Realidade ilhada

População de duas ilhotas paulistas vive em uma realidade paralela, respirando pesca e esperança. Longe de referências como datas e relógios, o tempo passa devagar nessas comunidades esquecidas
Texto e Fotos: Juliana Borges e Maurício Monteiro Filho
 01/08/2004
Entardecer em Búzios

Aos olhos dos habitantes das ilhas paulistas de Búzios e de Vitória, Ilhabela é o continente. Já a terra firme… Distantes, respectivamente, 25 e 38 quilômetros da costa, ou cerca de duas e meia e três horas e meia de barco, ao norte da ilha de São Sebastião, buzianos e vitoreiros são vistos como populações isoladas e primitivas.

Euclides da Cunha, numa viagem a essas localidades em 1902, deparou-se com a primeira dificuldade resultante desse pretenso atraso. Não sabia se atribuiria o nome de Búzios à mais distante ou à mais próxima. "Este fato delata por si só o grande olvido em que têm jazido aqueles dois fragmentos da nossa terra", conclui o engenheiro e escritor. Optou pela designação invertida.

Na realidade, a maneira com que Euclides da Cunha descreve o modo de vida ilhéu revela não o isolamento dessas comunidades, mas as distorções de que estão carregados aqueles que as observam do continente. "Nós é que somos isolados em nosso mundo e invadimos a vida privada deles", afirma Pedro Antonio dos Santos, que foi professor em Búzios, a maior das duas ilhas, que tem 775 hectares e cerca de 200 moradores.

Tanto lá como em Vitória, cuja área é de 227 hectares e abriga pouco mais de 40 habitantes, a realidade nada tem a ver com datas e relógios. Para Argemiro Costa, de 76 anos, um dos mais antigos moradores de Búzios, o tempo é marcado pela lua e pelo movimento das marés. Religiosamente, todos os dias, ao pôr-do-sol, sentado sozinho no costão, ele espera pacientemente que os cardumes caiam em sua rede. Entre uma história e outra, mostra como não está parado no tempo, mas apenas num fuso diferente. "Isso não se usa aqui", responde, sobre o dia de seu aniversário, enquanto avista uma tartaruga que respira na superfície da água.

Origens

A viagem de Euclides da Cunha a Búzios e Vitória tinha como objetivo investigar a possibilidade de instalação de uma colônia penal naquelas terras.

 Argemiro Costa: um dos mais antigos moradores da área de búzios

Em seu relato, ele declara: "[Aquelas ilhas] não têm existência histórica e não figuram em nenhuma das narrativas de episódios de que foi, entretanto, notável teatro o vasto segmento de costa que fronteiam".

De fato, são escassas as referências a Búzios e Vitória na historiografia brasileira. Ambas constam do Tratado Descritivo do Brasil, escrito em 1587 por Gabriel Soares de Sousa. Mais além, segundo o julgamento de Euclides da Cunha, as menções resultam das "aventuras perigosas do contrabando de escravos (…) os únicos episódios da história, de todo destituída de interesse, daquelas ilhas".

O escritor se refere ao papel desempenhado por Búzios e Vitória na época do tráfico negreiro. Em 1845, com a promulgação do bill Aberdeen, teve início um período de forte repressão inglesa aos navios brasileiros que transportavam escravos africanos. Pela localização geográfica privilegiada, as ilhas funcionaram como "estações mais avançadas dos vigias que iludiam aquela fiscalização severa".

Esses relatos compõem, juntamente com uma tradição oral cada vez mais escassa, o pouco que se sabe sobre as origens da presença humana em Búzios e Vitória. Há indícios muito fortes de que as ilhas foram habitadas por tribos indígenas mais de mil anos atrás, uma vez que elas abrigam sítios arqueológicos.

No entanto, são poucas as informações sobre a procedência da população que hoje as ocupa. Provavelmente, os ancestrais dos atuais habitantes de Búzios chegaram no século 19, em meio ao contexto da exploração cafeeira do vale do Paraíba. Sobre Vitória, o próprio texto de Euclides da Cunha fornece uma prova valiosa a respeito da história de seu povoamento recente. De início, a ilha foi arrendada por moradores de Búzios. Pelo aluguel, os buzianos pagavam uma mensalidade de 50 cruzeiros à Câmara de Vila Bela, como era conhecido o município de Ilhabela, ao qual pertencem as ilhas. Com o arrendamento, algumas famílias, totalizando 35 pessoas, mudaram-se para lá.

