso, multinacional norte-americana de petróleo e uma das empresas de maior presença na região. Ele garante, ainda, que os prejuízos dos pescadores foram superestimados.

Diálogo de surdos

 Eduardo Freitas, da El Paso: relação entre desaparecimento de peixes e atividade petrolífera é "tecnicamente discutível"

Durante o trabalho de mapeamento do fundo do oceano, em que é empregada a técnica conhecida como sísmica – emissão de pulsos sonoros –, a pesca tem de ser suspensa em diversas áreas. Além disso, os pescadores afirmam haver nítida relação entre essa atividade e a diminuição da quantidade de peixes em águas costeiras – um problema grave, já que a fragilidade da maioria das embarcações pesqueiras impede que estas se aventurem em mares mais distantes.

A Federação dos Pescadores do Estado do Rio de Janeiro (Feperj), com o apoio da Confederação Nacional dos Pescadores (CNP), move ação judicial que visa cassar a licença para operação de diversas empresas que realizam atividade sísmica no estado. O juiz da 1ª Vara Federal de Niterói chegou a conceder decisão favorável, suspensa posteriormente pelo Tribunal Regional Federal (TRF).

As companhias que fazem esse trabalho, por sua vez, garantem que ele não produz nenhum impacto significativo no meio ambiente marinho. Essa alegação, contudo, não encontra acolhida no setor pesqueiro. "As empresas processadas não foram honestas no fornecimento de dados relativos ao impacto ambiental da sísmica", afirma o presidente da CNP, Walzenir Falcão. Na falta de estudos conclusivos – atualmente uma das reivindicações mais importantes dos pescadores –, a questão permanece em aberto.

Para Eduardo Freitas, da El Paso, o principal fator associado ao declínio da pesca costeira é a superexploração dos recursos naturais. "O argumento de que o peixe está desaparecendo por conta de atividades A, B ou C é tecnicamente discutível", diz. "Há uma tendência natural de as pessoas culparem outras práticas pelo que está acontecendo no seu dia-a-dia." José Maria Pugas, presidente da Feperj, rebate afirmando que existem estudos internacionais que associam a sísmica à queda de até 50% na produção de pescado dos mares do hemisfério norte.

Segundo ele, "a maioria das empresas que realizam esse trabalho recusam-se terminantemente a sentar-se à mesa para negociar, e ainda nos encaram como se fôssemos assaltantes querendo extorquir seus lucros". A declaração mostra como, muitas vezes, o debate em torno dos vários aspectos que cercam o problema se aproxima muito mais de um autêntico diálogo de surdos.

A sísmica não é a única questão relacionada à indústria de petróleo a ser questionada pela Feperj. Regras de segurança, que criam uma zona de exclusão em torno das plataformas, tamb&ea
cute;m são motivo de queixa. "Aqueles locais tornam-se pólos de atração naturais de cardumes", afirma Pugas. "Entretanto, não se pode trabalhar justamente onde há peixe."

Dificuldades

Entre fevereiro e maio de 2003, o aparecimento de milhares de peixes mortos no mar e em praias da Costa do Dendê acabou por incendiar o debate. Na ocasião, duas empresas petrolíferas, a El Paso e a PGS (Petroleum Geo-Services), realizavam atividades naquela área. O Ministério Público abriu procedimento investigativo contra ambas, porém, falhas na coleta de provas e falta de informações sobre o meio ambiente local impossibilitaram a determinação dos culpados.

A insatisfação da comunidade local com o resultado ficou clara durante audiência pública realizada em abril deste ano, na cidade de Ituberá, para discutir atividades futuras da El Paso na região. Dos cerca de 600 presentes, entre eles representantes políticos, comunitários e de organizações não-governamentais (ONGs) locais, vários se manifestaram sobre o assunto, levantando inclusive suspeitas sobre novas mortandades e outros prejuízos ambientais provocados pela indústria do petróleo. Norberto Hess, secretário de Meio Ambiente do município de Maraú, considera que o ocorrido justificaria medidas drásticas. "Deveriam paralisar as atividades petrolíferas na região enquanto não houvesse uma apuração adequada do caso", afirma.

O episódio trouxe à tona as graves dificuldades enfrentadas por órgãos públicos, federais e estaduais, no acompanhamento e fiscalização das atividades das empresas de petróleo. A situação do Ibama é exemplar: segundo Joselito Carneiro, gerente regional da entidade, a média é de um fiscal para cada 80 mil pessoas na região. Com a inauguração de um Núcleo de Proteção Ambiental do órgão federal em Ituberá, em maio deste ano, Carneiro acredita que a situação deve melhorar.

