O bicho-homem fora do jogo

No Parque Nacional do Jaú, Patrimônio da Humanidade pela Unesco, populações tradicionais perdem seus direitos em nome de uma preservação ambiental duvidosa
Texto e Fotos: Maurício Monteiro Filho
 24/11/2004
 Artesanato do cipó é uma das formas dos moradores do PNJ de complementar a renda

Cerca de 40 pessoas, alguns moradores da cidade de Novo Airão, distante 150 km de Manaus, capital do Amazonas, outros apenas de passagem, amontoavam-se no pequeno e único cinema do município. Olhos ansiosos e “mãos tortas de puxar cipó”, esperavam pacientemente o momento em que poderiam contar suas histórias. Entre depoimentos exaltados e narrativas resignadas, ecoava em todos os discursos o Parque Nacional do Jaú (PNJ), criado em 80, segundo maior do Brasil e único por abrigar uma bacia hidrográfica inteira, a do rio Jaú.

A maioria dos que ali estavam havia abandonado suas terras após a inauguração da unidade de conservação (UC), termo que se aplica a todas as áreas protegidas pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), para vir morar na cidade. Afinal, segundo o entendimento da legislação ambiental vigente no Brasil, é proibida a ocupação humana em áreas de parque.

Entretanto, uma parcela dos presentes permaneciam vivendo no PNJ. Eles representavam os cerca de 920 ribeirinhos que ainda moram na UC e, 24 anos passados desde sua criação, completamente dependentes dos rios e das lavouras que ali cultivam, convivem com a ameaça constante da perda de suas terras, seu alimento, sua história e cultura tradicional.

Até hoje, as famílias do PNJ travam uma verdadeira batalha em busca de uma solução para sua situação, seja a indenização, seja o reassentamento. Realidade essa que mesmo para os funcionários do Ibama que atuam na área é insustentável. “Vinte anos de indefinição rebaixaram a auto-estima e a cidadania dos moradores”, atesta Marcelo Bresolin, atual chefe do PNJ.

Naquele dia, reunidos no cinema transformado em arena, juntavam-se para compartilhar suas angústias sobre o futuro e as incertezas cultivadas ao longo de mais de duas décadas de espera.

No fim-de-semana, o filme em cartaz seria, ironicamente, “Pânico na Floresta”, uma história de terror sobre um grupo de jovens aprisionados numa floresta inóspita.

Histórico de criação do parque

Com 2,27 milhões de hectares, o PNJ está localizado entre os municípios de Barcelos e Novo Airão. A UC compreende, a norte, os rios Paunini e Unini, na porção central o rio Jaú e ao sul o rio Carabinani.

O trajeto até o parque é cansativo. São cerca de 5h de ônibus entre Manaus e Novo Airão, devido às precárias condições da estrada, e mais entre 2h30 e 3h de “voadeira” com motor de 40 hp. Mas a dificuldade do percurso é compensada pelo cenário.

No auge da cheia, no mês de julho, são raras as porções de terra firme. A água reina, ora na forma de igarapés estreitos, por onde mal passa uma canoa, ora em rios de largura impressionante. Acima da lâmina da água, praticamente só restam as copas das árvores.

 Só o olhar acostumado à mata identifica a presença humana no
Jaú, expressa pelos telhados misturados à floresta

Na vazante, nos meses de outubro e novembro, a paisagem de floresta e rios é complementada pelo aparecimento de áreas de terra firme e de pedras que formam corredeiras e cachoeiras, tornando difícil a navegação.

A UC é famosa pelos peixes ornamentais que habitam seus rios, como o pirarucu, o ameaçadíssimo peixe-boi, além do jaú, um dos maiores do país, que dá nome ao parque. Em busca dessas espécies valiosas e também da fartura de pesca, amadores e grandes empresas pesqueiras passaram a atuar fortemente nas águas da região.

Outra atividade predatória freqüente até hoje é o tráfico de quelônios, como tartarugas, cágados e tracajás. Além de seus ovos e carne servirem como alimento às populações locais, o casco tem alto valor comercial. Por isso, eles passaram a ser perseguidos por grupos de dentro e fora do parque, especialmente nas épocas de desova.