Ao fim de sua viagem, Euclides da Cunha determinou que apenas Vitória seria capaz de abrigar uma colônia penal. A prisão nunca foi construída, mas, de certo modo, ambas as ilhas acabaram encerradas numa espécie de cárcere: o do isolamento e o do primitivismo, atribuídos aos ilhéus pela concepção colonialista dos que os observam a partir do continente, como fez o próprio escritor.

Conceitos

Ao chegar de barco a Vitória ou Búzios, não há como não se impressionar com a paisagem. A vegetação densa cobre toda a superfície. É quase impossível distinguir as poucas casas entocadas na mata. Os costões de pedra circundam a terra, e o mar verde é incrivelmente transparente, o que permite ver com nitidez o fundo de pedras, cardumes de peixes e, vez ou outra, tartarugas. Para se encaixarem perfeitamente na imagem estereotipada de "ilha tropical paradisíaca", só falta a ambas a presença de uma praia com coqueiros. Mas nenhuma delas tem sequer uma única faixa de areia.

Antonio Carlos Diegues: "Existe uma cultura particular em qualquer ilha do mundo, especialmente as oceânicas."

O observador que designa essas ilhas de "paradisíacas" também qualifica as comunidades que nelas habitam de privilegiadas, pois levariam uma vida simples, porém farta, sem grandes preocupações e livres do estresse da vida moderna. Esse ponto de vista, ao estigmatizar os ilhéus, cria uma visão alienada sobre a vida daquela gente. "Para os caiçaras, o espaço insular não é necessariamente paradisíaco. É o lugar da sua vida cotidiana, dura e difícil, de ancoragem frágil e instável, onde mesmo os serviços básicos de saúde e de educação são precários ou mesmo inexistentes", alerta o professor Antonio Carlos Diegues, diretor científico do Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas em Áreas Úmidas Brasileiras (Nupaub), enti
dade ligada à Pró-Reitoria da Universidade de São Paulo (USP).

Um outro ponto que merece ser esclarecido é o conceito de isolamento. Ainda que fisicamente distantes do continente, essas ilhas não são auto-suficientes. Assim como a maioria dos caiçaras do litoral paulista, os buzianos e vitoreiros vivem da pesca e, portanto, dependem do mercado. "A distância que os separa do continente não significa, de modo algum, isolamento dos processos de reprodução do capital", explica o geógrafo e mestre pela USP Eduardo Schiavone Cardoso. Segundo ele, além do pescado, "mercadorias, informações e pessoas também circulam no trajeto ilha-continente-ilha".

Mesmo estando em relativo contato com a costa, os ilhéus desenvolveram uma série de especificidades culturais e sociais em relação a outros caiçaras. "Existe uma cultura particular em qualquer ilha do mundo, especialmente as oceânicas. No caso de Búzios e de Vitória, o ser da ilha, o vivenciar um território diferente do continental se superpõe ao ser caiçara", afirma Diegues. Segundo o professor, desde o início da civilização, as ilhas sempre fizeram parte do imaginário do homem, e o símbolo-ilha já recebeu as mais variadas conotações. Durante todo o curso da história, essa palavra esteve continuamente marcada por significações extremas: de um lado a imagem de paraíso selvagem, intocado e puro e, de outro, o espaço infernal, o amaldiçoado, a prisão.

Cotidiano

Desde a passagem de Euclides da Cunha, as características físicas da ilha e o modo de vida ilhéu sofreram severas alterações. No início do século passado, ele descreve como abundantes as fontes hídricas tanto em Búzios como em Vitória. Atualmente, conseguir água potável é um dos principais problemas enfrentados pelos habitantes locais. Alguns poços artesianos são responsáveis pelo abastecimento. A distribuição é feita por um precário sistema de caixas-d’água e canos que compõem uma verdadeira teia de borracha e PVC sobre a superfície das ilhas.

Além disso, ao contrário do que acontecia na época de Euclides da Cunha, hoje a escola já cruzou os quilômetros que separam essas terras do continente. Búzios conta com duas, uma no Porto do Meio e outra em Guanxuma, os dois principais núcleos populacionais, e em Vitória há uma. O problema é que nas duas ilhas o ensino vai apenas até a quarta série.

O Porto do Meio tem a maior concentração populacional da ilha de Búzios

Quanto aos outros serviços básicos, a carência permanece. A luz é alimentada por geradores a óleo diesel, e a comunicação com Ilhabela é feita por rádio ou telefone celular. Porém, a falta de um posto de saúde é a mais sentida pela população. Os médicos da prefeitura visitam mensalmente as comunidades, mas não é o suficiente para aplacar as reclamações dos ilhéus. Maria Costa, moradora de Vitória, é uma das mais descontentes. Sua filha de 28 anos sofre de um distúrbio psiquiátrico desde que teve o último filho. "Ela não quer comer nem sair de casa, e o médico diz que ela não tem nada", queixa-se a mãe.

