Cheguei cedo ao amplo auditório da sala A601, preocupada em conseguir um bom lugar para um debate que prometia estar, não apenas lotado, mas repleto de discussões polêmicas sobre temas com bastante destaque ultimamente: software livre, copyrights e inclusão digital.
Admito que trazia comigo, já de início, certa indisposição para com o tema: jamais colocaria em xeque a importância do software livre, porém acreditava que a inclusão digital ia muito além dele e que, por sua importãncia, ela poderia, sim, ser feita através de softwares proprietários e até mesmo financiada pelas empresas desenvolvedoras desses, que por sua vez não eram assim tão vilãs quanto pregavam os defensores da tecnologia livre.
Pelos verbos no passado, vocês podem adivinhar que o que foi dito na palestra mexeu, de fato, com minhas opiniões sobre o assunto. Então deixem-me explicar o que se sucedeu.
Novos modelos
O preâmbulo da palestra foi feito por Cláudio Prado, secretário do Ministério da Cultura, que fez as vezes de mediador e logo de sáida deu o tom do que viria a seguir: “Esta mesa é formada por pessoas que acreditam na necessidade de novos modelos de gestão na era digital”. As pessoas em questão eram, nada mais nada menos, do que Manuel Castells, Gilberto Gil, Lawrence Lessig, John Perry Barlow e Christian Ahlert. E todos, realmente, tinham argumentos difíceis de refutar sobre o assunto. Mas vamos por partes.
Contradições da Era da Informação
O primeiro a falar foi Manuel Castells, autor do famoso livro “Sociedade em Rede”. Eu já ouvira falar muito sobre ele, e lera um pouco de sua obra, mas jamais havia encontrado a figura pessoalmente. E digo “figura” de forma afetuosa, pois simpatia extrema foi o complemento indiscutivel de sua palestra e que cativou o auditório enquanto ele expunha sua visão sobre a Era da Informação. Sua fala foi tão entusiasmada que nem mesmo uma infeliz disputa de som com a sala ao lado foi capaz de tirar sua energia: com paciência e bom humor, ele discorreu sobre suas idéias, e os problemas que o afligem.
Castells começou sua exposição tratando da relação entre informação e poder na Era da Informação. Explicou que estamos passando atualmente por um processo de transformação multidimensional e que, como todo processo, este pode ser tanto includente como excludente, e que não existe um caminho único em que ocorrem as transformações. Muitas delas, são, inclusive, contraditórias.
O autor retomou, então, a própria criação da Internet para falar sobre o controle de conteúdo. Adiantou que acreditava que existiam coisas que não apenas deviam, como precisavam ser controladas, como por exemplo a pornografia infantil, que sem dúvida alguma necessitava ser combatida.
Na história da Internet, entretanto, o que ocorreu foi exatamente o oposto: uma falta de controle. Por ter sido criada como uma estratégia militar para evitar a centralização da informação, controlar o que é publicado na rede é extremamente difícil, senão impossível. Essa característica garantiu condições para que, através de uma impressionante demonstração de autogestão, os próprios usuários da rede fossem também seus produtores, transformando a Internet em um espaço social de livre comunicação.
Castells colocou que o controle do que existe na rede é, hoje, uma das mais importantes questões políticas em discussão. Na China e em outros países são feitas tentativas bastante ofensivas, mas nem sempre efetivas, de tentar controlar o que existe online. Entretanto, a ausência de controle, pelo que disse Manuel Castells, parece estar na própria essência da Internet.
O professor passou então a falar sobre software livre. Pessoalmente, achei graça em sua afirmação de que quando opomos software livre a software proprietário não estamos, necessariamente, opondo, por exemplo, capitalistas e anarquistas. Provavelmente, disse ele, existem muitos anarquistas dentro mesmo da própria Microsoft, mas por outro lado, existem muitos capitalistas que estão percebendo a importância da utilização do software livre. Tomando como exemplo o próprio Linux, que serve sempre de bandeira para o debate: hoje em dia, ele é mais robusto do que o Windows, e mais estável. E, além disso, sua capacidade evolutiva é muito maior, uma vez que o programa permite acesso a seu código fonte e milhares de pessoas em todo o mundo estão pensando o seu desenvolvimento.
Manuel Castells terminou sua apresentação emocionada com uma declaração que, reconheço, fez balançar minhas convicções sobre a não essencialidade do software livre: “Nem toda propriedade é um roubo. Porém, a propriedade é um roubo quando exclui os não-proprietários do processo de desenvovimento social.”(…) “Informação é poder. Comunicação é contra-poder.”