Paraíso ameaçado

Entre os representantes do setor de turismo, a crença de que a indústria do petróleo pode trazer benefícios econômicos mistura-se com o medo de que prejuízos à natureza espantem os turistas. José Nunes da Silva, proprietário da Kon-Tik Turismo, empresa de aluguel de barcos, é um exemplo claro desse dilema. "Eu mesmo já aluguei, em 2003, barcos para a atividade petrolífera", explica ele. "Mas sei também que posso ter prejuízos com a poluição."

 Achim Ruder, proprietário da Pousada Tassimirim: reclamações de turistas

A degradação do meio ambiente não é a única preocupação dos que sobrevivem do turismo. A poluição visual é outro elemento de apreensão, uma vez que a idéia de paraíso natural, associada às praias e ilhas da Costa do Dendê, não combina com a imagem do sol nascendo no mar por trás de uma plataforma de petróleo. "Não houve um turista sequer que deixasse de fazer comentários negativos a esse respeito. Quando voltarem às suas cidades, vão dizer que este lugar tem os dias contados", afirma Achim Ruder, proprietário da Pousada Tassimirim, na ilha de Boipeba, e presidente da Associação de Moradores e Amigos de Boipeba (Amabo).

Marcelo Guedes, promotor de justiça de Valença, ressalta a necessidade de planejamento para que uma atividade não inviabilize outra. "Se resolverem transformar a região num paliteiro, com centenas de plataformas, o turismo obviamente não se sustentará", afirma ele. A El Paso planeja para breve novas perfurações na região. Freitas garante total esforço para que as atividades, que demandam a construção de plataformas, só ocorram durante a baixa temporada, como forma de minimizar o impacto no turismo.

Se, por um lado, a indústria do petróleo assusta segmentos tradicionais da economia, há também grande expectativa de que os royalties advindos da atividade mudem consideravelmente o panorama financeiro dos municípios em que ela se realiza. Segundo estudo feito pela Coordenação dos Programas de Pós-Graduação de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe/UFRJ), mesmo nos cenários menos otimistas de descobertas de petróleo e gás natural, o valor dos royalties previstos para a região é superior à arrecadação tributária total dos 11 municípios que sofrerão a influência direta da exploração petrolífera.

Há, porém, o medo de que a improbidade administrativa e o gerenciamento inadequado dos recursos transformem o benefício num verdadeiro presente de grego. Guedes explica: "Com esse dinheiro disponível, a administração pública pode priorizar irresponsavelmente a criação de serviços públicos, aumentando suas despesas e transformando a região num pólo de atração populacional, com todos os problemas de ocupação e desmatamento daí decorrentes. Até o dia em que os royalties acabarão, as prefeituras, inchadas, não conseguirão se manter, e a degradação do meio ambiente terá prejudicado as atividades tradicionais, deixando a região sem alternativas econômicas".

Compromissos

Antônio Galdino (PL/BA), prefeito de Nilo Peçanha e presidente da Associação dos Municípios do Baixo Sul (Amubs), que inclui as prefeituras da Costa do Dendê, defende a utilização do dinheiro justamente para buscar alternativas de desenvolvimento, como, por exemplo, projetos de incentivo à aqüicultura e maricultura. O Ministério Público discute com as prefeituras a criação de compromissos perante a Justiça, envolvendo todos os municípios da região, para estabelecer prioridades no investimento futuro dos royalties.

 Marcelo Guedes, promotor de justiça de Valença, defende a regulamentação do uso dos royalties

Além do risco de vazamentos, a exploração e a produção de petróleo e gás natural nos mares apresentam uma série de impactos inerentes à própria atividade, como, por exemplo, o descarte de fluidos de perfuração e de cascalhos saturados com diferentes compostos tóxicos. No processo de licenciamento, o Ibama baseia-se em informações sobre a sensibilidade ambiental das áreas pr
etendidas para determinar as exigências que serão impostas às empresas. A falta de dados sobre diversas regiões, porém, é um dos principais obstáculos enfrentados pela entidade. Em relação à pesca e ao turismo, a escassez de informações e a conseqüente dificuldade na formulação de procedimentos para a boa convivência entre os setores é ainda mais considerável.

