Em 2001, ao apagar das luzes do governo Fernando Henrique Cardoso, o povo brasileiro assustou-se com a crise energética que se instalou no país. Pego de surpresa, o então presidente teve necessidade de criar uma infra-estrutura de peso, com responsabilidade interministerial, para o enfrentamento da situação. Foram várias as causas para justificar os chamados “desligamentos programados” (termo utilizado na época pelas autoridades, que fugiam do popular termo “apagão” como o diabo foge da cruz), que resultaram na mais séria crise energética de nossa história.
As descargas elétricas (raios) foram consideradas as maiores vilãs dos desligamentos naquele período, seguidas de outras motivações igualmente curiosas, como a ineficiência de São Pedro (era comum culpar a providência vinda dos céus), o qual teimava em não mandar as chuvas providenciais para o preenchimento dos reservatórios das hidrelétricas nacionais. Naquele cenário de preocupações energéticas, o governo federal investia todas as suas fichas no projeto de transposição do rio São Francisco, com vistas ao abastecimento de oito milhões de pessoas no Semi-árido nordestino.
Posteriormente, as reais causas dos apagões foram identificadas como sendo a associação da falta de investimentos com descompassos das chuvas. Então, o ex-presidente achou por bem arquivar, de vez, o projeto transpositório das águas do rio São Francisco, por julgar impossível fazê-lo naquela situação de penúria hídrica (a represa de Sobradinho chegou ao mínimo de 5% de seu volume útil), deixando a possibilidade de novas investidas para o seu sucessor.
Ao assumir a Presidência da República em janeiro de 2003, a primeira providência do presidente Lula nas questões energéticas nacionais foi a de comunicar ao povo brasileiro, juntamente com a ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff, que os apagões eram páginas viradas na história do país.
Ocorre que passados exatos dois anos de governo os apagões retornaram e com força elétrica: foram seis no mês de janeiro, no intervalo de 25 dias, três dos quais apagaram literalmente o Rio de Janeiro, o Espírito Santo e boa parte do sul de Minas. O último deles ocorreu no Nordeste, apagando expressiva área da região, e teria sido causado, segundo informações oficiais, por problemas numa subestação em Campina Grande. Curiosas foram as explicações fornecidas pelas autoridades para justificarem as causas dos desligamentos ocorridos, agora sob a batuta de Lula.
Segundo foi informado, ocorreram “desligamentos acidentais” que, no nosso modo de entender, não passam de outra tentativa de se esquivar da palavra apagão, embora os agentes causadores tenham sido muito parecidos aos do governo anterior (lembram do raio treloso?). Na atual versão de justificativas, as questões celestiais foram deixadas de lado, embora tenha surgido outro personagem causador de novas trapalhadas. Referimo-nos a um técnico que, inadvertidamente, desligou um disjuntor que não deveria.
Ora, estão subestimando a inteligência do povo brasileiro. Não passa pela cabeça de ninguém que, ao se desligar um simples botãozinho, aparentemente inofensivo, este venha a interromper a energia de dois estados inteiros e parte de um terceiro, assim, de forma abrupta, sem antes haver um alerta, por menor que fosse. No quesito “justificar o injustificável”, as autoridades brasileiras são imbatíveis. Caso isso venha a ser verdadeiro, precisamos instituir, neste país, o “Troféu Interruptor”, como prêmio de reconhecimento às personalidades do setor elétrico, capazes de feitos espetaculares como esses aqui relatados.
A esse respeito, quando em 2004 ocorreu o vendaval em Santa Catarina, que destelhou mais de 600 residências, as autoridades passaram semanas a fio tentando explicar o fenômeno. Discorreram sobre as pressões existentes no redemoinho que havia sido formado em grandes proporções (“redemoinho” é como chamamos o fenômeno aqui no Nordeste. Aliás, quando ele ocorre é prenúncio de seca) e sobre os movimentos de rotação do cone formado. Baseados na precisão dessas informações, pode-se determinar se fenômeno era um furacão, um tornado ou simplesmente uma tempestade tropical.
Ora, o povo catarinense está muito pouco interessado em saber se os telhados de suas casas voaram para a direita ou para a esquerda, ou se o redemoinho tinha essa ou aquela pressão no seu interior. O povo quer saber se as providências para minimizar o sofrimento das famílias atingidas foram tomadas com a rapidez devida e se há possibilidade de se prever o fenômeno. Com isso, será possível tomar as medidas necessárias à proteção de toda a comunidade e evitar o desastre que ocorreu naquelas proporções.
No caso do setor elétrico o raciocínio é o mesmo. A população está muito pouco interessada em saber se a falta de luz foi causada por um apagão, um desligamento programado ou um desligamento acidental. O fato é que faltou luz. O povo, diante da realidade da falta de luz em suas casas, quer saber se os impostos que estão sendo pagos a duras penas por cada um dos usuários estão sendo utilizados de forma coerente no setor elétrico e quem irá arcar com os prejuízos com a falta de luz ocorrida. O cálculo dos prejuízos causados pela falta de luz naqueles estados, nos 40 minutos estimados em cada desligamento, dará uma idéia precisa da magnitude dessa questão.