Assim, a criação do PNJ tinha por objetivo “preservar os ecossistemas naturais englobados contra quaisquer alterações que os desvirtuem”, segundo o texto do próprio decreto de criação. A medida se tornava necessária uma vez que a ação humana, especialmente de não-moradores da região, colocava em risco essa riqueza natural.

Outra forma de reconhecimento da relevância da região na conservação da biodiversidade mundial foi a escolha do PNJ como Sítio do Patrimônio Mundial da Unesco (Organização das Nações Unidades para a Educação, a Ciência e a Cultura), em dezembro de 2000.

Porém, por mais válidas que sejam as iniciativas de preservação ambiental da área, elas esbarram na presença de comunidades tradicionais, que dependem da caça, da pesca e das lavouras do Jaú. “Existe um conflito de interesses legítimos na área: a proteção do meio ambiente e a vontade dos ribeirinhos”, afirma Izabella Brant, procuradora da República do Ministério Público Federal em Manaus.

Os choques entre o governo federal e as populações ali presentes começaram por volta de 1985. Apesar da criação no início da década de 80, o PNJ só foi ocupado realmente em meados daquela década pelo extinto IBDF (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal), órgão federal que, em associação com outras entidades, deu origem, em 89, ao Ibama.

 Flutuante do Ibama no rio Carabinani é hoje o único posto de fiscalização em todo o parque

Na época, Claudionor Ramos Nogueira morava com a família na foz do rio Jaú. “Meu lugar era ali. Tinha peixe, banana, cará. Mas eles [o IBDF] se apossaram. Diziam que, se não saísse, iam derrubar a casa e tocar fogo”. Hoje, na terra em que morava seu Claudionor, está localizado o flutuante do Ibama, única base do órgão em todo o PNJ. Assim, na época, a recente presença do Estado na área já gerava nos moradores um sentimento de ameaça e exclusão, que só nos últimos anos passa a perder espaço para uma visão positiva sobre a atuação do Ibama. “Até hoje, n&oa
cute;s carregamos esse passivo. Só conseguimos começar a revertê-lo a partir de 2002”, explica Daniel Rios, analista ambiental do Ibama e ex-chefe do PNJ. Essa é também a visão dos moradores. “Antes, falava em Ibama, a gente corria pro mato. Agora, melhorou”, confirma Evilásio Gonçalves, presidente da comunidade de Terra Nova, no rio Unini.

Populações tradicionais

Nas longas viagens de barco – única forma de se deslocar na região – pelo PNJ, é preciso estar atento para perceber, em meio à floresta, os telhados de sapé das moradias. São os únicos elementos que denunciam a presença humana no parque.

Gilberto Rodrigues, 49 anos, mora próximo à comunidade do Patauá, no rio Jaú. Sua trajetória se confunde com a da maioria das famílias que vivem no PNJ. Nascido em Envira, no Acre, veio para o Amazonas acompanhando o padrasto, “soldado da borracha”. Até chegar ao Jaú, “cortou seringa” nas várzeas de vários rios da região. “O patrão da borracha não queria saber se o soldado tinha filhos que precisavam estudar. Queria era produção”, relembra. Assim, Gilberto tornou-se um desses “soldados” que trocaram as escolas pelo látex.

Com o colapso da borracha, seu exército de trabalhadores acabou se fixando e optando por outras formas de sustento. Assim, além da alternativa do extrativismo, a lavoura de mandioca se consolidou como a principal atividade econômica dos moradores do PNJ.

Com 79 anos, Erasmo Leocádio de Souza, nascido em Tefé (AM), chegou à região em 1957. Orgulhoso, exibe a carteira de trabalho assinada, raridade naquelas terras. Trocou a cidade pelo rio Jaú, onde dedicou-se exclusivamente à mandioca e à educação de seus filhos. Em 3 meses, chegava a gastar duas latas de querosene com o lampião, que usava para dar suas aulas improvisadas na própria casa. “Para quem tem família, melhor é a roça”, afirma seu Erasmo.