Os casos de doenças graves têm de ser tratados no continente, mas nem sempre há embarcações rápidas da prefeitura disponíveis para fazer o trajeto. "Se o médico não chega, o diabo leva", ironiza João Costa, também de Vitória.

Na prefeitura de Ilhabela, existe a Diretoria de Comunidades Tradicionais, vinculada à Secretaria de Planejamento, que é responsável por atender às demandas não só de Búzios e Vitória, mas também de populações em outras áreas de difícil acesso do município. Entretanto, esta se mostra reticente quanto a ações mais efetivas nas ilhas. Por diversas vezes a reportagem tentou entrar em contato com o diretor do órgão, Dito Dória, mas não obteve retorno.

Uma mudança marcante em relação ao passado está na religião. Na época de sua viagem, Euclides da Cunha registra que "nenhum sacerdote houve ainda bastante abnegado para procurar a população esquecida, que é, digamo-lo de passagem, fervorosamente cristã". Atualmente, em Búzios, há duas igrejas evangélicas, presididas por um pastor que mora na própria ilha. Ainda assim, a presença católica continua expressiva.

A única festa religiosa era dedicada a São Pedro, padroeiro dos pescadores, realizada anualmente entre 21 e 28 de junho. "Mas agora todo mundo virou crente", afirma Luís Teixeira. A desolação do melhor pescador de apnéia de Búzios – ele chega a descer mais de 20 metros sem equipamento, à procura de garoupas – reflete a perda de uma das poucas ocasiões de diversão de que dispunha a população local. Em Vitória, o padroeiro também deixou de ser festejado. "Agora, está tudo lá na minha casa", conta João Costa, referindo-se aos santos e imagens que eram utilizados durante as cerimônias.

À parte a influência evangélica, esse fenômeno pode ter outra explicação: há pouco a comemorar. Hoje, as duas ilhas vivem sob a sombra de uma constatação, que cada dia mais se confirma: "O peixe está diminuindo", garante José Costa, morador de Vitória.

Tanto lá como em Búzios, toda a atividade econômica é determinada pela pescaria. E isso não mudou desde a viagem de Euclides da Cunha. Já naquela época era possível observar, ao desembarcar nas ilhas, "grosseiras armações de paus roliços entrecruzados ou amarrados com cipós e cordas (…) quatro pés direitos e uma cobertura de sapé completam aquele dispositivo indispensável num litoral sem praias". Essas construções são chamadas de ranchos e servem, até hoje, para abrigar e proteger do sol os veículos mais abundantes nas ilhas: as canoas. Até a chegada do barco a motor, elas eram o único meio de transporte dos moradores, que remavam até 12 horas para chegar ao continente. Grande parte das famílias possui suas próprias embarcações e, com elas, pesca anchovas, espadas e dourados nos parcéis (recifes) que circundam tanto Búzios quanto Vitória.

Mais raros são os barcos a motor. Em Vitória, são quatro, e em Búzios não passam de 20. Os donos dessas embarcações, além de pescarem por conta própria, funcionam como intermediários dos canoeiros na venda do peixe para os mercados de Ilhabela, São Sebastião e Ubatuba. &quo
t;Para mim, a situação é mais fácil. Os outros pescam, eu levo para vender e fico com 50% do lucro", explica Velácio Costa, dono de uma embarcação a motor em Búzios.

Como alternativa à pesca escassa, Lauro Costa tece redes

São várias as explicações para a escassez de peixe, mas todas acabam por esbarrar na presença dos forasteiros, especialmente pescadores esportivos, nos arredores das ilhas. "Vêm barcos grandes, com mais de 20 homens, que pescam tudo", afirma Lauro Costa, de 47 anos, morador de Búzios. "Os turistas limpam o peixe e jogam os restos na água. Isso espanta o cardume", explica Argemiro Costa.

Segundo um estudo elaborado em 2002 pela Faculdade de Geografia da USP sobre a ilha de Búzios, a causa da diminuição do pescado estaria no fato de a comunidade despejar o esgoto diretamente no mar.

