Um convite da produção do programa do apresentador Jô Soares (TV Globo) ao juiz do trabalho em Marabá (PA), Jorge Vieira, "revogado" pouco antes da gravação da entrevista, causou confusão e constrangimentos na tarde desta quarta-feira (27). Vieira, conhecido nacionalmente por suas condenações de fazendeiros acusados de manter trabalhadores em condições análogas à escravidão, foi trazido a São Paulo pela emissora para participar de uma entrevista sobre trabalho escravo, juntamente com o coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Frei Xavier, um dos maiores especialistas no assunto do país.
As ameaças de morte sofridas pelo juiz, responsável pela primeira indenização milionária contra a prática escravista no país (Fazenda Cabaceiras, no sul do Pará, que mais tarde sofreu a inédita desapropriação por desrespeito aos direitos trabalhistas), motivou o convite para a entrevista. A produção do Programa do Jô pagou passagens e hotel para Vieira, e ainda na noite de terça-feira, véspera da gravação do programa, com ele já em São Paulo, confirmou sua participação.
"Hoje (quarta-feira) fui surpreendido por uma ligação da produção dizendo que eu não ia mais falar porque haveria a possibilidade de uma ação ou pedido de direito de resposta por parte de alguma entidade ligada ao setor ruralista. Pelo que conheço da legislação, não há possibilidade de direito de resposta em relação ao que terceiros falam num programa de entrevistas. Acho que houve algo estranho, mal-explicado", afirma o juiz.
Segundo a produtora do Programa do Jô, Anne Porlan, o que houve foi um mal-entendido. "O produtor que fez contato com o juiz é novo na emissora, e talvez tenha havido uma confusão. Queríamos dois religiosos para falar da questão, e a CPT acabou indicando o magistrado. Na verdade, ele deveria apenas subsidiar o debate, não participar dele. Acho que ele ficou melindrado com isso", disse Porlan.
"Até onde entendo, as pessoas vêm, pagas pela TV, quando vão dar entrevistas. E até ontem essa entrevista – eu tenho os e-mails da produção do programa, confirmando – estava de pé. Quando a produtora do programa me ligou desmarcando, se desculpou, dizendo inclusive que o apresentador é uma pessoa muito gentil e educada, e que estava constrangido com a situação. Mas se houve constrangimento, ele foi causado pela própria produção, porque, sinceramente, não haveria necessidade de eu estar aqui em São Paulo", rebate Vieira, que desmarcou um compromisso em Natal (RN) para atender ao convite da Globo.
A carta
Mas o que teria motivado o "desconvite" repentino ao juiz? Em um primeiro momento, tanto Vieira quanto Frei Xavier desconfiaram de uma possível pressão por parte de uma importante organização ruralista, a Confederação Nacional da Agricultura (CNA), cujo vice-presidente enviou uma carta a Jô Soares reclamando da "parcialidade" com que a temática vem sendo tratada em seu programa.
Questionada sobre esta carta pela Agência Carta Maior, a primeira reação de Porlan foi de surpresa: "Como vocês sabem disso?". Ao pedido da reportagem para que confirmasse ou negasse que uma organização ruralista havia escrito ao programa, a produtora respondeu que havia sim "uma carta", mas negou saber quem era o remetente.
Trabalho escravo tem lado?
Logo após a conversa com Porlan, a reportagem da Agência Carta Maior resolveu tirar a questão a limpo com o próprio missivista, o vice-presidente da CNA, Rodolfo Tavares. Confirmando de imediato ter escrito ao Programa do Jô, Tavares disse que os ruralistas se sentiram incomodados com a "parcialidade" com que a questão do trabalho escravo estaria sendo tratada pelo apresentador, que semanas antes entrevistou outro representante da CPT sobre o tema. Segundo ele, a sociedade deveria ouvir outros setores da economia para poder formar uma opinião.
"Entendemos que a visão sobre o assunto deve ser plural, e que outros setores da sociedade têm que participar do debate. Veja bem, o avanço da agricultura está incorporando grandes áreas (na Amazônia), onde há problemas, onde a população não é fixa, como nos centros urbanos, o que complica as relações de trabalho. Começando pelo fato de que estas relações começam muitas vezes em outros Estados. O empregador, nestes casos, não tem que apenas pagar uma passagem de ônibus, tem que construir alojamentos, cozinha. E aí a atuação do Ministério do Trabalho gera imensas dificuldades para o empregador. Não que qualquer coisa justifique o trabalho forçado, mas o Governo esteve ausente destas áreas por 500 anos, e ainda falta muita informação", argumenta Tavares.
Esta posição acabou indignando o próprio Jô Soares, que, no programa desta quarta, abriu a entrevista de Frei Xavier com a leitura da carta de Tavares. "O Sr. Rodolfo Tavares fala de unilateralidade na abordagem do tema. Não entendi o que quis dizer, de forma unilateral. Que outro lado existe aqui? Do outro lado teria que ter um feitor, então? Esse aqui é um fórum aberto à discussão, mas nesse caso não há o que discutir. Infelizmente, não posso trazer ninguém contra [à condenação do trabalho escravo]", afirmou Jô.
Sobre a confusão referente à entrevista com Vieira, Frei Xavier disse à Agência Carta Maior, logo após a gravação do programa, no final da tarde, que também estranhou a exclusão dele. Acrescentou que foi avisado pela produção do programa que trechos de sua entrevista que citavam nomes de fazendeiros seriam cortados. "Não entendi porque. Afinal, são informações de domínio público. Mas, a bem da verdade, acho que todas as decisões do programa sobre esta entrevista foram tomadas pela produção. Não senti nenhuma pressão externa", diz Xavier.
O juiz Jorge Vieira vê o incidente com alguma preocupação, principalmente porque, para ele, a questão do trabalho escravo é um tema abrangente, vítima de muito preconceito. "A coisa não começa e termina naquelas fazendas no Pará (autuadas por trabalho escravo). Há uma infinidade de interesses envolvidos. Mas agora não acredito que a Globo cancelou a minha entrevista por causa dessa cartinha que chegou lá. Deve ter sido outra fonte de maior influência. Um programa com essa credibilidade, se não me queria, não deveria ter me convidado. Só posso citar Camões: quando um poder mais alto se alevanta, alguém tem que encolher".
Da Agência Carta Maior