Entretanto, com a criação do PNJ, o comércio dessa produção ficou muito difícil para os moradores. Antes, o abastecimento era feito por “regatões”, barcos que trafegavam pelos rios carregados de mantimentos para vender aos ribeirinhos. Além disso, essas embarcações transportavam a produção de farinha para comercializar na cidade. “Agora, não tem para quem vender”, reclama Evilásio Gonçalves. Isso porque, com o parque, foram proibidos os “regatões”. Atualmente, para escoar as sacas, os moradores dependem de barco próprio, as “rabetas”, o que implica um gasto significativo com combustível e viagens que chegam a levar dias.

Dessa maneira, a lavoura dos moradores ficou destinada basicamente à subsistência, complementada com a caça e a pesca. A única produção destinada exclusivamente à venda é o extrativismo e o artesanato. “Tenho que andar até 2h30 para encontrar o cipó (principal produto dessas atividades)”, diz Gilberto.

Assim, a geração de renda dentro do parque é muito restrita. Para completar os rendimentos, Antenor Anicácio, morador da comunidade de Seringalzinho, no rio Jaú, chegou a trabalhar como “mateiro”, abrindo trilhas para pesquisadores e turistas que passavam pela comunidade. No entanto, foi proibido pelo Ibama de continuar com a atividade, pois ela geraria impacto ambiental. “Agora, com o cipó e a roça, ganho R$ 100 por mês”. Antenor é casado e tem 6 filhos. Devido a sua situação, pensa em abandonar o parque. “Na cidade, tem muita marginalização. No interior, é mais fácil. Mas, se continuar assim, vou sair no fim do ano”, desabafa.

 Filhos de Antenor, na comunidade de Seringalzinho. Futuro das crianças do Jaú é incerto

Sem alternativas, esse é o sentimento que se abate sobre as populações das 9 comunidades do rio Unini – Aracu, Vista Alegre, Floresta, Manapana, Tapiira, Democracia, Frausino, Terra Nova e Lago das Pedras – e das 4 do rio Jaú – Tambor, Lázaro, Patauá e Seringalzinho. À vontade de sair, mistura-se a incerteza quanto à vida fora dali. “A gente nasceu e se criou no rio. Fica difícil sair assim. Não tenho saber pra viver em outro canto”, afirma Evilásio.

Discussão ambiental

“Só preservam o jacaré, a onça, mas se esquecem que existem o homem, a mulher e a criança, que também podem ser preservados”. Sebastião Ferreira de Almeida era professor no tempo em que morava no Jaú. Atualmente morando em Novo Airão, está desempregado há dois anos.

A revolta de Sebastião poderia facilmente ser estendida contra toda a política oficial de preservação ambiental praticada no Brasil, norteada pelo Snuc (Sistema Nacional de Unidades de Conservação), aprovado em 2000, após oito anos de tramitação no Congresso. Da lei, constam os objetivos das UCs, os órgãos responsáveis pela defesa do meio-ambiente e as regras para a gestão das diferentes áreas de relevância ambiental. O PNJ, como todos os parques nacionais, enquadra-se entre as chamadas unidades de proteção integral, que possuem o maior número de restrições. Nelas, deve ocorrer a “manutenção dos ecossistemas livres de alterações causadas por interferência humana, admitido apenas o uso indireto dos seus atributos naturais”, segundo o texto da lei. “Oficialmente, as populações têm que ser retiradas”, atesta Daniel Rios.

Por uso indireto, entende-se “aquele que não envolve consumo, coleta, dano ou destruição dos recursos naturais”. Portanto, segundo a legislação, a simples subsistência das populações que ainda hoje estão presentes no Jaú seria proibida, o que, pela falta de recursos humanos e financeiros do Ibama, é impossível.

“Esse raciocínio reflete um paradigma vigente até a década de 70, em que imperava o preservacionismo”, aponta Antônio Carlos Diegues, antropólogo e diretor científico do Nupaub (Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas em Áreas Úmidas Brasileiras). No prefácio do livro Etnoconservação: novos rumos para a preservação da natureza nos trópicos, coletânea de textos de diversos autores do mundo sobre o tema, Diegues estabelece uma distinção conceitual entre duas correntes do pensamento ambiental: o preservacionismo e a ecologia social.

Nesse âmbito, a primeira corrente defenderia a separação radical entre homem e natureza, considerando a interferência antrópica de forma sempre negativa.

