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Artigo – Como sempre foi

Morte de Dorothy Stang no Pará joga luz sobre uma região da fronteira agrícola da Amazônia esquecida por seguidos governos brasileiros

Ao reagir de forma rápida ao assassinato da missionária norte-americana naturalizada brasileira Dorothy Stang, ocorrida sábado (12), o governo federal não está demonstrando competência, mas apenas corrigindo um erro histórico que ele mesmo cometeu. O crime poderia não ter acontecido caso o Estado tivesse tido a coragem de entrar nessa região de fronteira agrícola amazônica, e não deixado à própria sorte uma população que há anos luta pelo direito à terra e à sobrevivência. Em outras palavras, os governos, tanto o atual quanto os anteriores, são co-responsáveis não só por esta morte, mas pelas tantas outras que já aconteceram.
E foram muitas. Baseado em dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), e considerando os municípios com duas ou mais mortes por conflitos agrários entre 2001 e julho de 2004, a ONG Repórter Brasil verificou que a região de fronteira agrícola do Pará – onde a floresta tomba diariamente para dar lugar a pastagens e plantações – responde por 27,45% do total de assassinatos no país por conflitos agrários. O restante Sul/Sudeste do Estado fica na segunda posição, com 16,67%.

Juntas, as duas regiões correspondem por 38,51% do total de área desmatada da Amazônia Legal – informações baseadas em pesquisa da ONG Repórter Brasil sobre dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. É interessante notar que os dois ramais rodoviários que ligam o Pará com o norte do Mato Grosso – o segundo colocado em área desmatada (15,54%) – a BR-158, a leste, e a BR-163, a oeste, são considerados tanto pelos governos estaduais quanto pelo governo federal como “eixos de desenvolvimento”. Locais em que, na verdade, a grilagem de terras, a pecuária extensiva, os latifúndios de soja e algodão crescem ao mesmo tempo em que a floresta e os trabalhadores tombam.

As madeireiras têm uma parcela significativa de culpa, mas não são os atores principais. Ao contrário do que reza o senso comum, a expansão da pecuária é a responsável pelo sumiço da Amazônia, ocupando hoje cerca de 75% das áreas desmatadas, de acordo com o Banco Mundial. Os pecuaristas seriam atraídos pelas taxas de retorno até quatro vezes maiores do que as do centro-sul do país. O clico de devastação se completa quando sojicultores e cotonicultores compram as pastagens para a expansão de suas culturas, empurrando os pecuaristas para novas áreas de florestas que serão em seguida desmatadas.

Desde a ditadura militar e seus planos de colonização do interior do país, esses grandes produtores rurais reinam sobre a Amazônia. A relação carnal que se estabelece entre o patrimônio público e a propriedade privada na região é um problema de difícil solução. Muito similar ao que se enraizou com o coronelismo nordestino da Primeira República, o detentor da terra exerce o poder político, seja através de influência econômica, seja através de coerção física. Nessa região, o já tênue limite entre a esfera pública e a privada se rompe.

Estabelecem suas próprias leis, utilizam trabalho escravo, mão-de-obra infantil. Elegem vereadores, prefeitos, deputados, senadores, governadores. Assassinam sindicalistas, ameaçam juízes, procuradores, militantes. Matam freiras de 74 anos.

O agronegócio é intocável no Brasil. E isso não vai mudar, pois nenhuma decisão ministerial sairá a fim de rediscutir o padrão de desenvolvimento do país. Por que, se eles são, hoje, responsáveis por gerar divisas que sustentam nossa balança de pagamentos? Além disso, o governo teme madeireiros, pecuaristas e o restante do agronegócio, mas tem apenas compaixão por ribeirinhos, pequenos produtores rurais e moradores de reservas de exploração sustentável. O mesmo sentimento faz com que a meta de uma empresa como a Embrapa seja a de ampliar a monocultura exportadora. Mesmo considerando que as propriedades rurais pequenas e familiares produzem a maior parte do alimento da mesa do brasileiro.

A BR-163, Cuiabá-Santarém, será ampliada e asfaltada, como assim querem os governadores do Mato Grosso e do Pará. A região do Iriri/Terra do Meio, entre as duas rodovias, com o tempo vai desaparecer, transformando-se de um lado em um pasto gigantesco, com muita juquira para os peões roçarem. E, do outro, numa imensa plantação de soja e raízes de arbustos que só mãos conseguem arrancar. É claro que vozes continuarão se levantando contra tudo isso, assim como sempre foi. E conseqüentemente mais assassinatos, também como sempre foi. E o governo achará tudo isso um absurdo e encontrará os mandantes, mas não agirá nas causas e deixará os trabalhadores mais uma vez sozinhos. Como sempre foi.


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