Governo Lula desrespeita direito à terra

A demarcação ou regularização dos territórios de populações tradicionais, previstas na Constituição Brasileira, continuam extremamente lentas e essas questões têm sido praticamente ignoradas pelo governo Lula
Por Fernanda Sucupira
 29/01/2005

A demarcação ou regularização dos territórios de populações tradicionais, previstas na Constituição Brasileira, continuam extremamente lentas e essas questões têm sido praticamente ignoradas pelo governo Lula. Passados dois anos da atual gestão, o Brasil ainda não tem uma política étnica, o que vem decepcionando povos indígenas e comunidades remanescentes de quilombos que esperavam mudanças significativas. Até agora foram demarcadas apenas onze terras indígenas e regularizados três territórios quilombolas, números irrisórios frente à dívida histórica que o país tem com esses grupos.
A principal conseqüência da omissão do governo federal é o aumento da violência contra tais povos. De acordo com manifesto de lideranças dos povos indígenas participantes do Puxirim de Artes e Saberes Indígenas, no quinto Fórum Social Mundial, apresentado nesta sexta-feira (28), “em 2003 e 2004 aproximadamente 50 índios foram assassinados, comunidades indígenas foram queimadas por arrozeiros, mulheres e crianças indígenas ameaçadas de morte, aliados seqüestrados em Roraima, e crianças Xavantes morreram no acampamento de seu povo à beira da estrada, impedido de ocupar suas terras já demarcadas”. Desde o início do ano, mais cinco indígenas foram assassinados por madeireiros do Vale do Javari, no Amazonas. Ameaças de morte, invasões, agressões e assassinatos também fazem parte da vida de diversas comunidades quilombolas.

“Isso ocorre porque o mercado de terras está reaquecido, com os preços subindo, o que gera a expansão dos latifúndios das grandes empresas, e da monocultura, aumentando a pressão sobre as terras indígenas e quilombolas, tradicionalmente ocupadas. O estado deve ser responsável por barrar essa expansão”, defende Alfredo Wagner de Almeida, da comissão da terra da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). São cerca de 110 milhões de hectares reivindicados pelos indígenas e mais de 30 milhões exigidos pelos quilombolas, somando mais de 18% do território brasileiro. “O mercado de terras não quer que todos esses territórios sejam imobilizados pelo fator étnico”, explica. A terra é considerada um elemento fundamental para garantir a permanência da identidade desses grupos étnicos. Para a procuradora da república Débora Duprat, “isso não é indenização, nem ação afirmativa, é um direito para o exercício da identidade, e por isso precisa ser resolvido com urgência”.

No entanto, não é isso que vem acontecendo. Líderes indígenas denunciam no manifesto que há uma forte articulação política no Congresso Nacional, liderada pelo agronegócio com apoio de importantes setores governamentais, para restringir os direitos indígenas. Está tramitando no Senado, por exemplo, um projeto de lei do senador Delcídio Amaral (PT-MS), que, se aprovado, deixará ainda mais lento o processo de reconhecimento das terras, pois a demarcação dos limites territoriais terá que ser aprovada pelos senadores. O processo de demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol mostra o descaso do governo federal em relação ao direito dos povos indígenas à moradia. Ele se iniciou em 1978 e desde 1998 aguarda apenas a homologação presidencial. Em 2004, o governo sofreu fortes pressões por conta de interesses políticos e econômicos regionais e interesses militares, e mais um ano terminou sem que Raposa Serra do Sol fosse homologada.

Segundo Almeida, as políticas destinadas a quilombolas e indígenas devem ser étnicas e não sociais. O caráter assistencialista de algumas ações governamentais, como a distribuição de cestas básicas, são prejudiciais para esses grupos. “Ao serem tratados como pobres e carentes, eles não têm seus direitos reconhecidos e são destituídos de sua identidade. É preciso assegurar o território deles para que prevaleça o controle de cada grupo na definição de suas próprias necessidades”, acredita. A advogada do Centro Indígena de Roraima (CIR), Joênia Wapixama concorda que eles não são historicamente um grupo miserável. “Os indígenas não são pobres, eles foram empobrecidos”, diz.

Quilombolas
Desde que foi garantido na Constituição de 1988, o direito das comunidades remanescentes de quilombos a seus territórios vem sendo desrespeitado, também por conta de interesses econômicos e políticos ou de critérios burocráticos. Embora estejam mais concentradas em Estados como Bahia e Maranhão, há comunidades quilombolas presentes em diversos Estados brasileiros. Um levantamento preliminar do Ministério da Cultura mapeou 1.098 comunidades no país. “Historicamente a terra nos pertence e nós pertencemos a ela. Quilombola não é sem terra. Nós temos nossa terra, mas ela nos foi tomada”, afirma Gilvania Silva, quilombola de Conceição das Crioulas, em Pernambuco.

Em novembro de 2003, o governo federal publicou um decreto, que apesar de ter limitações, foi recebido com grande esperança. Ele define que a consciência da identidade quilombola é o critério fundamental para o reconhecimento de uma comunidade remanescente de quilombos, acabando com a exigência de laudos técnicos para isso, conforme determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). O decreto sofreu forte reação dos setores mais conservadores da sociedade brasileira, especialmente daqueles ligados ao latifúndio, e está sendo contestado pelo PFL perante o Supremo Tribunal Federal. A manutenção do decreto é uma das principais bandeiras da Campanha Nacional pela Regularização dos Territórios de Quilombos, inicada em março de 2004. Entre as ações da campanha, destaca-se a capacitação dos remanescentes de quilombos para que eles conheçam a legislação e assim tenham mais elementos para exigir a regularização dos territórios.

O caso de Alcântara, no Maranhão, é emblemático das violações enfrentadas pelos quilombolas. Desde a instalação do Centro de Lançamento Aeroespacial na região, em 1980, já foram deslocadas do território mais de trezentas famílias, que correspondem a cerca de vinte comunidades diferentes, e há a previsão de que mais quinhentas famílias sejam retiradas de seu local de origem. “Mais da metade do município faz parte do centro de lançamento. A vida das pessoas que saíram de suas moradias para as agrovilas é muito difícil”, afirma Dorinete Morais, quilombola de uma das comunidades que permanece em Alcântara. Ela conta que quando essas pessoas moravam na beira do mar, sustentavam-se do pescado, encontrado com fartura. Agora passam fome, não têm terra suficiente para trabalhar e convivem com a ameaça constante de serem despejadas. “Já foram mais de vinte anos de luta e ainda vivemos nessa incerteza”, lamenta. O grupo inter-ministerial criado no ano passado para discutir soluções para o caso de Alcântara deve concluir os trabalhos em junho, mas vem recebendo críticas por não contar com a participação das comunidades quilombolas.

Da Agência Carta Maior

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