Remixing
O segundo a se apresentar foi Lawrence Lessig, criador do conceito de Creative Commons. Em oposição ao espanhol apaixonado que Castells representou, Lessig se assemelhava mais à minha imagem do yuppie americano: óculos, cabelos claros penteados para trás, semi oculto pelo laptop e com um discurso preparado para convencer multidões. É necessário admitir que ele obteve sucesso em sua empreitada.
Sua apresentação foi simples e linear: tudo o que criamos no mundo é feito através de um processo de “re-mistura” ou remix, como ele repetidamente enfatizou: ao escrevermos um texto, ao ensinarmos, enfim, em quase tudo o que criamos existe um processo de se utilizar do que já existe para criar algo novo. E o mais importante de tudo isso é que esse processo sempre foi livre, gratuito. Ou FREE, como ele imprimiu no datashow pelo menos cem vezes durante os trinta minutos de sua explanação.
Lessig mostrou, então, para um público já conquistado, uma série de vídeos disponíveis online e produzidos por amadores a partir de imagens diversas, alcançando o ponto alto com o clip de “Endless Love”, “interpretado” por George Bush e Tony Blair, que pode ser encontrado, por exemplo, no site da _About_.
Entre os risos e aplausos da platéia, Larry lançou a sua idéia: aquele vídeo também fora produzido através de um processo de remix. A diferença é que, nesse caso, ele era ilegal. Ou seja, para fazer algo que sempre fora gratuito, agora era necessário permissão.
Foi nesse contexto, então, que surgiu o Creative Commons: uma forma de garantir ao autor o direito de marcar sua obra como livre: a autoria é mantida, porém a distribuição é gratuita. Lessig explicou que a explicação de Creative Commons pode ser encontrado no site em três camadas: a primeira voltada aos seres humanos, a segunda aos advogados e a terceira às máquinas. Dessa forma, garante ele, é possível ter certeza de que os direitos do autor estão assegurados dentro da lei e ele pode escolher a forma como prefere realizar a distribuição de seu trabalho.
Lessig também trouxe um exemplo com o qual eu não pude deixar de me impressionar. Ele contou que dez anos atrás, na África, foi constatado que mais de 30 milhões de pessoas morreriam de Aids nos anos seguintes. Os governos africanos, sem dinheiro para pagar as altas patentes americanas, decidiram buscar alternativas mais baratas, como por exemplo importar os remédios de outros países. Na época, o governo Clinton declarou que, caso isso fosse feito, a África sofreria pesadas sanções econômicas e que era necessário proteger o direito às patentes.
“Daqui a alguns anos, nossos filhos olharão para trás e nos perguntarão: Como isso pode acontecer? Como milhões de pessoas morreram sendo que poderiam ter sido salvas se não fosse essa ridícula proteção às patentes?” O auditório ficou em silêncio. Eu também não consegui pensar em como iria responder.
BBC Online Archive
O próximo a falar, com o desafio de manter atento um público que já se tornara fã de carteirinha de Lawrence Lessig, foi Christian Ahlert. Christian foi um dos protragonistas do início de um processo histórico: a digitalização dos arquivos da BBC, a TV estatal britânica. “Depois de ouvir a palestra de Larry, eu fico feliz em poder dizer que existe gente que faz isso”, ele começou, um pouco timidamente, porém usando o gancho de forma eficaz.
Chris contou que há mais ou menos 2 anos e meio atrás, a BBC percebeu, através de pesquisas, que sua audiência estava caindo e que, portanto, ela não estava cumprindo com seu principal objetivo que era atingir o máximo de pessoas possível. Nessa época, através de um processo não exatamente suave, como ele me confidenciou posteriormente, a BBC decidiu colocar uma grande parte de todo o seu conteúdo online, em um gigantesco arquivo digital. Para isso, Chris procurou Larry e foi decidido que todo esse conteúdo seria disponibilizado sob a licença de Creative Commons.
Chris não falou muito, mas parecia bastante convicto de suas idéias. “Nós não somos mais exatamente consumidores. Hoje, fazemos o download e modificamos o conteúdo. E, dessa forma, fazemos parte do processo de criação.”
Windows doesn’t dance
Em seguida foi a vez de John Perry Barlow, ex-letrista do Grateful Dead e co-fundador do Electronic Frontier Foundation. Barlow começou com um elogio rasgado aos brasileiros, afirmando que, para ele, o país é a capital da esperança e que se destaca do que ele costuma chamar de “Generica”, uma América que se rende frente aos interesses das multinacionais.