Em contraposição, “no Brasil, um novo movime
nto começa com os seringueiros, como Chico Mendes”, identifica Diegues. Essa maneira de conceber a proteção do meio-ambiente pode ser chamada de ecologia social. Entre seus partidários, estão o Conselho Nacional dos Seringueiros, o Movimento dos Atingidos por Barragens, o Movimento dos Pescadores Artesanais e os grupos indígenas organizados. “Para essas entidades, de conotação social e ambientalista, há necessidade de se repensar a função dos parques nacionais, incluindo os interesses e modos de vida de seus moradores tradicionais”, conclui Diegues, em seu texto.

Entre os principais argumentos da ecologia social, estaria a noção de que há “áreas de alta biodiversidade decorrente do conhecimento e do manejo tradicional realizado pelas populações (…) indígenas e não-indígenas”.

É justamente essa compreensão que, em sua simplicidade, os moradores do Jaú expressam. “Nós que preservamos, perdemos o direito”, diz o professor Sebastião.

Manejo participativo

 Rosimar, filha de Evilásio Gonçalves: lazer na floresta pode ser substituído pela realidade estéril das cidades

Em 1998, após cinco anos de elaboração, foi publicado o Plano de Manejo do PNJ, uma parceria do Ibama com a Fundação Vitória Amazônica (FVA). O documento estabelece as regras específicas para gestão dos recursos do parque, bem como serve de inventário de toda a biodiversidade da UC.

Para Marcos Pinheiro, coordenador de políticas públicas da FVA, “só serão bem sucedidas as UCs que atuarem com ONGs (Organizações Não-Governamentais) parceiras e de forma participativa”, declara. Dessa maneira, a entidade tem procurado envolver a comunidade na discussão do futuro do parque. “Temos que promover o salto emancipatório dessas populações. Se eles tiverem que sair [do PNJ] um dia, sairão cidadãos, que sabem brigar pelo coletivo”.

Para Pinheiro, a maior conquista da FVA na busca pela autonomia dos povos do Jaú foi a participação na constituição da Amoru (Associação de Moradores do Rio Unini), em 2001. “Hoje, a associação nos defende”, comemora Nice Santos, professora do ensino fundamental na comunidade de Terra Nova, no rio Unini.

A partir da criação da Amoru foi possível viabilizar umas das maiores reivindicações entre os moradores do rio: a regularização da pesca. Com acompanhamento do Ibama e da FVA, a associação firmou um acordo com as colônias de pescadores da região e com as empresas de turismo. Segundo a resolução, foi realizada a divisão do rio Unini em três segmentos, um destinado à pesca comercial, outro à esportiva e um trecho restrito ao uso dos moradores das comunidades.

Além do zoneamento, foi limitada a atuação dos “geleiros”, grandes embarcações pesqueiras. “Antes entravam uns 40 barcos por ano. Com o acordo de pesca, só será permitida a entrada de 12 barcos por temporada, apenas entre os meses de agosto a dezembro”, informa a professora Nice.

Existe também a proposta de que os “geleiros” adotem obrigatoriamente parte da mão-de-obra entre os habitantes das comunidades, de forma a garantir, ao menos durante um período do ano, oportunidades de geração de renda.

A contribuição do Ibama no acordo seria a instalação de um novo posto de fiscalização até dezembro desse ano, no rio Unini. “Queremos fazer valer o acordo de pesca”, garante Marcelo Bresolin.

Apesar de significar um avanço na constituição da cidadania no PNJ, a criação da Amoru evidenciou um abismo social entre as comunidades do Jaú, onde não existe nenhuma forma de integração comunitária, e do Unini – rios que concentram a quase totalidade da população residente na UC.

Em parte, o próprio desenho do parque explica esse distanciamento. O limite norte do PNJ localiza-se no leito do Unini, criando uma área dentro do próprio rio – sua margem esquerda – livre das restrições do parque. Portanto, por mais que a maior parte das comunidades do Unini esteja situada em sua margem direita, a caça, a pesca e o extrativismo são mais fáceis aos moradores desse rio, já que o Jaú encontra-se inteiramente dentro dos limites da UC, ficando sujeito a suas restrições.

