Campeã no trabalho escravo, família perde terra no Pará

Depois de fazer história com a primeira indenização milionária por trabalho escravo, os Mutran tem sua fazenda decretada para a reforma agrária através de instrumento inédito para desapropriação por questões ambientais e trabalhistas. O governo também tornou públicas as regras para inclusão de empregadores na lista suja
Por Leonardo Sakamoto
 15/10/2004
Mão de José ferida pelo trabalho no pasto e agua que os trabalhadores bebiam

O O Ministério do Trabalho e Emprego publicou no dia 19 portaria que institui o “Cadastro de empregadores que tenham mantido trabalhadores em condições análogas à de escravo” – as conhecidas “listas sujas” do trabalho escravo – e que torna públicas as regras para inclusão e exclusão de nomes. Duas relações já foram divulgadas, em novembro de 2003 e em julho deste ano. Juntas, elas contam com 98 propriedades rurais espalhadas pelos Estados de Rondônia, Pará, Mato Grosso, Tocantins, Maranhão e Minas Gerais. A atualização é semestral.

Segundo as regras do MTE, a inclusão do nome do infrator acontecerá após o final do processo administrativo criado pelos autos da fiscalização. A exclusão, por sua vez, depende de monitoramento do infrator pelo período de dois anos. Se durante esse período não houver reincidência do crime e forem pagas todas as multas resultantes da ação de fiscalização e quitados os débitos trabalhistas e previdenciários, o nome será retirado. De acordo com a portaria, os seguintes órgãos receberão a listagem: ministérios do Meio Ambiente, Desenvolvimento Agrário, Integração Nacional, o Ministério Público do Trabalho, o Ministério Público Federal, a Secretaria Especial de Direitos Humanos, o Ministério da Fazenda e o Banco Central do Brasil. Estes últimos interessam especialmente, pois são responsáveis por criar restrições de créditos aos nomes da “lista suja” em todas as instituições financeiras. Ou seja, proibir qualquer tipo de empréstimo para quem utiliza trabalho escravo.

O Ministério da Integração Nacional, desde o final do ano passado, já está impedindo os relacionados de obterem novos contratos com os Fundos Constitucionais de Financiamento (portaria nº 1150, de 18 de novembro de 2003 do MIN). Uma das empresas que foram impedidas de obter créditos do fundo gerenciado pelo Banco da Amazônia na região Norte é a Jorge Mutran Exportação e Importação Ltda., autuada mais de uma vez por trabalho escravo em sua fazenda Cabaceiras, em Marabá, sul do Pará. Em agosto, ela foi condenada a pagar R$ 1.350.440,00 por dano moral coletivo ao Fundo de Amparo ao Trabalhador. Essa é a maior indenização já paga no Brasil por um caso de redução de pessoas à condição análoga a de escravo.

Fiscal toma depoimento de trabalhadores na fazenda Cabaceiras

A família Mutran possui três fazendas nas duas “listas sujas” do trabalho escravo, divulgadas pelo governo federal. A Cabaceiras foi autuada duas vezes: em agosto de 2002, 22 pessoas ganharam a liberdade e, em fevereiro deste ano, outros 13. Em agosto de 2002, 25 pessoas foram libertadas da fazenda Mutamba, de Aziz Mutran, em Marabá. Por fim, em dezembro de 2001, mais 54 na Peruano.

Os responsáveis pela empresa citados no processo (número 54/2004-X) da Cabaceiras são os irmãos Evandro (dono também da fazenda Peruano), Délio e Celso Mutran e Helena Mutran. Além de pagarem a quantia estipulada pela Justiça, comprometeram-se em adequar às normas trabalhistas (construir alojamentos com saneamento básico, garantir alimentação adequada, contratar legalmente todos os trabalhadores que estiverem a seu serviço, entre outros) e não utilizar mais intermediários que aliciam trabalhadores, como os já conhecidos “gatos”. O descumprimento da sentença acarretará em uma multa de R$ 5 mil por trabalhador encontrado em situação irregular e R$ 10 mil se forem ignoradas as outras obrigações. O não pagamento acarretará em aumento do valor, que passa a R$ 3.858.400,00. Por enquanto, os proprietários vêm quitando as parcelas em dia.

