A transformação de José Alencar em ministro da Defesa pode criar dificuldades para o combate ao trabalho escravo caso o vice-presidente não mude sua forma de pensar a respeito do tema. Alencar já havia declarado publicamente que não tem certeza da existência de escravidão contemporânea no Brasil. O apoio do Ministério, que controla as Forças Armadas, é importante, pois algumas propriedades rurais na Amazônia só podem ser atingidas por aviões ou helicópteros devido à dificuldade de acesso.
Durante o 6º Congresso de Agronegócio da Sociedade Nacional da Agricultura, realizado no Rio de Janeiro, no dia 26 de agosto, o vice-presidente afirmou: “Não posso dizer que haja trabalho escravo. Há trabalho degradante. Escravo é quem não tem liberdade e tem dono”. A afirmação é temerária e há duas hipóteses para explicá-la: ou Alencar, apesar de grande empresário do setor agrícola, não faz mínima idéia da situação dos direitos humanos na região de expansão agrícola ou está minando a iniciativa do seu patrão, que lançou pessoalmente em março de 2003 o Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo.
Um exemplo de local onde as Forças Armadas podem colaborar com a logística de transporte da fiscalização é a Iriri/Terra do Meio, no coração do Estado do Pará, uma região em que a floresta tomba diariamente para alegrar madeireiras irregulares e dar lugar a pastos. Nesses locais, onde a presença do Estado é tênue, é que floresce a escravidão com mais vigor. E não são raras as vezes em que os fiscais do trabalho levam um dia inteiro por estradas enlameadas para chegar a uma fazenda enquanto os proprietários tomam um atalho pelo céu e chegam antes.O uso de aeronaves por parte da fiscalização não tem sido freqüente, devido a custos e dificuldades burocráticas, mas o Ministério da Defesa já participou de ação de libertação de trabalhadores na Iriri/Terra do Meio. A quantidade de trabalhadores em condição de escravidão mostra que a parceria só tende a crescer.
No entanto, não tem sido difícil encontrar políticos que se opõem às ações de combate ao trabalho escravo contemporâneo no Brasil. Do vereador da pequena cidade da região de fronteira agrícola amazônica a membros da alta cúpula do governo federal, surgem pressões e declarações infelizes que em nada contribuem para a solução do problema, mas, pelo contrário, acabam por dar uma aura de legitimidade ao comportamento de proprietários rurais que insistem em tratar os seus empregados como animais.
Além disso, colocam em risco a segurança dos funcionários públicos, sejam eles auditores do trabalho, procuradores do trabalho ou policiais federais, que participam da linha de frente do combate ao trabalho escravo nos grupos móveis de fiscalização.Desde 1995, essas equipes rasgaram a Amazônia verificando denúncias de escravidão e libertando mais de 12 mil pessoas. Vale lembrar que, em 28 de janeiro deste ano, três auditores do trabalho e um motorista foram executados durante fiscalização na região de Unaí, em Minas Gerais.
Denunciados como mandantes do crime, Norberto e Antério Mânica, que estão entre os maiores produtores de feijão do mundo, foram presos. Porém, recentemente, Antério ganhou a liberdade após ser eleito prefeito em Unaí, pelo PSDB, com 72,37% dos votos válidos. O atual prefeito da cidade, José Braz da Silva, foi pego com mão-de-obra escrava na fazenda Boa Esperança, em Parauapebas, sudeste do Pará. A ação, que libertou dez trabalhadores no final de 2002, fez com que o nome de Braz aparecesse na segunda “lista suja” divulgada pelo governo federal com os nomes de proprietários e empresas autuadas por trabalho escravo.
No Rio de Janeiro, o presidente da Assembléia Legislativa, Jorge Sayed Picciani, está tendo que se explicar à Justiça porque, em junho de 2003, uma ação de um grupo móvel libertou 39 pessoas de sua fazenda Agrovás, em São Félix do Araguaia (MT). De acordo com a coordenadora da equipe de fiscalização, Marinalva Cardoso Dantas, apesar de a fazenda ser de criação de gado, os trabalhadores não tinham acesso à carne e estavam caçando animais silvestres, como onças, para se alimentar. Um adolescente de 17 anos foi libertado na ocasião. Os fiscais também encontraram uma criança pequena, de seis anos, com os pais no meio dos outros trabalhadores. “Para os filhos dos funcionários da fazenda havia escola, professora contratada. Mas, para o filho dos peões, não tinha nada. Ele era tratado como um bichinho mesmo. Não podia nem brincar com outras crianças porque os peões estavam proibidos de sair da mata onde trabalhavam e ir até perto da sede da fazenda”, conta Marinalva. Os peões estavam submetidos à vigilância armada de “gatos” [contratadores de mão-de-obra que trabalham para os fazendeiros] para evitar fugas. Pessoas lavavam roupa, tomavam banho e bebiam da mesma água.
