O Nordeste brasileiro destaca-se como importante parque irrigável do país, tendo no rio São Francisco a sua principal fonte hídrica. O potencial irrigável de sua bacia é de cerca de 1.000.000 de hectares, dos quais 340.000 ha já estão efetivamente irrigados, achando-se o mesmo em constante processo de ampliação. Na bacia do São Francisco existem demandas para os mais diversos usos, não apenas na calha do rio mas ao longo do curso de seus tributários. Entretanto, essas demandas não são conhecidas com a devida clareza, não apenas no que diz respeito aos volumes captados mas também à sua finalidade.
No Plano de Recursos Hídricos da Bacia Hidrográfica do São Francisco consta que, de um total alocável de 360 m³/s, 335 m³/s já se encontram efetivamente alocados. Dessa forma, restaria o saldo de apenas 25 m³/s para os múltiplos usos de suas águas, seja na bacia ou mesmo para uso externo a ela (um volume diminuto, se comparado ao elevado custo do projeto, avaliado em cerca de US$ 6,5 bilhões).
Na esfera energética, o São Francisco é responsável pela geração de mais de 95% da energia elétrica do Nordeste, sendo o seu potencial instalado, hoje estimado em 10.000 MW, quase que integralmente explorado pela Chesf. Com a atual perspectiva de crescimento do PIB Nacional em cerca de 4% ao ano (possível e não improvável), isso poderá traduzir-se num crescimento da demanda anual de energia em cerca de 6%. Com essa situação é de se esperar que nos próximos 12 anos seja necessário dobrar a oferta anual de energia elétrica para o Nordeste, hoje estimada em cerca de 50 milhões de MW/h. Portanto, em 2016 o Nordeste necessitará de 100 milhões de MW/h para dar continuidade ao seu desenvolvimento. Desta feita, torna-se patente a existência de um real conflito no uso das águas do rio, principalmente entre o demandado pela irrigação e aquele utilizado na geração de energia em todo o Nordeste. É nesse cenário de conflito e de penúria hídrica que se pretende retirar do rio o volume necessário para abastecer cerca de 8 milhões de pessoas no Nordeste.
Ao par desse indesejável risco hidrológico, a proposta existente no projeto de transposição do São Francisco menciona que o sistema apenas estará em seu pleno funcionamento no momento em que estejam preenchidos 94 % da capacidade da represa de Sobradinho (principal reservatório regularizador das vazões do rio), o que significa, numa avaliação ao longo dos últimos anos, que apenas será possível a utilização de todo o sistema de sete em sete anos (Sobradinho verteu em 97 e voltou a verter em 2004), o que reforça a desproporção entre o custo e o benefício da obra.
Vale, porém, ressaltar que a vazão do projeto da transposição é de até 127 m³/s, conforme mencionam os responsáveis pelo projeto, e não de 25 m³/s, pois essa sobra existirá apenas em uma única modalidade de operação do sistema. Se permitida a transposição com os 127 m³/s, será necessário o cancelamento das outorgas já asseguradas ao longo de toda a bacia do rio.
Outra questão merecedora de atenção diz respeito ao elevado custo da água para as atividades agrícolas nas bacias receptoras das águas do São Francisco, tendo em vista a previsão de R$ 0,11 por m³ ofertado, constante nos estudos de impactos ambientais do projeto, quando comparado aos valores praticados na região de Petrolina, pela CODEVASF, da ordem de R$ 0,023 por m³, já computado o custo do bombeamento da água posta nas propriedades. Deve-se observar ainda que o valor estimado da água na transposição (R$ 0,11) não contempla o custo do bombeamento desde a fonte exportadora até as propriedades existentes nas bacias receptoras, o que elevará ainda mais esse valor, tornando-o proibitivo para fins de irrigação.
Todas essas questões já foram entendidas e muito bem assimiladas pela população sanfransicana, que se tem mostrado favorável à revitalização do rio e contrária à transposição de suas águas. Tanto é verdade que, no período de 14 a 23 de outubro passado, dando prosseguimento ao processo de decisão participativa sobre as prioridades de usos das águas do rio São Francisco, as Câmaras Consultivas Regionais do Comitê da Bacia do Rio São Francisco promoveram cinco consultas públicas nos municípios integrantes da bacia (Propriá, Bom Jesus da Lapa, Belo Horizonte, Petrolina e Pirapora), com a participação de cerca de 4.000 pessoas, consultas essas que resultaram na mais clara, unânime e expressiva vontade popular de se dizer “não à transposição”. Vale ressaltar que tais eventos espelharam a vontade de um contingente populacional da bacia estimado em cerca de 14 milhões de pessoas.
Mesmo assim, o governo federal vem insistindo na realização do projeto de transposição a todo custo. Isso ficou bem claro na reunião ordinária do Comitê da Bacia do São Francisco, ocorrida em julho passado na cidade de Juazeiro BA, na qual foi discutido o Plano Decenal de Recursos Hídricos da bacia. Nessa reunião, todos os pontos de pauta foram discutidos e aprovados, ficando pendente apenas aquele referente ao uso externo das águas do Velho Chico (transposição). Sobre esse assunto, temendo contrariedades nas pretensões do governo, foi encaminhado pedido de vistas pelo Secretário de Recursos Hídricos do Ministério de Meio Ambiente – MMA, para uma melhor avaliação do assunto e posterior decisão em reunião extraordinária do Comitê. Essa reunião extraordinária ocorreu em Salvador nos dias 26 e 27 de outubro passado e, para surpresa de todos, o parecer ao pedido de vistas foi apresentado pelo Secretário do MMA desqualificando as deliberações do Comitê quanto ao uso das águas do São Francisco, por não considerar legítimas suas atribuições no tratamento dessas questões. Propôs ainda que esses assuntos fossem tratados e decididos em instância superior à do Comitê, dessa feita no Conselho Nacional de Recursos Hídricos, fórum presidido pela ministra do Meio Ambiente, onde o governo tem ampla maioria.
O resultado da reunião de Salvador não podia ter sido outro: colocada em votação, por 42 votos contra 4 e uma abstenção, foi rejeitada a transposição na forma pretendida pelo governo; as atribuições do Comitê foram consideradas legítimas e as águas do Velho Chico só poderão ser usadas, fora da bacia, para abastecimento humano e animal, assim mesmo em situações de escassez comprovada. O governo irá tentar reverter esse quadro no final de novembro, na reunião do Conselho Nacional de Recursos Hídricos.
Essas questões, em si, são graves e de interesse nacional. Parece-nos muito estranho o fato de o projeto da transposição do São Francis
co estar sendo discutido, elaborado e encaminhado à revelia da sociedade brasileira e, de modo especial, da população afetada. Já existe um claro conflito nos usos das águas do São Francisco, o qual parece pouco relevante na ótica de alguns assessores do governo que vêm buscando, através de privilégios concedidos às empreiteiras, a sua perpetuação no poder.
O presidente Lula precisa ter um pouco mais de sensibilidade no trato de temas polêmicos e importantes como esse, onde costumam entrar em cena os anseios de boa parte da população brasileira. Lembramos que os transgênicos já foram aprovados de forma não muito clara para a sociedade, trazendo sérios constrangimentos para a ministra do Meio Ambiente. A continuar agindo dessa forma, contrariando mais uma vez as aspirações do povo brasileiro, o governo estará se desgastando cada vez mais e poderá ter dificuldades no pleito da reeleição em 2006: o governo do presidente Lula fracassa no primeiro turno.
João Suassuna é engenheiro agrônomo, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e um dos maiores especialistas na questão hídrica nordestina.