O xis da questão
O que na realidade precisamos entender melhor é o porquê de toda essa instabilidade vivida pelo setor elétrico nos últimos anos. A falta de investimentos é apontada pelos especialistas como sendo a principal causa dos desligamentos havidos (no atual nível de crescimento do país, são necessários, para manter o sistema elétrico brasileiro equilibrado, cerca de US$ 5 bilhões por ano). A isso soma-se o equívoco das autoridades em insistirem no investimento, quase que exclusivo, na produção de energia hidrelétrica (a matriz energética nacional é calcada, quase que exclusivamente, em hidreletricidade), como fica bem claro diante dos atuais investimentos havidos na construção de novas linhas de transmissão de energia para o Nordeste, bem como na ampliação do potencial gerador em algumas hidrelétricas. Em um país continente como o nosso, basta haver um descompasso na caída das chuvas para que seja criada uma situação de calamidade, a exemplo da que ocorreu em 2001.
A hidrelétrica de Tucuruí, por exemplo, acaba de receber mais quatro turbinas geradoras de energia e, no ato de sua inauguração pelo presidente Lula, em dezembro passado, não havia água no reservatório da usina em volumes suficientes para gerar energia com aquelas novas unidades inauguradas. A explicação dada pelas autoridades foi a de que o período chuvoso da região estava apenas no seu com
eço, havendo, portanto, necessidade de se esperar mais um tempo, a fim de que o rio pudesse correr com mais água e acumular os volumes necessários para possibilitar a geração. Lembramos que em 2001, quando o Nordeste passava pela mais séria crise energética de sua história, a hidrelétrica de Tucuruí também racionava sua energia em 20%. Esse fato preocupa e sugere gerenciamentos mais cuidadosos desses volumes, sob pena de, no futuro, a hidrelétrica de Tucuruí não dispor da água necessária para gerar energia, embora esteja equipada para tal.
Outro fato preocupante é a questão da geração de energia do Nordeste. O rio São Francisco é responsável por mais de 95% da energia que é gerada na região. Gera anualmente cerca de 50 milhões de MWh. Com essas características e com o crescimento atual da demanda elétrica estimada em 6% ao ano, prevê-se para o setor elétrico a necessidade de dobrar, nos próximos 12 anos, a geração de energia no Nordeste para satisfazer a demanda da região. Ou seja, em 2017, teremos que produzir, necessariamente, cerca de 100 milhões de MWh.
É nesse cenário de incertezas, com o potencial gerador do rio praticamente esgotado e com riscos hidrológicos evidentes para se transportar energia de outros centros geradores, que se pretende transpor as águas do rio São Francisco para o abastecimento de 8 milhões de pessoas. Seguramente, isso não será possível sem antes se pôr em risco os investimentos já realizados no setor.
Em julho de 2003, elaboramos um artigo intitulado “Na iminência do primeiro equívoco”, no qual alertávamos as autoridades para a possibilidade de, na permanência da falta de investimentos no setor elétrico, os racionamentos voltarem a ocorrer no governo Lula. E parece que as nossas previsões, infelizmente, estão se concretizando. É bem provável que os seis desligamentos ocorridos em janeiro de 2005 sejam os primeiros de uma série e o prenúncio de novos racionamentos.
Cremos que já é chegada a hora de iniciarmos uma discussão sobre a ampliação da matriz energética nacional, através do aporte de novas fontes e formas de energia. O Nordeste brasileiro é detentor de um enorme potencial para o aproveitamento da luz solar, dos ventos e da biomassa, que poderá satisfazer as necessidades energéticas do seu povo por um bom período de tempo. Contudo, o que preocupa é que, passados dois anos, o governo do presidente Lula ainda não apresentou nenhum plano decenal para o setor elétrico, nem projeções da matriz energética, como bem atesta Sergio Valdir Bajay, professor do Departamento de Energia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético da Unicamp, em seu artigo “Formulação de políticas públicas, planejamento e regulação de mercados de energia: as visões das administrações FHC e Lula e os desafios pendentes”.
Finalmente, preocupa-nos o péssimo relacionamento existente, hoje, entre o governo federal e o comitê da bacia do rio São Francisco nos tratamentos das questões do Velho Chico. O governo, nesses aspectos, vem desconsiderando sistematicamente as prerrogativas legais do comitê, o que tem resultado em situações das mais desagradáveis na condução do projeto de transposição do rio. Lembramos a grande confusão criada durante aa realização das audiências públicas nos estados exportadores das águas do São Francisco: elas foram interrompidas devido à falta de segurança para os participantes, situação essa não condizente com as expectativas da população, esperançosa que sempre se mostrou quanto às ações de um governo supostamente aberto ao diálogo.
A realização de um projeto dessas proporções no São Francisco, rio que tem o nome de um santo, santo que é a cara do meio-ambiente e patrono da ecologia, vem se transformando, em verdade, na desintegração de tudo que já foi construído em sua bacia.
João Suassuna é engenheiro agrônomo, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e um dos maiores especialistas na questão hídrica nordestina.