As primeiras pulsações de sua veia artística vieram à tona quando ele ainda era bem jovem e fazia as vezes de humorista e palhaço de circo, em Santos, onde nasceu em 1935. Também teve de se virar como estivador no porto de sua cidade e, quando veio tentar a vida na capital paulista, precisou trabalhar até como camelô. Seu sonho era seguir carreira no futebol. Chegou a jogar em times importantes, como a Portuguesa Santista, até que uma complicação no joelho abortou suas esperanças de profissionalização.
Apesar de todas essas ocupações, Plínio Marcos imortalizou-se na história como um dos maiores autores de teatro do Brasil. Peças como Dois perdidos numa noite suja e Navalha na Carne são leitura obrigatória para quem deseja conhecer a história da dramaturgia nacional. Falecido há exatos cinco anos – mais precisamente no dia 19 de novembro de 1999 – ele se encontrava com a saúde bastante debilitada, conseqüência do diabetes e dos problemas de coração que há algum tempo o atormentavam.
Como define sua ex-esposa, a atriz Walderez de Barros, “a palavra gênio pode ser aplicada ao Plínio porque ele conseguiu provocar uma ruptura no pensamento de sua época e apontar outro caminho”. Contudo, poucos escritores foram tão impedidos de encenar suas peças como ele, perseguido sistematicamente nos anos de chumbo da ditadura militar. Seu grande legado consiste em focar os holofotes dos palcos nos párias da sociedade brasileira, como prostitutas, cafetões e presidiários. Ao menos nos seus textos, tornou protagonistas “aqueles que gritam na geral sem nunca influenciar no resultado final do jogo”, como ele mesmo costumava dizer. Por essas razões, não foi à toa que ganhou o apelido de “maldito”.
“Mas sua genialidade era também como homem, pela sua postura de luta contra as injustiças. Foi uma pessoa que jamais se corrompeu”, completa Walderez. Realmente, o posicionamento político de Plínio Marcos sempre era muito autêntico. E, principalmente durante o governo militar, não foram raras as vezes em que acabou preso por se queixar publicamente do controle imposto pela ditadura ou desacatar algum agente da censura. “Ele nunca foi comunista. Mas era um sujeito de visão socialista e a favor da liberdade”, lembra o advogado Iberê Bandeira de Mello, amigo de Plínio Marcos desde que os dois, nas brincadeiras de infância, disputavam jambolão – uma fruta típica do litoral paulista – a tapa com macacos, no alto das árvores da baixada santista.
“O Plínio era radicalmente contra qualquer forma de opressão. Por isso, o período da censura foi tão cruel para ele”, analisa Walderez. Apesar de sua obra representar uma constante denúncia da violência social em nosso país, o dramaturgo nunca se vinculou a qualquer instituição política. “O Plínio andava na contra-mão. Ele não perdeu sua individualidade e se manteve íntegro até o final da vida para poder criticar e falar o que pensava, sem se preocupar se interessava a qualquer partido”, afirma o amigo, ator e jornalista Oswaldo Mendes.
Poucos anos mais novo que o autor santista, Mendes conviveu com ele não só no meio teatral, mas também na redação de A Última Hora, no começo da década de 70. Esta foi outra atividade a que Plínio dedicou boa parte de sua vida: a de cronista. Não só profissionalmente, já que assinou colunas em importantes revistas e jornais brasileiros, como Veja, Folha de S. Paulo e até na extinta Realidade, mas principalmente pelo teor de suas peças teatrais. Como ele próprio falava, a matéria-prima de sua obra não era a ficção, e sim a triste realidade das histórias que ouvia e presenciava no seu dia-a-dia. Por essa razão, era ele mesmo quem gostava de se intitular o “repórter de um tempo mau”.
Filho de um bancário e de uma dona de casa, Plínio Marcos morou quando criança numa vila construída para os colegas de profissão de seu pai, em Santos. Como qualquer menino de classe média, suas atividades preferidas eram nadar, jogar futebol, correr atrás de balão e – por incrível que pareça – caçar preá para comer assado. “Tivemos uma infância bem proletária”, relembra Mello.