Isso se confirma quando se observa os dados referentes à dinâmica populacional na área, compilados pela FVA no livro “Janelas para a biodiversidade no PNJ”, extenso levantamento de toda a riqueza biológica e humana do parque, publicado em 2004. Entre 1992, a população residente na UC era de 979 pessoas, reduzindo-se para 920 em 2001. Entretanto, se observada a contribuição de cada um dos rios nessas estatísticas, percebe-se que a ocupação do Jaú caiu 33%, de 377 para 251 ribeirinhos. A diminuição no total de habitantes do PNJ só não foi maior porque no rio Unini foi registrado aumento de 11%.

 Proibido de ser guia turístico, Antenor Anicácio é mais um dos que planejam deixar o parque

Para a FVA, esses dados revelam que “o aumento do número de moradores do rio Jaú que saíram do parque (…) está provavelmente relacionado a um crescente número de pessoas que não suportaram o contínuo isolamento provocado pelas políticas relativas ao uso dos recursos naturais impostas pelo Ibama”.

Outra razão para a diferença no desenvolvimento das duas localidades pode estar na presença institucional. A maior parte do Unini faz parte do município de Barcelos, onde, segundo Marcos Pinheiro, “a prefeitura acreditou nas idéias da FVA”. Assim, ambos desenvolveram parcerias. Na construção de escolas, por exemplo, o governo municipal cede a estrutura, enquanto a instituição capacita os professores e desenvolve o material didático. Por estarem localizadas em área de proteção integral e mais sujeitas à fiscalização do Ibama, as comunidades do rio Jaú não recebem o mesmo atendimento. “Por mais que eu ache um absurdo, não dá para autorizar uma escola dentro do parque, pois isso dá recursos para que as pessoas se mantenham morando no PNJ”, declara Daniel Rios.

Jurídico – batalha e soluções

As mais de duas décadas de espera por um encaminhamento quanto à situação fundiária do PNJ foram tempo suficiente para que cinco antigo
s moradores do parque tenham falecido sem presenciar uma resolução definitiva.

Segundo o Snuc, devem ser garantidos “às populações tradicionais cuja subsistência dependa da utilização de recursos naturais existentes no interior das unidades de conservação meios de subsistência alternativos ou a justa indenização pelos recursos perdidos”.

Dessa maneira, a resolução para o problema dos ribeirinhos esbarra na compensação financeira pelas terras que serão desapropriadas. E esse processo pode se arrastar indefinidamente. “Nem a situação fundiária do primeiro parque nacional do Brasil, o de Itatiaia, criado em 1937, está regularizada”, explica Daniel Rios.

Na realidade, em 1989, quando o Ibama tornou-se responsável pela gestão do parque, foram oferecidas indenizações aos moradores, que as recusaram por considerarem o valor muito baixo. Desde então, o processo não evoluiu. Entretanto, as restrições de uso dos recursos do parque permaneceram, criando uma situação insustentável já que os ribeirinhos não têm acesso a alternativas sustentáveis de geração de renda.

 Evilásio Gonçalves, que chegou a perguntar ao Ibama se estava atrapalhando o parque

Nesse período, em razão da falta de meios de subsistência, muitas famílias abandonaram o PNJ. Foi o caso de Ivanilda Gonçalves, que, em 1995, abandonou a comunidade em que vivia no rio Jaú e se mudou para Novo Airão. Atualmente, ela faz parte da Comissão de Ex-Moradores do PNJ, cuja intenção é criar uma representação das famílias que saíram da UC. Hoje, o grupo conta com sete representantes.

Em 2002, Aldenor Barbosa, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Novo Airão, foi procurado pela comissão para utilizar sua experiência de sindicalista a favor da causa dos moradores. Antecipando-se ao Ibama, Aldenor e os ex-moradores, auxiliados por pesquisadores de São Paulo, inventariaram o valor de parte dos lotes ocupados do PNJ. Para a elaboração da lista, foi utilizado o conceito de posse agroextrativista. Segundo essa modalidade de cálculo, o valor final da terra incorpora não só as benfeitorias construídas, mas também os recursos naturais disponíveis, como pomares, árvores que possuam alguma forma de riqueza extrativista e lavouras. Com isso, alguns terrenos ultrapassaram os R$ 30 mil, o que está completamente acima das indenizações que se costuma pagar nesses casos. “Nós não estamos negociando um produto. Mas queremos ouvir uma contra-proposta do Ibama”, desafia Aldenor.

