Múltipla identidade

Josimar Marinho é o primeiro índio padre e oficial do exército brasileiro. Em entrevista ele fala sobre essas três culturas e como fez para conseguir conciliá-las no dia-a-dia
Por Leonardo Sakamoto
Fotos: Arquivo pessoal
 01/09/2004

“No princípio, eram os índios. Com a chegada dos colonizadores, vieram também os missionários de várias denominações religiosas – principalmente da igreja católica – e o seu ideário evangelizador. Também chegaram os militares com a justificativa de proteger a fronteira norte do Brasil, uma região de limites tênues em meio à floresta amazônica. Sabe-se que ninguém permanece igual ao que era antes após o contato com uma outra cultura. O norte do Brasil não é diferente e o contato entre índios, religiosos e as forças armadas continua produzindo desdobramentos. Aonde isso vai chegar não se sabe, pois a assimilação desses elementos externos pela cultura nativa está criando uma nova realidade. E, nessa nova realidade que está se formando, Josimar Ramos Marinho é único. Veio ao mundo no dia 28 de outubro de 1968, com nome de Ehkútó, na aldeia Bukurã Baátá. Foi ordenado padre pela igreja católica. E, em 1999, tornou-se o primeiro oficial capelão indígena do exército brasileiro, tendo sido promovido ao posto de 2º tenente capelão R2 no 5º Batalhão de Infantaria da Selva, em São Gabriel da Cachoeira, Amazonas. Josimar é o produto final dessas três culturas diferentes, o primeiro índio padre e oficial do exército. Licenciado das forças armadas, ele concedeu essa entrevista exclusiva.

Quando o senhor descobriu sua vocação religiosa?
Cultivei a vida vocacional desde a minha infância, devido ao exemplo dos meus pais, que possuíam uma boa educação religiosa recebida dos padres e irmãs da congregação salesiana de Dom Bosco. A minha mãe, quando adolescente, foi educada num ambiente religioso em Manaus. O meu pai, já falecido, possuía espiritualidade herdada dos missionários – por ter estudado e trabalhado junto com os padres, ele falava português e exerceu a função de catequista-líder do movimento indígena.

Como foi a experiência de estudar em um colégio católico no Alto Rio Negro?
Naquela época, o lugar para a formação acadêmica dos ensinos fundamental e médio era o internato dos padres e irmãs salesianos. Havia normas que não eram condizentes com a nossa vida – não falar mais o idioma nativo, comer com prato e talher, fazer silencio, escovar os dentes, tomar banho com roupas, alimentar-se na hora certa, cumprir rigorosamente os horários e tantas outras coisas que eu poderia citar. A partir daí, senti o forte rompimento com a minha origem, fui me afastando, crescendo por outras vias e somente ia para aldeia durante o recesso escolar ou feriados. No período em que deveria viver com intensidade a minha natureza própria, não vivi.

Esse choque entre mundos tão diferentes não traz conseqüências?
No pós-internato, muitos dos meus parentes não têm mais opções de continuar os estudos. Perambulam pela cidade, desconhecendo a sua identidade. Sem perspectiva de vida e esperanças, se entregam ao alcoolismo e à prostituição, usam drogas, formam gangues. É a hora de buscar soluções para evitar isso, trabalhando em conjunto com todas as instituições e órgãos públicos.

O senhor estudou teologia em Manaus, onde foi ordenado padre. Nessa época, foi alvo de preconceitos de colegas ou professores por ser indígena?
Ingressei no seminário maior em Manaus e fiz os cursos superiores de Filosofia e Teologia, que são obrigatórios. Submeti-me a uma estrutura de formação fora da minha realidade, muitas exigências… Defender as teses, expor os assuntos, abrir diálogos nas aulas era difícil por causa da vergonha dos colegas, que riam e debochavam quando havia erros de pronúncia. Havia preconceitos em relação aos meus comportamentos, devido à minha realidade cultural por parte dos colegas e professores. Acho que era por causa do pouco conhecimento antropológico deles. Eu jamais escondi a minha identidade nativa e não a omitiria em qualquer circunstância. Alguns falavam que era importante ser padre nativo, mas havia a rejeição de outros. Como ser humano, a reação era de raiva, dava vontade de desistir. Mas respondendo com inteligência e boa vontade é que eu demonstrava a minha integridade de ser indígena. Dizer que era indígena de verdade é imprudência, porque me sentia mesclado – até hoje vivo um pouco à distância devido às influências sofridas. O perigo, na verdade, é não querer ser indígena – isso seria um suicídio. A maioria dos jovens nativos tem receio de se identificarem.