A sentença, expedida por Jorge Vieira, da 2a Vara da Justiça do Trabalho de Marabá, é o final de uma ação civil pública movida pelo Ministério Público do Trabalho e a ela não sabe recurso. De acordo com ele, que há três anos julga casos de escravidão nessa região de fronteira agrícola amazônica, a pressão econômica sobre os produtores está surtindo efeito no combate a esse crime. “É importante ressaltar a inviabilização econômica do empreendimento que usa trabalho escravo. A Jorge Mutran Ltda. não teria nenhum problema caso tivesse um comportamento correto.” Vieira afirma que o lucro fácil de quem usa trabalho escravo está se transformando em prejuízo – o que força uma mudança entre os produtores.

Caderno do gato Belmiro em que está o valor pago pelos peões no hotel

Situação extrema

José* deixou sua casinha em uma favela na periferia da capital Teresina, no Piauí, e foi se aventurar no Sul do Pará para tentar impedir a fome de sua esposa e de seu filho de quatro meses. Logo chegando, trabalhou em uma serraria, onde perdeu um dedo da mão quando a lâmina giratória desceu sem aviso. “Me deram duas caixas de comprimido: uma para desinflamar e outra para tirar a dor, e me mandaram embora”, contou a esta reportagem. Depois, foi limpar o pasto para o gado e levantar cercas na fazenda Cabaceiras, em Marabá (PA), de propriedade da empresa Jorge Mutran Exportação e Importação Ltda. O “gato” lhe prometeu um bom emprego. Porém, ao chegar encontrou água de péssima qualidade, barracos precários, falta de equipamentos de segurança, de comida, de remuneração. Só o trabalho, que lhe comia o resto da mão de tanto roçar, era uma certeza diária. Se não fosse o grupo móvel, coordenado pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) – que fiscalizou a fazenda Cabaceiras no dia 11 de fevereiro deste ano – José iria comemorar com foice e enxada o seu 17º aniversário três dias depois. Segundo a responsável pelo grupo móvel, Marinalva Cardoso Dantas, os peões estavam reduzidos à condição de escravos. Belmiro, um dos gatos da fazenda, foi indiciado pelo crime de aliciamento.

Marinalva reclamou que os Mutran têm sido um entrave no combate ao trabalho escravo no Sul do Pará. “Eles já sabem de tudo o que é errado e até entraram em uma lista. Ou ele
s não acreditam que vão ser punidos ou vão buscar sempre uma nova forma de burlar a fiscalização”, afirma.

Francisco, 74 anos, libertado durantefiscalização

Evandro Mutran, responsável pela empresa proprietária, rebateu: “Nós estamos sendo vítimas, estão fazendo terrorismo conosco”. Procurado durante a fiscalização por esta reportagem em seu escritório em Belém, negou que houvesse trabalho escravo e vê na disputa de terras um motivo para a fiscalização: “Estão fazendo isso porque querem a fazenda para a reforma agrária. Se dormirmos lá, podemos ser mortos pelo MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra], que já queimaram dois carros na fazenda”.

“No Piauí, é difícil conseguir terreno. Aí, eu fui para o Maranhão.” Raimundo* fez o caminho inverso ao de José, mas também não teve muita sorte no sertão e acabou no Sul do Pará a fim de encontrar serviço que o sustentasse. Chegando em Marabá, ele e seu filho Carlos* ficaram hospedados em um “hotel peoneiro”. Esses estabelecimentos são conhecidos por deixar que os trabalhadores pendurem as contas de hospedagem e alimentação até que consigam emprego. Quando o gato de uma fazenda aparece procurando mão-de-obra, o dono do hotel lhe vende a dívida. E com ela vai o trabalhador.