Independentemente dos motivos, a verdade é que a produção diminuiu severamente. "Fiquei a tarde toda no mar e voltei com algumas lulas e duas garoupas pequenas", conta Luís Teixeira, em pleno mês de fevereiro, época em que o peixe deveria ser farto. "Antes a gente pescava, só de manhã, mais de 40 quilos de lula. Vinha almoçar e, à tarde, voltava com o barco carregado", completa Lauro Costa.

Por essa razão, atualmente os ilhéus estão sendo forçados a procurar alternativas à pesca. Lauro gasta boa parte de seu tempo tecendo redes de pesca, o que se tornou uma forma de complementar o orçamento. Enquanto o marido dá forma ao emaranhado de fios, Vera Costa faz artesanato em bambu verde, outra maneira de engrossar a renda familiar. "Na rua, um cesto custa R$ 5. Nas lojas, pagam só R$ 3", diz ela, que vende a mercadoria em Ilhabela. "Por mim fazia só isso, mas tenho de cuidar das outras coisas da casa."

Nas estações de defeso do pescado, buzianos e vitoreiros cultivam pequenas hortas, destinadas à subsistência. A roça mais comum é a de mandioca, mas há também feijão, milho e batata, além de muitas árvores frutíferas. Em Vitória, a atividade rural é mais forte. Nas ilhas, as plantações são fundamentais, pois delimitam a extensão da terra de uma família. Como não há propriedade legal, a posse é determinada pela área cultivada: quem roçou é o dono.

Ficar ou migrar

Para Vera Costa, viver em São Sebastião era melhor.

Ao contrário dos outros ilhéus, Fabiano Costa, de 22 anos, mais pergunta do que responde. Seus ouvidos escutam atentos a cada entrevista. Pesca, rede, movimento da maré, vento, roça de mandioca e qualquer outro assunto relacionado ao cotidiano de Búzios são coisas que definitivamente não lhe interessam. As freqüentes idas a Ilhabela e a lembrança do período em que morou em São Sebastião, dois anos atrás, norteiam o rumo da sua conversa. "Fiquei um ano no bairro de São Francisco, arrumei trabalho em uma peixaria. Mas depois tive de voltar. Ficou difícil pagar o aluguel", queixa-se o rapaz.

Ele é a personificação de uma vontade que persiste em muitos buzianos e vitoreiros: começar vida nova no continente. "Aqui não é lugar para homem solteiro, não tem nada para fazer. Gosto de ficar perto do movimento", diz Fabiano. Em sua opinião, o fato de ser ilhéu não significa apenas estar isolado fisicamente do continente. Ele se sente mais vinculado às necessidades urbanas do que às dos ilhéus. "Se para algumas comunidades insulares o oceano é considerado uma via de comunicação com as sociedades continentais, para outras ele é visto como um obstáculo aos contatos", explica o professor Diegues.

Provavelmente, se as condições econômicas dos moradores de Búzios e Vitória fossem melhores, diversas famílias já teriam ido morar em Ilhabela ou em São Sebastião. Muitos gostariam de sair, mas não podem. Outros vão, não conseguem ganhar o suficiente para se manter e, contrariados, acabam voltando. Além da fragilidade financeira, a baixa escolaridade prejudica a busca por trabalho. Para buzianos e vitoreiros, morar no continente significa, quase sempre, pagar aluguel, luz, água e outras contas da vida moderna, despesas que não conheciam. "As cidades são espaços conflituosos para quem é da ilha. São os locais da cura da doença, da troca desigual e da exploração do trabalho. Lugares de atração e decepção", afirma o geógrafo Eduardo Cardoso.

 Dita Costa: "Os que saem daqui morrem logo."

Vera Costa sente saudades do tempo em que morava no continente: "Gostava mais de lá. Aqui é muito parado". Durante os 11 anos em que viveram em São Sebastião, o marido sustentava a família pescando no barco de uma empresa. "Voltei porque não queria ficar pagando aluguel a vida toda", diz Lauro. "Aqui a gente vive com o peixe que come, com o que planta e com mais algumas coisas que compramos em Ilhabela. A vida não é fácil, mas pelo menos tenho meu barraco e posso dormir tranqüilo."

Para Benedita Costa, uma das moradoras mais antigas de Vitória, há uma justificativa melhor para a permanência na ilha. A experiência vivida nos seus 59 anos contados na carteira de identidade e muitos outros passados em um tempo em que não se tirava documento – "Quando eu era moça criada, meu primo João, que hoje tem 59, era menino" – mostrou-lhe que aqueles que ficam na ilha têm vida longa. "Quem sai daqui morre logo", garante.

Búzios, primeiro semestre de 2004

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