O maranhense Jorge Vieira, juiz do trabalho em Marabá, Sul do Pará, ganhou notoriedade nos últimos dois anos por confrontar uma cultura de impunidade que fez da região uma das mais violentas em termos de conflitos agrários do país. Partiu dele a primeira condenação na Justiça do Trabalho, em 2002, de um fazendeiro acusado de manter empregados em condição análoga à escravidão. A partir daí, sua atuação – que inclui cerca de oito condenações similares – não apenas chamou a atenção da imprensa nacional, mas lhe valeu várias ameaças de morte.
Convidado pela TV Globo nesta quarta-feira (27) a participar de uma entrevista sobre trabalho escravo com Jô Soares, Vieira foi surpreendido por um telefonema de última hora da produção do programa cancelando sua participação (leia "Juiz que condenou escravagistas fica fora de Programa do Jô"). Sem espaço na Globo, o juiz encontrou retaguarda na redação da Agência Carta Maior, em São Paulo, onde concedeu entrevista. Leia a seguir os principais trechos:
Agência Carta Maior – O Sul do Pará sempre foi uma área muito conflituosa. Foi uma opção sua trabalhar na região?
Jorge Vieira – Cheguei lá há três anos, e primeiro me estabeleci na comarca de Paraopebas. Esta comarca abrange três municípios emblemáticos: Paraopebas, onde fica o Projeto Carajás, da Vale do Rio Doce. Eldorado dos Carajás, onde houve o massacre dos sem-terra em 1996, que vitimou 19 pessoas. E Curionópolis, onde fica o garimpo de Serra Pelada. É uma região muito conflituosa, com muitos problemas sociais e briga pela posse da terra, seja para grilar, explorar, seja para cultivar capim…
CM – Cultivar capim?
JV – Isso, eles cultivam capim. Aí os trabalhadores sem-terra, que entendem que a área é improdutiva, invadem, e fica esse problema.
CM – O juiz, para lidar com essas situações, tem que ter algum preparo específico, uma sensibilidade diferenciada?
JV – Acho que o que tem faltado é sensibilidade, e isso você não adquire com treinamento. Eu acho que se adquire sensibilidade conhecendo a realidade. E aí eu cunhei uma expressão para esta coisa, que chamo de ativismo judiciário. Não é a mesma coisa que o Greenpeace faz, mas ativismo no sentido de que o juiz tem que entender que a grande função dele é de efetivar direitos garantidos na legislação. Porque a legislação brasileira é muito boa se compararmos com a de outros países, nossa Constituição é muito melhor do que a americana. Mas uma coisa é estar na lei, e outra coisa e a aplicação prática. A função do juiz é essa, é fazer com que os direitos comecem a existir. Quando o SUS [Sistema Único de Saúde] não cumpre determinados procedimentos, há juízes que determinam o cumprimento. É isso que eu chamo de ativismo judiciário, ou seja, ativismo no sentido de você efetivar direitos, que essa é a função do juiz. Não simplesmente aplicar a lei, mas fazer justiça.
CM – Mas esse conceito não parece muito difundido no judiciário da região, onde a impunidade parece ser patrimônio histórico…
JV – Quando eu fui para o Sul do Pará, não era prática do Poder Judiciário combater o trabalho escravo de um modo geral. Tanto a Justiça Estadual quanto a Federal não faziam isso, embora o trabalho escravo já existisse naquela região há mais de 30 anos. Quando cheguei lá, dei uma sentença condenando um escravagista e dizendo claramente que o condenava por trabalho escravo, isso chamou a atenção da imprensa. A primeira sentença da história da justiça do trabalho contra trabalho escravo foi essa [em 2002]. Houve antes uma condenação penal, cuja pena foi o pagamento de 100 cestas básicas. Isto é ridículo, tendo em vista que o crime que o fazendeiro cometeu é um crime conta a humanidade, o trabalho escravo é um crime de lesa humanidade.
CM – Outra sentença inédita foi a condenação dos donos da fazenda Cabaceiras, que tiveram de pagar 1,3 milhão de reais. Naquela época, o senhor falou que o trabalho escravo estava começando a se tornar um mau negócio.