O senador João Ribeiro (PFL-TO) foi denunciado pelo procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, ao Supremo Tribunal Federal por aliciar 38 trabalhadores rurais e sujeitá-los à condição de escravos na fazenda Ouro Verde, de sua propriedade – município de Piçarra, no Sudeste do Pará. Os trabalhadores foram libertados em ação do grupo móvel de fiscalização entre os dias 10 e 13 de fevereiro deste ano. Estavam em alojamentos precários feitos com folhas de palmeiras e sem acesso a sanitários. Segundo Fonteles, “a repugnante e arcaica forma de escravidão por dívidas foi o meio empregado pelos denunciados para impedir os trabalhadores de se desligarem do serviço”. Ao se referir em discurso na tribuna do Senado a um outro caso de proprietário autuado por trabalho escravo no Tocantins, Ribeiro apelou: “Senhores fiscais do trabalho, complacência para com aqueles homens rudes do campo que ainda não se adaptaram aos novos tempos”.
Não se pode esquecer do deputado federal Inocêncio de Oliveira (PFL-PE), proprietário da fazenda Caraíbas, da qual, em março de 2002, foram libertadas 54 pessoas que eram mantidas como escravos. Inocêncio vendeu a propriedade, que fica no município de Gonçalves Dias, no Maranhão, mas isso não o livrou de constar na primeira “lista suja”. Com isso, está impedido de receber créditos rurais dos fundos constitucionais do governo.
Da família Mutran, no Pará, ao deputado/prefeito eleito Chico Filho, no Piauí, passando pelos doadores de campanha. A lista de relacionamentos entre os que utilizaram trabalho escravo e a classe política que os apóia é extensa para ser tratada neste texto. Na maioria das vezes, é a defesa cega do agronegócio a qualquer custo, repetindo a já desgastada justificativa de
que o combate ao trabalho escravo vai gerar prejuízos à balança comercial do país. Mas a verdade é que não vai. O número de fazendeiros que se utilizam dessa prática é muito pequeno dentro do total de empresários do campo.
A contradição dessa história é que muitos empresários honestos preferem agir de forma corporativista, defendendo o companheiro que foi fiscalizado, autuado e está sofrendo processo judicial, do que exigir dele que mude o seu comportamento. O trabalho escravo é, sim, conseqüência da busca por lucro fácil e corte de custos. Isso acaba criando duas frentes de empresários: aqueles que são cumpridores da lei e investem tempo e dinheiro na modernização das relações de trabalho no campo e os que preferem maximizar o custo-benefício através do não-cumprimento da legislação trabalhista e ambiental. Ou seja, os empresários honestos acabam por defender aqueles que estão lhe passando a perna, usando de concorrência desleal.
Por fim, o respaldo dado, seja nas urnas, seja na defesa maniqueísta do agronegócio (beneficiando o que há de mais anacrônico no Brasil), acaba ecoando no Congresso Nacional. Lá, a bancada ruralista consegue travar o andamento de projetos importantes, como a proposta de emenda constitucional que prevê o confisco das terras em que forem encontradas trabalho escravo. Aprovada pelo Senado, ela anda capenga pela Câmara. Deputados como Kátia Abreu e Ronaldo Caiado não têm precisado de muito esforço para criar entraves ao trâmite da lei, rindo dos esforços de parlamentares progressistas, órgãos governamentais, ministério público e entidades da sociedade civil que lutam pela sua aprovação.
A primeira meta do Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo foi a Presidência da República declarar o combate e a repressão a essa prática como prioridades do Estado brasileiro. Lula discursou, o processo iniciado no governo Fernando Henrique deu um salto e se intensificou, tanto que o número de libertados pelos grupos móveis de fiscalização em 2003 foi quase o mesmo da soma de todos os anos anteriores. Processos correm nas Justiças Federal e do Trabalho, indenizações milionárias são pagas. Nomes conhecidos passam (pelo menos, alguns dias) na cadeia, o que antes era impensável. Porém, tudo isso já está criando uma onda de contra-ataques por parte das forças anacrônicas, que vão mobilizar suas redes política e econômica a fim de manter tudo como está.
Por isso, para se tornar uma legítima prioridade de estado e fazer com que o Plano Nacional não vire papel morto, a Presidência da República vai ter que demonstrar mais empenho, seja na articulação política para aprovação das leis necessárias, seja ao enquadrar membros rebeldes da administração federal e da base aliada.