Mesmo garoto, o gênio forte de Plínio, que o acompanharia por toda vida, já dava o ar de sua graça. “Ele nunca se enquadrou em nenhuma instituição, não gostava de estudar”, comenta o velho amigo. De fato, os tempos de colégio foram bastante traumáticos para o futuro dramaturgo. Apesar de canhoto, aprendeu na marra a escrever com a mão direita – conseqüência dos severos métodos educacionais da época. O próprio Plínio chegou a declarar que, durante esse período, foi tido como “débil mental”. Tanto é que demorou quase dez anos para concluir o primário. “Na verdade, ele não conseguia se interessar pelas bobagens que ensinavam na escola. O fato é que a família dele não tinha a formação necessária para perceber que estava lidando com um superdotado. E acabaram imaginando que o Plínio fosse um deficiente, uma confusão muito comum, aliás”, afirma o amigo e jornalista Quartim de Moraes.
Ainda em Santos, outra grande paixão foi despertada em Plínio Marcos: o samba. Por influência do pai, que desfilava em diversos blocos carnavalescos, também tomou gosto por festas populares. “Mas ele não tinha pedigree de compositor. Na verdade, era um folião, assim como eu”, conta Carlão da Vila, que hoje trabalha na organização dos desfiles das escolas de samba de São Paulo. Parceiros inseparáveis, os dois têm certamente um lugar marcado na história da cidade. “Quando Plínio foi trabalhar em uma novela da Globo, no Rio de Janeiro, seus amigos ficavam brincando com ele. Diziam que os paulistas não sabiam fazer samba, que bloco de paulista era bloco de concreto”, brinca Carlão.
Desafiados pelas provocações, em 1972 eles colocaram na rua a primeira banda carnavalesca do município, batizada de Bandalha, como rezam todas as tradições. No primeiro desfile, contaram com personalidades como Tony Ramos e Eva Vilma. O ponto de partida era o famoso Bar Redondo, reduto da intelectualidade na capital, em frente ao Teatro de Arena, na área central. O batuque percorria diversas ruas e avenidas da região até retornar ao local de início. A Bandalha acabou desfeita dois anos depois, devido a uma briga de Plínio Marcos com o secretário de cu
ltura da cidade. Entretanto, Carlão da Vila mobilizou outros colegas e continua até hoje levando o ritmo pelas vias do entorno do Arena, só que agora com o nome de Banda Redonda – homenagem ao bar que tanto freqüentaram. “O Plínio respeitava muito a cultura popular. E era amigo íntimo de importantes figuras do samba paulistano, como Geraldo Filme e Jangada. Com eles ou com o presidente da república, o tratamento era o mesmo”, declara Mello.
O envolvimento de Plínio Marcos com os palcos se estreitou a partir de 1959, quando fez uma ponta em Pluft, o Fantasminha, num festival de teatro amador realizado em Santos. Em novembro do mesmo ano, incentivado pelos organizadores do evento, ele encenou com um grupo de estudantes da cidade a sua primeira peça: Barrela. O texto narra a história de um detento estuprado por seus colegas de cela, por meio de violentos e ágeis diálogos – retrato fiel da pesada atmosfera de uma prisão. Logo de cara, o autor também conheceu a censura, já que a montagem da peça acabou proibida pela governo do então presidente Juscelino Kubitschek e só foi liberada 21 anos mais tarde.
Uma das principais influências de Plínio Marcos no início de sua carreira foi Patrícia Galvão, a Pagu, importante escritora e ativista política da época, casada anos antes com o poeta modernista Oswald de Andrade. Curiosamente, a mesma Pagu publicou meses depois da estréia de Barrela o artigo “Este analfabeto esperava outro milagre de circo” no jornal A Tribuna, de Santos, criticando a segunda peça de Plínio: Os Fantoches. Na verdade, ele próprio admitia que só a havia escrito por pura pressão de seus súbitos admiradores. “Aí ele foi do céu ao inferno. Depois de Barrela, era convidado para festas e quem o via na rua o chamava de gênio. Com o artigo da Pagu, não era lembrado nem para enterro”, brinca Kiko Barros, segundo filho do autor com Walderez de Barros.
