Uma portaria publicada pelo Ministério do Trabalho e Emprego neste mês pode comprometer o combate ao trabalho infantil no Brasil, que atinge atualmente cerca de 5,4 milhões de crianças, a maioria na agricultura, segundo dados da Organização Internacional do Trabalho. Para se adequar às novas regras da carreira dos auditores fiscais, ela extingue os Grupos Especiais de Combate ao Trabalho Infantil e de Proteção do Trabalhador Adolescente (Gectipas) nas Delegacias Regionais do Trabalho (DRTs), que se dedicavam exclusivamente a essa questão. A partir de agora, as ações de combate ao trabalho infantil passaram a ser responsabilidade de todos os fiscais, que devem cumprir metas individuais e institucionais para conseguirem gratificações. A pontuação para receber esse benefício, no entanto, não inclui o controle sobre o trabalho de crianças. Entre as ações que pontuam para o recebimento do bônus estão a fiscalização do registro empregatício, da arrecadação de FGTS e das condições de saúde do trabalhador nas empresas.
As alterações na carreira dos fiscais e a conseqüente extinção dos Gectipas preocupam as entidades de combate à exploração da mão de obra infantil e os fiscais que faziam parte desses grupos especiais. Eles acreditam que essas medidas vão desestimular as ações de combate ao trabalho infantil.
“Fiscalizar o trabalho infantil não gera arrecadação, pois muitas vezes, por ser trabalho informal, nem tem quem multar. Mas essas ações têm um papel social da maior importância, porque somos responsáveis por proteger as crianças e adolescentes do país”, defende Isa Maria de Oliveira, secretária executiva do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil. “Tememos que, com esta mudança, a prioridade não seja assegurada. Os Gectipas cumpriam um papel importante, com uma estrutura voltada unicamente para isso. Essa atenção especial trouxe bons resultados, reduzindo o trabalho infantil no país”, afirma. Segundo Isa Maria, se essas ações não tiverem continuidade, haverá um sério comprometimento em relação ao combate à prática no país.
Uma das coordenadora dos extintos Gectipas, que conversou com a Agência Carta Maior, mas preferiu não ser identificada, concorda que essa fiscalização terá menos força. “Agora dependemos da determinação do delegado para agirmos nesses casos. Antes dávamos prioridade, mas agora temos obrigação de cumprir com outras tarefas que nos tiram o foco”, lamenta. Ela acredita que o Ministério do Trabalho conseguiria cumprir suas metas de arrecadação com as multas oriundas da fiscalização sem precisar destruir esse trabalho. “Quem vai cuidar da função social da fiscalização?”, questiona.
A fiscalização era apenas um aspecto do trabalho que vinha sendo realizado pelos Gectipas. Criados em 2000, eles eram treinados especificamente para essa atuação e desenvolviam diversas ações, como o mapeamento do trabalho infantil. Coletavam dados, detectavam os focos e definiam as prioridades de atuação. Depois, mandavam as demandas aos ministérios com os quais tinham parceria, como o do Desenvolvimento Social, e encaminhavam as crianças e adolescentes para serem incluídos nos programas do governo federal. “Os grupos influenciavam as políticas públicas nacionais e locais, pois criavam demandas com os números e as informações que forneciam. Muitas vezes o Ministério Público agia baseado nos nossos relatórios”, afirma a coordenadora.
Esses grupos especiais tinham também um papel formador, pois capacitavam diferentes instituições para auxiliar no combate ao trabalho infantil, participavam de palestras e desenvolviam atividades educativas. Faziam ainda um trabalho de negociação e articulação de diversas entidades como Ministério Público, conselhos tutelares e de direito, sindicatos e ONGs (organizações não governamentais), com os quais formavam frentes de combate à exploração da criança e do adolescente. Cuidavam ainda da sensibilização das famílias, das prefeituras e da população. Além disso, os Gectipas fiscalizavam a qualidade e a realização das Jornadas Ampliadas – atividades de lazer, esportivas, culturais e de reforço escolar previstas no Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti).
Segundo outro coordenador de Gectipas, em alguns Estados foram criadas assessorias de trabalho infantil, que na teoria poderiam realizar para deste trabalho. Mas elas não têm as mesmas atribuições dos grupos especiais, que contavam com recursos próprios para agir. “A assessoria só remete as demandas para a chefia. A extinção dos Gectipas foi uma grande perda porque agora elas serão diluídas no setor de fiscalização. É lamentável esse retrocesso”, avalia. Segundo ele, os auditores foram pegos de surpresa com essas resoluções.
Outro lado
“Os grupos foram extintos porque a estrutura dos Gectipas era incompatível com a nova legislação que regulamentou a carreira dos fiscais”, justifica Leonardo Soares, diretor do departamento de Inspeção do Ministério do Trabalho. “A importância do tema não foi extinta, a preocupação não muda e as atividades continuam dentro do Ministério. Não existe mais um grupo para cuidar desse assunto, mas ele passou a ser responsabilidade do conjunto de entidades. Depende apenas do planejamento das delegacias”, completa. Segundo Soares, foi a categoria dos auditores fiscais que pressionou o Congresso Nacional para que também fosse incluída nas gratificações por arrecadação.
Para o presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho, Fahid Tahan Sab, as ações de combate ao trabalho infantil deveriam ser incluídas nas metas da categoria, ou seja, deveriam pontuar e fazer parte da gratificação. Ele não acredita que essa nova estrutura vá necessariamente desestimular a atuação social dos fiscais, porque o trabalho deles depende da direção da chefia. No entanto, admite que “se não houver a possibilidade de aumentar sua remuneração com um tipo de trabalho, os fiscais vão buscar fazer outros”. Segundo ele, o maior problema na verdade é o pequeno número de auditores fiscais para atender à demanda do país.
“Ainda temos esperanças de que esse quadro se reverta. A fiscalização não pode ter apenas caráter arrecadatório, a função social tem que ser mantida e as entidades já estão se movimentando nesse sentido”, afirma uma dos coordenadores do Gectipas. O Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil está marcando uma audiência com o Ministério do Trabalho ainda na primeira quinzen
a de novembro para saber quais medidas o governo federal pretende tomar para que o trabalho infantil seja uma prioridade e para que haja continuidade nas ações realizadas até agora. “Temos que reafirmar a importância do Ministério do Trabalho investir e dar prioridade ao trabalho infantil informal, ou seja, nas ruas, no trabalho infantil doméstico, nos lixões. Essas são as formas mais difíceis de serem combatidas e era onde os Gectipas atuavam”, lembra Isa Maria.
Da Agência Carta Maior