Qual a visão que os religiosos brancos têm dos indígenas?
Qualquer profissional que venha atuar em nossa região, deve vir informado e preparado para trabalhar – aqui não existe mais indígenas nus, cobras e onças andando no meio das pessoas. As pessoas nuas aparecem de forma ridícula no Carnaval do Rio de Janeiro, nos programas de TVs, revistas. Dizem com muita apelação que é um trabalho de arte, mas não passa de um mero interesse de exibir-se e ganhar com facilidade algum dinheiro. Não é correto generalizar idéias sobre indígenas sem antes conhecer esta diversidade. Nós, indígenas, somos instruídos, conscientizados e politizados, por isso nenhum projeto, seja religioso, político, sanitário, militar deve cair de pára-quedas. A nossa preocupação é construir o nosso protagonismo, dirigir, coordenar, gerenciar projetos que promovam o nosso bem-estar. Estamos cansados de sermos enganados, protegidos apenas no papel, manipulados ideologicamente. Quantos tentam apossar de nossas terras, explorar os minérios e a biodiversidade.

Pode dar um exemplo disso?
Em Pari Cachoeira, no distrito onde eu nasci, os militares construíram uma barragem para produzir energia elétrica. Fizeram promessas de que, quando estivesse em funcionamento, ela forneceria também para as comunidades. Foi uma grande farsa: a energia só é consumida pelos militares no seu quartel. Sabemos que todo dinheiro investido saiu do contribuinte e a terra, onde foi construída, é dos indígenas.

É possível uma convivência harmônica entre as tradições religiosas antigas
dos povos nativos e a Igreja Católica?
Na prática da fé, procuramos adaptações de acordo com nossa realidade cultural – a chamada “inculturação”: ligar a fé junto com o nosso cotidiano. Ainda não atingimos uma boa união da vida e da fé e, para chegarmos a este nível, existem caminhos de trabalho ao longo prazo. Nas celebrações, utilizamos elementos culturais de acordo com a liturgia romana, por outro lado possuímos edições de Bíblia traduzida em alguns idiomas étnicos, assim como os cânticos. No aspecto lingüístico, foram elaborados estudos sistemáticos de idiomas e cartilhas. Colhe-se o fruto dos trabalhos dos missionários plantados há décadas.

E a relação com os pajés?
Na cerimônia da minha ordenação sacerdotal, coube o cumprimento dos pajés, de acordo com a nossa tradição nativa. Foi feito uma unção com líquido vital, a entrega de símbolo do poder e autoridade e um fumo de cigarro. Respeitosamente, os anciãos me apoiaram, gerando assim a alegria de conduzirem alguém do clã para o trabalho da Igreja. Para que isso acontecesse, fiz um bom trabalho de conscientização anterior. Na mentalidade indígena, todos do clã devem permanecer juntos na sua aldeia para procriarem e darem continuidade à história da etnia. Porém, o estilo de vida que escolhi foi respeitado pelos parentes e não houve nenhum atrito e problema grave. Além disso, fui bem aceito pelo meu povo porque antes já haviam testemunhado e visto outros parentes indígenas se tornarem sacerdotes.

Como o Exército entrou em sua vida?
Em 1999, o meu bispo recebeu proposta de liberação de um padre para trabalhar como capelão no Comando de Fronteira do Rio Negro – 5º Batalhão de Infantaria de Selva (Bis). A indicação coube a mim e, prontamente, aceitei a indicação. No ano seguinte, fui incorporado no 12º Batalhão de Suprimentos, em Manaus, num contingente de 70 e poucas pessoas. A primeira fase do estágio me causou susto devido à rigidez dos instrutores, à ordem, disciplina e hierarquia a serem observadas. Mas coloquei-me totalmente à disposição em todas as instruções para aprender a ser militar: participar das formaturas, treinamento físico militar – fiz tudo com prazer e amor à pátria.

Chegou a fazer o curso de sobrevivência na selva?
O estágio de vida na selva serviu apenas como um passeio, porque nascido dentro da floresta, já tinha experiência de confeccionar e morar no tapirí ou rabo de jacu, de caçar, de pescar. Sobreviver lá estava no meu sangue.