Plínio então desembarcou na capital paulista no início dos anos 60 e começou ganhando a vida com a venda de artigos contrabandeados que trazia de Santos. Alugava quartos em pensões baratas e chegou a passar algumas noites na antiga rodoviária da capital, próxima da atual Estação da Luz. “Nessa época, o teatro aqui em São Paulo, principalmente com o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), era muito elitizado. E o Plínio veio com toda virulência do submundo e isso abalou as raízes tradicionais da dramaturgia bem feita por aqui”, explica o professor e crítico Sábato Magaldi.
De fato, o começo para ele não foi nada fácil. Tanto que a estréia, em 1966, de Dois perdidos numa noite suja – em que Plínio também atuou, representando a conturbada relação de dois companheiros de quarto, em uma pensão de quinta categoria, que decidem cometer um assalto para mudar de vida – aconteceu na Galeria Metrópole, no centro da cidade, e teve apenas cinco espectadores. “Eu estava na barriga da minha mãe e, além dela, compareceram dois amigos, a esposa do outro ator e um bêbado que não podia ser chutado para fora porque o lugar também era um boteco”, conta Kiko.
Mas o sucesso de Plínio Marcos não tardou a explodir e logo depois sua peça já estava em cartaz no Teatro de Arena, outra importante referência das artes cênicas em São Paulo. A consagração definitiva veio com Navalha na Carne que, apesar de censurada pela ditadura ainda nos ensaios, contou com uma ampla mobilização da classe teatral até ser liberada definitivamente pela intervenção da atriz Tônia Carrero, que tinha parentes ligados à cúpula do governo militar. “O teatro exercia um pioneirismo, tinha uma liderança verdadeira nesse protesto contra a ditadura”, relembra Magaldi.
Os textos produzidos por Plínio Marcos no período de maior truculência das décadas de 60 e 70 são considerados pela crítica especializada como o melhor momento do autor. Além de Dois perdidos numa noite suja e Navalha na Carne, também se destacam O Abajur Lilás, Quando as máquinas param e Homens de Papel. Plínio enfrentava com unhas e dentes o governo militar, mas a justificativa para a proibição de suas peças era sempre a mesma: ele escrevia muitos palavrões e sabia que isso não era permitido. Logo, tratava-se de um subversivo. Mesmo refém dessa lógica no mínimo superficial, “ele nunca se fez de vítima. Não transferia a responsabilidade dos seus atos para outras pessoas ou instituições. Quando lhe perguntavam sobre a censura e as prisões, ele respondia ‘eu fiz por merecer’, porque também não dava sossego à ditadura”, afirma Oswaldo Mendes.
A dramaturgia do autor santista pegou carona na revolução que Nélson Rodrigues havia feito no teatro anos antes, com a introdução de diálogos dinâmicos e naturais no palco. Entretanto, a principal inovação de Plínio Marcos, sem dúvida, foi a escolha de personagens tidas como marginais para os papéis protagonistas. “Em muitas peças, elas têm um parentesco entre si. Mas o elemento ficcional dele era muito rico e cada uma das obras tem o seu valor individualmente. Sempre seguindo uma linha, o que é bom, porque marca uma personalidade e define um estilo”, elogia Magaldi. “Há também outros autores muito violentos. Porém, pela liberdade de vocabulário – o que dá autenticidade à sua obra – Plínio Marcos é um caso isolado em todo o mundo”, conclui.
Em meados dos anos 80, era comum ver Plínio Marcos – vestindo um macacão surrado e calçando um par de chinelas – com uma sacola repleta dos seus preciosos “livrinhos” abordando, nas filas dos teatros ou nas mesas dos principais restaurantes paulistanos, qualquer um que acenasse com a possibilidade de comprar um exemplar. “Ele começou a editar e vender os próprios livros para se defender, já que suas peças eram sempre censuradas”, explica seu filho Kiko. Quando perguntado se essa espécie de camelô cultural rendia algum dinheiro ao pai, responde categoricamente: “ele pagou a minha faculdade dessa forma”.
Quartim de Moraes conta que, apesar de conseguir bons frutos com essa atividade, Plínio não era o que se poderia considerar um exímio vendedor. “Com aquele jeitão dele, já chegava metendo bronca: ‘Vai levar ou n&a
tilde;o?’ Não tentava convencer ou agradar quem não quisesse. Esse tipo de concessão ele não fazia de jeito nenhum”, relembra, entre risos.
