A erradicação do trabalho escravo depende de um esforço integrado que envolva a repressão a quem se vale dessa prática e a melhoria das condições sociais das populações atingidas pelo aliciamento. Desde 1995, o governo federal e a sociedade civil vêm combatendo o problema, buscando meios de libertar os trabalhadores da situação de escravidão em que se encontram. Houve um salto de qualidade no combate ao trabalho escravo com o governo Lula, tanto que a quantidade de trabalhadores libertados entre 1995 e 2002 é equivalente ao que foi libertado apenas em 2003. Ações do Ministério Público Federal e do Ministério Público do Trabalho são ajuizadas e condenações são feitas, coisa que dificilmente acontecia no governo anterior.
A erradicação do trabalho escravo foi considerada uma das metas presidenciais desse governo. Hoje, o programa brasileiro tornou-se referência internacional. Contudo, o contra-ataque dos fazendeiros e de seus representantes políticos e a inação de setores do governo federal têm levado a sucessivas derrotas no combate ao trabalho escravo.
E o mundo percebeu. A inglesa Anti-Slavery, uma das mais antigas ONGs do mundo, fundada no início do século 19 para combater o trabalho escravo, começou em fevereiro deste ano uma campanha internacional cobrando nominalmente o presidente Lula e o ministro Nilmário Miranda para porem em prática o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo. Eles pedem que milhares de cartas sejam enviadas ao presidente (http://www.stophumantraffic.org/country.html).
A Organização dos Estados Americanos (OEA) está, nesse momento, checando o cumprimento do acordo que foi assinado em 2003 com o governo brasileiro para evitar uma condenação internacional por trabalho escravo. O caso, surgido devido à inoperância dos governos anteriores em julgar os culpados de tentar assassinar o trabalhador Zé Pereira (escravo fugido de uma fazenda), fez com que este governo assumisse vários compromissos. Apenas parte deles foi cumprida.
Para erradicar o trabalho escravo, são necessárias ações estruturais que incluam geração de emprego e renda, reforma agrária e combate à impunidade. Porém, há ações de curtíssimo prazo que devem ser tomadas pelo governo federal que poderiam reverter o quadro e enfraquecer as forças contrárias à erradicação da escravidão contemporânea no país. São medidas de baixo custo financeiro, mas de grande repercussão e efetividade:
1) A Advocacia-geral da União (AGU) deve atuar, urgentemente, para suspender as liminares concedidas aos fazendeiros que conseguiram sair da “lista suja” do trabalho escravo. Atualizada semestralmente pelo Ministério do Trabalho e Emprego ela contém as pessoas e empresas que utilizaram trabalho escravo e serve de referência para o governo e a sociedade civil em uma série de ações. Vale lembrar que o presidente da República assinou o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, do qual a “lista suja” é produto.
2) Solicitar que o Conselho Monetário Nacional cumpra a promessa de suspender todo o crédito aos fazendeiros que estão na “lista suja”. Graças a uma ordem do ministro Ciro Gomes, desde o final de 2003, essas pessoas e empresas já não conseguem obter mais acesso aos bilhões de reais dos Fundos Constitucionais de Financiamento, concedidos pelo Banco da Amazônia, Banco do Nordeste e Banco do Brasil. Essa experiência bem sucedida, cujo Ministério da Integração Nacional foi avalista, está surtindo efeito e muitos fazendeiros estão se adaptando às normais trabalhistas para não perder acesso ao crédito. Falta agora o CMN recomendar a todas as instituições financeiras a suspensão de todo o crédito enquanto o nome estiver na lista.
3) O governo federal também deve conseguir que seja declarada a improcedência da Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) impetrada pela Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA), no Supremo Tribunal Federal (STF), contra a “lista suja” do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Além do corte do crédito, a relação está sendo utilizada como base para a identificação da cadeia dominial pelo Ministério Desenvolvimento Agrário e Incra (para recuperar as fazendas em situação irregular) e da cadeia produtiva do trabalho escravo.
4) Atuar na Câmara dos Deputados no sentido de tornar possível a aprovação sem restrições da PEC 438, que prevê o confisco de propriedades rurais que utilizaram trabalho escravo. Já aprovada em dois turnos no Senado e em primeiro turno na Câmara, a PEC, se colocada hoje em votação, perderia devido à ação forte da bancada ruralista e à inação da articulação política do poder executivo e da liderança do governo na Câmara. Esse quadro pode ser revertido mediante sinalização clara do Governo.
5) Aumento do valor da diária paga aos auditores do trabalho e policiais federais nos grupos móveis de fiscalização. No início do ano, quase ocorreu uma paralisação das libertações por esse motivo. Hoje, ficou mais difícil compor equipes para as fiscalizações. Os valores são insuficientes (cerca de R$ 60,00/dia) e os auditores e policiais federais estão completando com dinheiro do próprio bolso os custos com hospedagem e alimentação. A decisão para aumento no repasse de recursos para diárias pode ser tomado pelo Ministério do Planejamento de forma rápida, se houver vontade política.
6) O governo federal precisa atuar junto ao Supremo Tribunal Federal no sentido de sensibilizar os ministros do tribunal que estão decidindo a respeito da competência da Justiça Federal para julgar o crime de trabalho escravo – necessário para evitar que as Justiças Estaduais de lugares como Pará, Mato Grosso e Maranhão engavetem processos. Por enquanto, a votação está 4 a 2 a favor e o ministro Gilmar Mendes pediu vistas dos autos.
7) O trabalho escravo de latino-americanos nas tecelagens de São Paulo deve ter um combate diferente. Hoje, os trabalhadores acabam expulsos do país, quando são libertados, por estarem irregulares. Com isso, não recebem um centavo apesar de terem trabalhado durante meses. É necessário apressar a revisão do Estatuto do Estrangeiro junto ao Ministério do Trabalho e Emprego e do Itamaraty. Uma revisão que auxilie essas comunidades pobres, principalmente vindas da Bolívia, a enfrentarem o problema de forma digna. Vale lembrar que a forma de combater o trabalho escravo urbano deve ser diferente do rural, pois as duas formas de exploração tem origens com características próprias. As tentativas dos escravocratas de colocar as duas no mesmo balaio – como na hora de aprovação da PEC do confisco de terras – serve apenas para protelar as soluções para ambas.
No curto
prazo, a falta de ação do governo federal pode afetar de forma contundente a reeleição do presidente Lula em 2006. Caso essas derrotas continuem ocorrendo, o que poderia servir de vitrine na reeleição de 2006 (“o governo que conseguiu erradicar a escravidão”), se transformará em vidraça (“o governo que temeu o agronegócio e seus representantes e não adotou as medidas necessárias”). O tempo está correndo.