JV – Exatamente. A fazenda Cabaceiras é de uma família muito importante do Sul do Pará [Mutran], os fundadores da cidade de Marabá. Quer dizer, eles têm muita influência política e econômica. Mas a família constou da lista do trabalho escravo em todas as suas edições. É difícil ver essas pessoas atrás das grades, quer dizer, é difícil uma condenação penal. Então a gente tem essa outra estratégia, da sanção pecuniária, a sanção que dói no bolso. Porque o trabalho escravo tem esse tripé: a miséria do povo – ou seja, se fizermos um concurso público para trabalho escravo, teria gente fazendo inscrição, e a fila dobraria o quarteirão –, a impunidade – as pessoa acham que estão acima da lei mesmo, que podem praticar crimes impunemente –, e a questão da lucratividade. Isso é um negócio muito lucrativo, você utiliza trabalho humano sem pagar nada, ao contrário, faz com que os trabalhadores paguem alguma coisa. Isso tudo gera trabalho escravo.
CM – E como se resolvem esses problemas?
JV – A questão da miséria é difícil resolver. Pelo menos por nós, do Judiciário, porque não temos ações de governo, fazemos ações de Estado. E as ações de Estado são eminentemente punitivas, repressivas. Então nos restam as outras duas questões: combater a impunidade e a lucratividade desse problema. A impunidade atacamos condenando essas pessoas e fazendo com que elas paguem. A gente bloqueia o patrimônio, os bens, impede a venda das fazendas, coloca tudo sob investigação. E também exige as indenizações. Quer dizer, se o dono da fazenda tivesse cumprido a lei e pago os trabalhadores, não teria gasto nem perto do que foi a multa. Isso fez do trabalho escravo um mau negócio, na linguagem do agronegócio. Essa linguagem as pessoas entendem.
CM – Quantas sentenças condenatórias o senhor deu nestes três anos de trabalho no Sul do Pará?
JV – São poucas, porque são ações civis públicas, que envolvem um número grande de pessoas. Uma ação coletiva pode envolver 40, 70, 100 trabalhadores. Eu devo ter dado umas oito sentenças nessas ações. Mas elas são muito importantes porque, apesar do número pequeno, passam um recado muito direto para os que utilizam trabalho escravo. Tomemos os proprietários da Cabaceiras. Aquele outro proprietário que talvez quisesse utilizar este mesmo modo de produção pode pensar: bom, se esse, que é todo poderoso, teve que pagar, imagina o que não vão fazer comigo.
CM – Uma das principais acusações dos movim
entos sociais em relação ao Judiciário em geral é que este poder trabalha com dois pesos e duas medidas, levando à criminalização das organizações sociais e à impunidade dos crimes cometidos pelas elites. Isso é um fato?
JV – Sem dúvida. Na Justiça do Trabalho, nem tanto, mas no contexto do Poder Judiciário, sem dúvida. Por isso essa grande comoção dos fazendeiros e da OAB local, que é ligada ao setor, com pressões para que eu saia da região. Porque as pessoas estão acostumadas com a impunidade. E aí eu tenho de concordar com os movimentos sociais, de fato há dois pesos e duas medidas. É muito mais fácil condenar o sujeito que foi caçar um mutum por porte ilegal de arma ou crime contra o meio ambiente do que um sujeito que é grande proprietário de fazendas. Não tem nem comparação. Existe de fato uma grande discriminação dos excluídos no judiciário como um todo, um tratamento desigual. A gente só combate essa impunidade com a luta dos movimentos sociais. A Comissão Pastoral da Terra passou os últimos 30 anos denunciando crimes, até que um dia chegue um procurador, um juiz que resolva fazer alguma coisa. Acho que os movimentos sociais estão aí pra isso, pra cobrar, pra apontar as dificuldades.
CM – Você tem recebido várias ameaças de morte por conta de sua ação contra o trabalho escravo. Não tem medo?
JV – Enquanto eu estiver no Sul do Pará, quem for processado por trabalho escravo vai perder. Vai perder propriedade, perder patrimônio, perder financiamentos. Vai perder, eu posso falar por mim. O Estado me dá uma série de garantias. Eu sou inamovível, sou vitalício, meus vencimentos são irredutíveis, isso não é pra mim mesmo. Isso é exatamente para defender as pessoas que não têm as garantias que eu tenho. Acho que o juiz tem de usar sua condição privilegiada para garantir os direitos legais da população, embora você vá contrariar muitas pessoas e talvez tivesse vida mais tranqüila se não o fizesse.
Da Agência Carta Maior