Sobre as possíveis cifras das indenizações, Boris Alexandre César, coordenador geral de Regularização Fundiária do Ibama, responde: “Os valores de terra ou de benfeitorias só são determinados no instante final da regularização fundiária, com base em ampla pesquisa de mercado. Quaisquer estimativas anteriores geraria falsas expectativas ou poderiam ser tendenciosas”.

Cansados de esperar por uma ação concreta do órgão federal, os ex-moradores acionaram o Ministério Público Federal. Com isso, no início de 2004, a instituição ajuizou uma Ação Civil Pública (ACP) contra o Ibama e a União.

Segundo a procuradora Izabella Brant, entre as propostas da ACP estão a indenização, levando em conta a posse agroextrativista, ou o reassentamento dos moradores para áreas que mantenham as mesmas características naturais do PNJ. “Outra medida prevista na ACP é a formação de um grupo de trabalho que identifique as famílias que merecem a indenização”, afirma ela. Isso porque há casos de moradores do parque que chegaram ao PNJ após sua criação, e, portanto, não poderiam ser compensados financeiramente.

Quanto ao reassentamento, a reivindicação da comissão, segundo Barbosa, é de que as famílias “fiquem no campo para não perder a cultura”. Para isso, está sendo estudada a criação de uma Reserva Extrativista (Resex), UC que permite o uso sustentável dos recursos naturais e manutenção das populações tradicionais no local. A Resex seria estabelecida na margem esquerda do rio Unini. Para Boris César, “a criação de uma reserva extrativista poderá levar a resolução de parte do problema fundiário”.

Segundo ele, enquanto não for possível dar um encaminhamento final a essa questão, a legislação permite a “a elaboração de Termos de Compromisso para a permanência da população por tempo determinado”.

Exilados ambientais

Ainda que todas as iniciativas de resolução da questão da presença de moradores no PNJ sejam louváveis – e que a legislação esteja abrindo espaço para a negociação -, nem indenizações, nem reassentamento são capazes de preencher todos os anseios da população. Isso porque, associados à terra, estão todos os valores e costumes que povoam a cultura desses povos.

Enquanto não ocorre a realocação das famílias, Novo Airão, uma cidade ilhada pela preservação ambiental, continua recebendo ex-moradores do parque. Além do PNJ, o município é vizinho das Áreas de Proteção Ambiental das margens esquerda e direita do Rio Negro, da Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Amaná, do Parque Estadual do Rio Negro e da Estação Ecológica de Anavilhanas, maior arquipélago fluvial do mundo. Com isso, 85% de sua área está comprometida com UCs.

O problema é que essa cidade tornou-se um verdadeiro abrigo de exilados ambientais, destino de 90,4% dos que abandonam o rio Jaú. Pelas restrições a que o município está sujeito por estar localizado no entorno de UCs, seu desenvolvimento econômico e alternativas de geração de renda e emprego são muito limitados.

Gilberto Rodrigues: "Aqui nós nem história tem"

Assim, os emigrantes do PNJ deparam-se com uma realidade urbana muito pior do que a do PNJ. “Na cidade, a menina moça engravida e o homem começa a beber”, constata Ivanilda Gonçalves.

Mãe de 10 filhos, para ela, a falta de ocupação não é o principal problema. “No interior a gente tem costumes. Na cidade, a gente perde tudo”. Ivanilda fala das parteiras e das plantas medicinais abundantes no rio Jaú.

Mas o que os morador
es e ex-moradores do PNJ não dizem é que, mais do que a cultura, eles perdem direitos. O principal deles, a noção do valor de seus próprios conhecimentos na preservação do meio ambiente. A ponto de se esquecerem da importância da narrativa de suas próprias vidas. “A gente aqui não tem história. Falta desenvolver mais o conhecimento, pra ter história”, afirma Gilberto Rodrigues, com um sorriso incerto no rosto.

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