O gênio explosivo e as atitudes intempestivas são uma de suas características mais marcantes. “Ele mesmo sabia que o seu demônio era o temperamento. O Plínio não levava desaforo para casa, mas também não ficava magoado com alguma coisa ruim que lhe faziam”, comenta Walderez. “Ele era capaz de bater boca por qualquer bobagem. Contudo, a solidariedade dele também se manifestava às vezes pela necessidade mínima de quem estivesse ao seu lado”, completa Oswaldo.
E uma prova dessa generosidade aflorou em plena ascensão de Navalha na Carne. Depois que a atriz Tônia Carrero conseguiu a liberação da peça, através de seus contatos com o alto escalão da ditadura, o espetáculo tornou-se uma febre do teatro brasileiro, com encenações simultâneas em São Paulo e no Rio de Janeiro. Na capital carioca, só a presença de Tônia no papel principal – o da prostituta Neusa Sueli – era garantia de sucesso. Plínio tinha nos direitos autorais do texto uma boa fonte de renda.
Mas Kiko se lembra dos mínimos detalhes quando seu pai reuniu a família na sala da casa para comunicar que estava abrindo mão do dinheiro que recebia pela peça. “Ele nos juntou para dizer que doaria os recursos a um ator que tinha um problema de saúde e que precisava viajar para fazer um tratamento”, conta. Com a proibição de Navalha na Carne, boa parte da classe teatral se mobilizou em torno da liberação do texto, “e o Plínio entendeu que esse gesto era o mínimo que poderia fazer para retribuir a alguém que tinha ajudado naquela luta. Por mais que nem o conhecesse direito, era uma pessoa que estava precisando mais do que a gente naquele momento”, acrescenta. Quem conheceu a fundo o dramaturgo faz questão de ressaltar que a obsessão pelo dinheiro, definitivamente, não fazia parte de sua personalidade. “Acho que o Plínio foi uma das pessoas mais libertas que conheci, não estava preso a nenhum tipo de padrão”, afirma Oswaldo Mendes.
Quartim de Moraes também participou de uma história exemplar que reflete esse desapego material. “Foi de um dos seus ‘livrinhos’ que eu tirei aquele texto fantástico chamado O Ator (ver box), que transformei em pôster e que fez um grande sucesso no final dos anos 80”, narra. A impressão foi bancada pela Nossa Caixa – Nosso Banco, onde Moraes coordenava os projetos culturais da instituição. Ele conta que Plínio usou como referência, para calcular o dinheiro que cobraria pelos direitos autorais, o equivalente ao preço de um clarinete novo para seu filho Kiko, que estava começando a estudar música. “Os seus textos valiam o que ele precisava no momento”, explica Oswaldo Mendes.
O temperamento impulsivo também proporcionava histórias engraçadas. O dramaturgo jantava todas as noites, religiosamente, em um dos restaurantes mais tradicionais de São Paulo, o Gigetto. Ele possuía uma mesa cativa na casa, em frente ao caixa, cortesia dos proprietários. O maître Mariano José dos Santos, que durante anos atendeu o autor santista, conta que Plínio Marcos chegou a enxotar um de seus clientes: o juiz de futebol argentino Javier Castrilli. Em 1998, o árbitro se notabilizou por uma atuação duvidosa em um jogo que garantiu a passagem do Corinthians para a final do Campeonato Paulista daquele ano. Horas depois da partida, cometeu a imprudência de escolher o Gigetto para comer. Torcedor do Jabaqüara e do Santos, Plínio liderou outros freqüentadores do restaurante que, de tanto xingarem o juiz, acabaram expulsando-o do local. “O Plínio adorava futebol, mas odiava o Corinthians”, diz Santos.
O episódio com o juiz argentino ocorreu um ano antes do falecimento do autor. Sua morte tirou uma pedra do sapato dos “cidadãos contribuintes”, que ele fazia questão de incomodar com sua obra e com suas atitudes. Porém, também significou um doloroso golpe na história do teatro brasileiro. “Eu gostaria que as peças do Plínio fossem mais encenadas, representadas por grandes nomes da nossa dramaturgia. Infelizmente, elas são sempre atuais, como ele mesmo dizia”, reflete Magaldi.
Sertão potiguar, março de 2003