Artigo – Impunidade dificulta combate à prática

Brasil tem desenvolvido novos mecanismos de punição aos escravagistas modernos, mas número de condenações pelo crime ainda é ínfimo. Estudo divulgado no FSM comprova relação entre a prática do trabalho escravo e o desmatamento na Amazônia
Por Fernanda Sucupira
 29/01/2005

Quatro dias antes do início do Fórum Social Mundial, 61 trabalhadores escravos foram libertados no Pará numa operação de um grupo móvel do Ministério do Trabalho e Emprego. Nesta sexta-feira (28), um grande seminário dentro dos debates de direitos humanos do FSM analisou como esta prática exploratória se confunde com a própria história do trabalho no Brasil e como se insere no sistema de produção capitalista atual. Em números absolutos, nunca houve tantos escravos no mundo como agora. Em território nacional, Tocantins, Piauí e Maranhão são os maiores provedores desta mão-de-obra, que serve principalmente à pecuária e ao agronegócio da cana, da soja e do café. Já o Pará é o campeão em libertações. É para lá que seguem diariamente centenas de trabalhadores em busca de um salário que acabam se tornando vítimas da escravidão por dívida. A fiscalização do MTE aumentou consideravelmente nos últimos dois anos e flagrou centenas de fazendeiros explorando outros seres humanos. Todos foram obrigados a quitar os pagamentos atrasados e a regularizar a situação de seus “funcionários”. Poucos, no entanto, chegaram a ser processados por este crime. Condenados, menos ainda. Nos últimos dez anos, houve somente duas sentenças definitivas.

Enfrentar a impunidade de que se beneficiam os escravagistas modernos é fundamental no combate à prática. O Brasil, neste sentido, tem desenvolvido mecanismos legais e políticos que podem interferir neste processo. Um deles, cuja aprovação é clamada com urgência por quem atua na erradicação do trabalho escravo, é a proposta de emenda constitucional (PEC) 438, de 2001, que prevê o confisco de terras onde for constatada a exploração de trabalho escravo e a reversão delas em assentamentos do programa federal de reforma agrária. A emenda já foi aprovada pelo Senado e no primeiro turno da Câmara dos Deputados, em agosto do ano passado. Desde então, aguarda a votação em segundo turno, mas enfrenta a resistência da bancada ruralista. “O governo federal não está empregando todo o esforço necessário para aprovar a PEC”, acusa Grijalbo Fernandes Coutinho, presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra).

A indefinição sobre de quem é a competência – da Justiça Estadual ou da Justiça Federal – para julgar o crime de redução de trabalhadores à condição análoga à escravidão também contribui para deixar os criminosos impunes. Ela é usada como artifício para ganhar tempo no judiciário e escapar das sanções. A questão ainda é agravada pela reivindicação da Justiça do Trabalho de que esses crimes sejam de sua competência. Muitos defendem que a Justiça Federal fique com essa responsabilidade, para que os julgamentos sofram menos influência dos proprietários rurais e políticos locais.

Outra medida para aprimorar a punição dos escravocratas modernos é a aplicação pelos fiscais de multas muito maiores do que as atuais. “Sem multas significativas, há a possibilidade do escravocrata internalizar nos custos da produção o valor da multa”, avalia Nicolao Dino de Castro e Costa Neto, presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR). Apesar da importância das sanções na área administrativa, a punição penal também precisa ser efetiva. Atualmente, a lei determina que se ofereçam aos escravagistas penas alternativas, como a prestação de serviços à comunidade ou o pagamento de cestas básicas. “O baixo patamar das penas aplicadas esvazia o conteúdo punitivo das condenações. A pena mínima deveria ser de cinco anos”, acredita Costa Neto.

Há ainda a defesa de que a prática do trabalho escravo seja enquadrada no rol dos crimes hediondos, para que os escravagistas modernos não tenham suas penas reduzidas nem possam responder o processo em liberdade, entre outras coisas. “Diante do crime mais hediondo praticado recentemente, o dos fiscais de Unaí, o principal suspeito de ser o mandante do crime foi eleito prefeito da cidade. Ainda que não haja culpa definitiva, ele não deveria poder assumir nenhum cargo público”, diz Jorge Maurique, presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe). Para Maurique, é necessário tornar esse crime imprescritível. Ele é firme ao sugerir que a União seqüestre os bens dos escravagistas para indenizar as vítimas e processe-os para cobrar os custos do combate a esse crime.

Além da intensificação do trabalho dos grupos móveis e da elaboração da “lista suja” do trabalho escravo, que torna público o nome dos empregadores e empresas já condenados por utilizar mão-de-obra escrava em suas produções, os órgãos públicos têm buscado novos mecanismos para diminuir a impunidade reinante entre os escravagistas. O Ministério Público do Trabalho vem propondo ações civis públicas com pedidos de indenização por dano moral coletivo. “É um crime tão vergonhoso que atinge toda a sociedade”, explica a procuradora geral do trabalho, Sandra Lia Simon. Até agora foram obtidas algumas vitórias, sendo a maior delas contra a empresa Jorge Mutran Exportação e Importação Ltda., autuada mais de uma vez por trabalho escravo em sua fazenda Cabaceiras, em Marabá, sul do Pará. Em agosto do ano passado, ela foi condenada a pagar R$ 1,3 milhões ao Fundo de Amparo ao Trabalhador.

“Os valores ainda são baixíssimos. Devemos pleitear indenizações que de tão altas signifiquem a expropriação da terra”, defende Roberto de Figueiredo Caldas, presidente da subcomissão de combate ao trabalho escravo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Essa mesma fazenda foi desapropriada, em outubro, por não cumprir sua função social, ambiental e trabalhista. A decisão inédita abre um precedente e por isso é comemorada como uma conquista no sentido de começar a efetivamente punir os culpados.

No arco do desmatamento
Nesta sexta-feira, também foi divulgada no Fórum Social Mundial uma pesquisa realizada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) que revela que a área de concentração do trabalho escravo no Brasil coincide com o arco do desmatamento da Amazônia, na região da fronteira agrícola do país. A hipótese da relação já existia. Uma análise de imagens de satélite e dos números do trabalho escravo no Brasil permitiu confirmar a teoria.

Entre janeiro de 2002 e novembro do ano passado, 118 municípios tiveram libertação de trabalhadores, na linha que sai de Rondônia, passa pelo Norte do Mato Grosso e Tocantins, Sul do Pará e Oeste do Maranhão. A cidade campeã em núm
ero de casos é São Félix do Xingu, no Sudeste do Pará, com 19 ações. Ao mesmo tempo, este foi o município com o maior índice de desmatamento até 2002 – cerca de 10 mil km2. Das ações de libertação de trabalhadores escravos, 80% estão vinculadas à pecuária, setor que mais desmata as regiões da fronteira agrícola.

Da Agência Carta Maior. Colaborou Bia Barbosa. Com informações da Agência Brasil

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