Elogiou, então, a nossa música, e naturalmente foi com a música que ele ilustrou sua apresentação sobre propriedade intelectual.
John disse a música não é um substantivo e que portanto não pode ser possuída. “A música é um verbo, é a relação do músico com o seu público”. Como a cultura, a música pertence ao coletivo da sociedade, uma idéia que, segundo ele, está bastante difundida no Brasil. Eu pensei alguns segundos sobre isso e achei que, de fato, a afirmação fazia sentido. Ninguém pensaria e pedir direitos autorais sobre a capoeira por aqui.
Barlow falou então que existem dois tipos de globalização: aquela entre as companhias multinacionais e aquela “peer-to-peer” e que ele prefere a segunda. O grande problema é que a primeira trabalha na contramão da segunda, pois as empresas ainda funcionam em uma economia de escassez: quanto mais raro é um produto, maior o seu valor.
A propriedade intelectual, todavia, não funciona como um bem material, ele explicou. No caso de um bem físico, depois de vendê-lo para alguém, não mais se possui o bem. Com a propriedade intelectual, por outro lado, com a música, isso não ocorre: não se possui menos uma música depois de vendê-la. Ela continua sendo sua! Portanto, a lógica da nova economia não é a da escassez, mas sim a do compartilhamento. “A propriedade é o modelo errado para coisas que você continua possuindo.”
Um idealista
Por último falou Gilberto Gil, aplaudido como músico, arrancando suspiros de fãs presentes que provavelmente pouco entendiam sobre o que era falado ali. Acho que parte de minha indisposição para com ele vem dessa sua dupla função. Porém, depois de tantos elogios vindos de gente que eu aprendera, bastante rapidamente, a respeitar, decidi que ouviria seu discurso com a mente aberta. E não me decepcionei.
Gil não acrescentou muito ao que já havia sido dito. Comprovou, em sua fala, o que os outros haviam repetido várias vezes, de que o Brasil era um exemplo na luta pelo software livre. Defendeu sua importância. Disse que se tivesse que escolher entre o anti e o pró, escolhia o pró, e que é isso que está fazendo: está fazendo!
Falou poeticamente, como apenas um músico pode fazer, e sobre coisas grandes, de forma que apenas ministros falam. Mas terminou com uma afirmação que não pode deixar de me fazer sorrir: disse que além de músico e ministro, seu espírito é hacker. E não cracker, ele ressalva, e quem entende o que ele quer dizer sabe a diferença que ele reforça. Mas Gil explica: hackers criam, renovam, pesquisam e compartilham informações. E é com esse tom que Gil começou e encerrou sua fala, se não de todo conquistando minha simpatia, com certeza me convencendo de suas boas intenções em sua luta dentro do governo.
Por fim
Depois que Gil falou, foi aberto um espaço para perguntas. Infelizmente, muita gente querendo fazer propaganda das próprias bandeiras, e outras fazendo reinvindicações que com certeza estariam melhor em outro momento. De tudo que foi dito, entretanto, uma declaração de Lessig em resposta a uma pergunta sobre como fica a ética em todo esse processo precisa ser destacada. E eu acho que foi isso que realmente me convenceu. Ele disse algo mais ou menos assim:
“Você perguntou sobre ética. Você vê, eu sou muito fã de Gilberto Gil, mas existe um outro brasileiro que também admiro, ele se chama Mangabeira Unger. Unger uma vez apresentou um conceito que eu acho que se aplica bastante bem aqui: a falsa necessidade. Veja, eu não sou a favor que se distribua conteúdo gratuitamente na Internet contra a vontade dos autores. Eu não sou a favor dessas redes de distribuição de músicas peer-to-peer. Entretanto, acho que devíamos nos perguntar qual é a ética de um sistema que restringe o livre acesso a uma informação que pode salvar milhões de vidas na África. Estamos falando, aqui, de uma falsa necessidade.”
Termino, então, meu texto, com a conclusão que prometi em meu primeiro artigo: o software proprietário é uma falsa necessidade. Ele não precisa existir e sua existência é uma afronta a nova lógica da Era da Informação. Como regeu Lessig no final de sua apresentação: FREE SOFTWARE!
Observação: Este artigo traz, ao longo do texto, diversos links para o Wikipedia, um moderno exemplo de construção coletiva de conhecimento. Apesar de muitos links estarem em inglês, basta alguns minutos para traduzi-los e disponibilizá-los online. Contribua você tambem.