Os dois custaram ao gato R$ 80,00. É isso o que foi pago ao “dormitório do Luís”, que fica no km 06 da rodovia PA-150, pelo gato Belmiro, da Cabaceiras, por quatro dias de comida e o uso de um quartinho. Além deles, foram para a fazenda, no mesmo dia, mais cinco homens que estavam no hotel. Esses estabelecimentos agem de forma ilegal, mas permanecem em funcionamento, sem que as autoridades locais tomem providências. Entre os cerqueiros que foram libertados estava o piauiense Francisco Ferreira Leme, 74 anos. Ele é “peão de trecho”, que não possui residência fixa e vai de cidade em cidade, de trecho em trecho, fazendo um serviço aqui, outro ali, sempre na esperança de conseguir um bom dinheiro que o faça voltar à sua terra ou o leve a uma vida melhor. Desde 1983, está no Sul do Pará e trabalhava desde o início deste ano como cozinheiro para Belmiro. Mas o gato nunca lhe disse quanto receberia.

Evandro Mutran afirmou que não foi constatada nenhuma irregularidade trabalhista dentro da área de sua fazenda. “Encontraram pessoas que não gostavam da comida, apenas. Todos estavam com carteira assinada.”

Chefe da equipe móvel toma depoimento do gerente da fazenda

“Tem que diferenciar irregularidade trabalhista de trabalho escravo. Jamais eu faria trabalho escravo na minha vida. Se eu fosse fazer isso, compraria uma fazenda no meio do mato”, reclama. A Cabaceiras é cortada pela rodovia PA-150, asfaltada, e é distante cerca de 25 quilômetros da sede do município de Marabá. “Eles não dão o direito da pessoa se defender. É um julgamento sumário, vão dizendo que é trabalho escravo. Até mereceria um processo por reparação de danos”, completou Mutran.

Mas a situação reincidente na Cabaceiras foi considerada tão extrema pelo governo federal que, no mesmo Diário Oficial de 19 de outubro, em que as regras das listas de infratores foram publicadas, foi decretada a desapropriação da fazenda para fins de reforma agrária. Ao todo, o imóvel de 9774 hectares poderá beneficiar 340 famílias.

Isso abre um importante precedente não só ao combate à escravidão e à superexploração do trabalho, mas também para a efetivação da função social da propriedade no Brasil e da própria reforma agrária. De acordo com Carlos Henrique Kaipper, consultor jurídico do Ministério do Desenvolvimento Agrário, pela primeira vez na história, foi invocado o descumprimento das funções sociais ambientais e sociais trabalhistas da propriedade rural para fins de desapropriação.

O artigo 186 da Constituição afirma que função social da propriedade é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, aos seguintes requisitos:

José, encontrado aos 16 anos na fazenda Cabaceiras

I) aproveitamento racional e adequado; II) utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III) observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV) exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Até o momento, a justificativa para desapropriação era a de produtividade (inciso I). Porém, no caso da Cabaceiras, foi constatado que, repetidas vezes, os proprietários degradavam o meio ambiente (inciso II) e utilizavam trabalho escravo (inciso III e IV).

“Com a publicação do decreto de declaração de interesse social da fazenda Cabaceiras, o Poder Executivo Federal inaugura um instrumento que – a um só tempo – promove a Reforma Agrária e atua preventivamente na preservação do meio ambiente e na regulação das relações de trabalho no campo, de forma a efetivar as normas constitucionais relativas à reforma agrária e, em especial, o fundamento – também constitucional – da dignidade da pessoa humana”, explica Kaipper.

Ocupação na fazenda Cabaceiras

No dia 26 de março, completaram-se cinco anos que famílias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ocupam parte da fazenda Cabaceiras e travam uma batalha com o proprietário e com o governo pela sua desapropriação. De acordo com Valdimar Lopes Barros, que até fevereiro era advogado do movimento na região, os trabalhadores já produzem há anos na terra ocupada, com culturas de arroz, feijão e milho. O movimento reivindica outras fazendas dos Mutran na região para a reforma agrária.

Evandro Mutran, responsável pela empresa, afirmou que irá recorrer contra o decreto de desapropriação da fazenda. Mas o que já aconteceu com ele é uma prova de que o trabalho escravo está se tornando um mal negócio no país. E de que, se não mudar seu comportamento, este tipo de
fazendeiro vai começar a perder terreno. Literalmente.

*Os nomes foram alterados para preservas a integridade destes trabalhadores.

Outubro de 2004

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