Teve alguma experiência ruim enquanto estava incorporado?
Sim, com relação à discriminação e racismo por ser nativo. Tinha companheiros de farda pouco inteligentes que comentavam que o indígena era feio, preguiçoso, alcoólatra e que padre era ladrão de igreja. Um fato que presenciei numa missão de um dos pelotões foi o de um militar dizendo que a pior coisa do mundo era conversar com indígena, ainda mais quando este estivesse alcoolizado. Então o que é que este militar vem fazer na terra indígena? Seria melhor que pessoas deste tipo ficassem em suas terras porque aqui não se fazem necessárias. Nós somos pessoas belas e inteligentes, assim como a nossa mãe natureza, por isso nos amamos e amamos o que Deus nos presenteou neste mundo. A maioria dos militares vem com o único interesse de ganhar dinheiro e por isso cometem atos violentos no sentido moral e desrespeitam a população nativa. Muitas vezes, os casos não são divulgados e os militares não sofrem sanções disciplinares. Por outro lado, convivi com militares competentes e muito inteligentes, recebi o apoio necessário – dificilmente recebia um “não” no meu plano de assistência religiosa. Nos momentos de encontros com lideranças nativas e reuniões com as comunidades, promovidas pela Igreja e o Exército, sempre representei ambas as instituições dentro das prerrogativas atribuídas a mim.

Ter um filho, pai ou marido militar é um símbolo de status?
Aqui vale reproduzir o depoimento que ouvi de um ex-soldado indígena sobre isso: “Na área da Cabeça do Cachorro [fronteira do Estado do Amazonas com a Colômbia], somos nós indígenas 95% da população. Fomos forçados a servir, com promessas de bom salário, habitações, saúde para as famílias e tantas outras promessas que nunca existiram na realidade. Assim, tivemos que sair das nossas aldeias, abandonando os estudos. As ideologias impostas pelo exército brasileiro são muito fortes quando implantadas na cabeça do indígena ingênuo pouco instruído e iludem completamente. Defender a pátria até morrer, como foi incutido em nossa mente com violentas pressões psicológicas, trabalhos forçados, punições severas, gritos humilhantes, disciplina rigorosa, treinamentos perigosos muito loucos sem respeito a pessoa humana do indígena, o rigorismo no respeito ao superior hierárquico e a obediência completa com o sim senhor e não senhor que não dava para abrir nenhum tipo de diálogo apenas obedecer cegamente para evitar punições injustas. Alguns indígenas chegam a ser desertores por causa de horrores que passaram no exército. Todas essas coisas contradizem a vida natural do indígena. Porém, o exército é emprego para muitos militares do nosso país – aos de carreira deve ser um bom negócio para acumular bens. Para mim não foi nada disso. Eu penso que a instituição militar deve humanizar mais. Tive status, salário, mas foi apenas passageiro. Quando permaneci na fileira do exército, todo o esforço era válido, infelizmente isto não tem nenhuma utilidade na vida civil. O mais triste é que fui completamente prejudicado na minha identidade cultural, porque na minha aldeia vivem pessoas muito livres e participativas sem nenhuma opressão. Não é um desabafo magoado, mas é uma leitura crítica, agora, com a paz no coração. Estou cursando faculdade e sou bastante feliz na minha terra e com minha família.”

Por que a maioria dos indígenas não consegue fazer carreira no exército?
Muitos são desligados na hora de se tornarem estabilizados após servirem nove anos e na vida civil têm que recomeçar tudo. Este procedimento é devido ao decreto do ex-presidente da República, o excelentíssimo senhor Ferna
ndo Henrique Cardoso, o sociólogo, historiador e intelectual que governou o nosso país. No período que deveriam estudar e se estruturarem para a vida, doaram tudo pela pátria. A indenização que recebem do tempo de serviço mal dá para comer um mês com a família. Não há nenhuma chance de indígena fazer carreira militar – talvez um ou outro chegue até ao sargento – devido às condições inexistentes para esta finalidade. Com certeza, o exército também perde pelo fato de deixar sair militar indígena que conhece na palma da mão a floresta amazônica.

Você nasceu índio. Ordenou-se padre. Tornou-se tenente do exército. Como tem conciliado esses três mundos diferentes?
Procurei sempre integrar as dimensões presentes em mim, de indígena, padre e militar. Vivi e vou continuar vivendo estas grandezas sem deixar morrer nenhuma. Sou indígena puro, escolhi uma disciplina de vida sacerdotal, servi o exército com doação, continuo feliz e mais autêntico com meu trabalho de conscientização e educação aos jovens e cumprindo a boa evangelização.

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