Esse cenário de incertezas contribuiu para a exclusão, em 2003, da rodada anual de licitações, realizada pela Agência Nacional do Petróleo (ANP), de 162 blocos exploratórios localizados no banco de Abrolhos, área de proteção ambiental que abrange regiões nos estados da Bahia e do Espírito Santo. A exclusão foi motivada pela pressão de diversas ONGs nacionais e internacionais, que afirmam ser inviável a introdução de uma política de desenvolvimento baseada na exploração de petróleo e gás numa região que emprega, diretamente, cerca de 100 mil pessoas na pesca e no turismo. "Ainda não existem tecnologias suficientemente seguras para exploração e extração petrolífera", diz Guilherme Dutra, gerente do Programa Marinho da Conservation International do Brasil. A retirada dos blocos da licitação irritou o secretário de Desenvolvimento Econômico e Turismo do Espírito Santo, Júlio Bueno, que qualificou a decisão de duro golpe para o setor petrolífero e o desenvolvimento do estado.

Situações como essa trazem à tona queixas relativas à falta de interlocução, entre órgãos federais, estaduais e municipais, quanto às decisões tomadas em relação ao setor petrolífero nacional. Os blocos no banco de Abrolhos tinham sido oferecidos em licitação apesar de a área ser considerada pelo Ibama a mais crítica da costa brasileira. Em 2004, pela primeira vez a entidade participará da decisão, juntamente com a ANP, sobre a não-inclusão de determinados blocos na rodada anual de licitações.

 Litoral sul da Bahia: meio ambiente de grande sensibilidade

João Milanelli, biólogo da Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb), salienta a necessidade de ordenar a questão através do estabelecimento das prioridades de cada região. Ele coordena trabalho de monitoramento ambiental no canal de São Sebastião, litoral norte de São Paulo, cuja finalidade é estudar danos ambientais causados por derramamentos de óleo e derivados. "Com a indústria do petróleo organizada e preparada em termos preventivos, existe tecnologia para a realização de um trabalho seguro que integre a atividade produtiva com outras demandas socioeconômicas", acredita ele.

Prevenção

A indústria petrolífera vem buscando tecnologias mais limpas não só devido às exigências de licenciamento em todo o mundo, mas também pelo fato de, na maioria das vezes, ser mais barato prevenir do que remediar um dano ao meio ambiente. Seguindo essa lógica, a Petrobras tem investido num amplo programa que resultou na criação de nove Centros de Defesa Ambiental nas principais áreas de atuação da empresa, e que pretende reduzir a zero os resíduos ambientalmente agressivos decorrentes dos processos produtivos da companhia.

Carlos Alberto Ferreira, presidente da seção fluminense da Associação Brasileira de Agências de Viagens (Abav-RJ), defende a participação de representantes do segmento nas ações e decisões da indústria do petróleo. E acredita que, se a atividade petrolífera não for feita de maneira predatória, pode até significar ganhos para o setor. "A exploração do petróleo em Macaé (RJ) trouxe benefícios para o crescimento da cidade, e, conseqüentemente, para as atividades ligadas direta e indiretamente ao turismo", exemplifica. O tom conciliador adotado por Ferreira, porém, diverge radicalmente da disposição reinante entre representantes do setor da pesca.

 Pescadores da Costa do Dendê: queda de até 50% nos rendimentos com a chegada da indústria do petróleo

Divergências à parte, tramita desde 1999 na Câmara dos Deputados o projeto de lei 2.243, de autoria da deputada Miriam Reid (PSB/RJ), que prevê o direcionamento de 1% dos royalties provenientes das empresas petrolíferas para associações e cooperativas de pescadores e a promoção de políticas municipais com vistas a modernizar a atividade pesqueira. O projeto afirma que, além de trazer prejuízos à pesca, a exploração de petróleo em plataformas continentais gera um efeito cascata que afeta fábricas de gelo e de embarcações, peixarias, frigoríficos e outros segmentos do comércio. Esse não é o único projeto de lei que busca estabelecer compensações aos pescadores. As reivindicações do setor têm encontrado apoio na Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca da presidência da República, que procura viabilizar a aprovação de projetos.

Na Costa do Dendê, a realização de audiências públicas, o investimento em acompanhamento comunitário e a assinatura de compromissos perante a Justiça entre os diversos segmentos são apontados como as melhores formas de equacionar os interesses dos setores envolvidos. Investir em iniciativas desse tipo parece ser o caminho mais curto, senão o único, para que o gerenciamento conjunto das variadas atividades econômicas alcance o ainda distante princípio do equilíbrio defendido pela maioria dos participantes da discussão.

APOIE

A REPÓRTER BRASIL

Sua contribuição permite que a gente continue revelando o que muita gente faz de tudo para esconder

LEIA TAMBÉM