Uma carta da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) endereçada ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, divulgada nesta quarta-feira (30), moveu mais uma peça no complexo jogo de xadrez da fiscalização realizada pelos grupos móveis do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Em janeiro deste ano, conforme noticiado pela Agência Carta Maior (“Fiscalização móvel pode parar em fevereiro” ), o Ministério Público do Trabalho declarou durante o Fórum Social Mundial que, enquanto as diárias recebidas pelos policiais federais não fossem reajustadas, a Polícia Federal não mais participaria das operações de combate ao trabalho escravo. Com a ausência da Polícia Federal, o MP não designaria procuradores para os grupos móveis, já que sua segurança não estaria garantida. As operações, portanto, corriam o risco de serem paralisadas a qualquer momento.
O reajuste não veio e, de acordo com o MTE, a falta de recursos humanos levou ao cancelamento de cinco operações desde o início do ano. Tomando conhecimento de que as operações de libertação de trabalhadores escravizados serão inviabilizadas caso não sejam tomadas medidas imediatas por parte do governo federal, a Conatrae – órgão governamental formado por representantes de diversos ministérios e secretarias do Executivo e também da sociedade civil – divulgou uma carta onde exige do próprio governo um aumento no valor das diárias dos funcionários envolvidos nas fiscalizações. As entidades participantes da Comissão defendem que seja garantida uma diária em torno de R$ 120,00 para os membros da móvel.
“Os valores pagos como diárias aos auditores fiscais do trabalho e policiais federais (que variam em torno de R$ 60,00) têm sido insuficientes para cobrir os gastos de hospedagem e alimentação durante as ações dos grupos móveis de fiscalização. Devido a essa limitação financeira, optam por uma hospedagem mais barata, muitas vezes em locais sem nenhuma segurança – colocando em risco a sua integridade física e o sucesso da operação. A manutenção histórica dessa situação tem feito com que muitos bons profissionais desistam de estar nas ações – cuja participação tem caráter voluntário”, diz o documento.
Segundo Luis Antônio Camargo, da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT), a diária dos auditores e policiais não é suficiente hoje para pagar uma pensão de quinta categoria. “O policial não dorme neste lugar porque o pistoleiro, a mando do fazendeiro, entra lá e o mata. Eles estão tirando dinheiro do bolso para libertar os trabalhadores. É preciso que o governo tenha sensibilidade para isso e determine o pagamento de uma diária que lhes permita cumprir com sua obrigação. O conforto já foi abandonado há muito tempo. Agora trata-se de cumprir com a obrigação”, disse Camargo à Agência Carta Maior na ocasião da denúncia feita pelo MP em janeiro.
Na visão da Conatrae, que discute este problema desde a instalação da comissão há dois anos sem que uma solução para a questão ultrapassasse as declarações de boas intenções, o gasto com um aumento nas diárias é pequeno se comparado com o alcance social do trabalho dos grupos móveis e mesmo com o aumento na arrecadação de impostos trazido pela legalização das relações trabalhistas. “Dezenas de denúncias estão na fila para serem verificadas, o que representam centenas de trabalhadores em condição de escravidão que não conquistarão sua liberdade tão cedo, nem terão sua dignidade respeitada”, afirma a carta.
“O resgate desses trabalhadores não tem preço. Encontramos fazendas onde os alojamentos sequer se assemelham ao curral onde o gado está. São de péssima qualidade, expostos a intempéries, cobertos de lona preta. A saúde do trabalhador é desprezada pelo fazendeiro, encontramos trabalhadores com tumores, leishmaniose, hanseníase, malária, calafrios. Às vezes, achamos pessoas morrendo”, relata a auditora fiscal do MTE Virna Damaceno.
Segundo a ANPT, a liberação do reajuste das diárias depende do Ministério do Planejamento. Quem faz o pagamento dos policiais e auditores é o MTE, já que a própria polícia não tem verba para as ações de combate ao trabalho escravo. Dar estrutura para as inspeções é meta prevista desde 2003 no Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, lançado pelo presidente Lula no primeiro ano de seu governo.
Abaixo, íntegra da carta:
Ao Excelentíssimo Sr. Luís Inácio Lula da Silva
Presidente da República
Brasília, 30 de março de 2005
A Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) tomou conhecimento no dia de hoje que as operações de libertação de trabalhadores escravizados estão praticamente inviabilizadas e podem parar a partir do início do mês de abril caso não sejam tomadas medidas imediatas por parte do governo federal. Vale ressaltar que a erradicação do trabalho escravo é um das principais metas presidenciais, prioridade assumida em março de 2003.
Os valores pagos como diárias aos auditores fiscais do trabalho e policiais federais (que variam em torno de R$ 60,00) têm sido insuficientes para cobrir os gastos de hospedagem e alimentação durante as ações dos grupos móveis de fiscalização. Devido a essa limitação financeira, optam por uma hospedagem mais barata, muitas vezes em locais sem nenhuma segurança – colocando em risco a sua integridade física e o sucesso da operação. A manutenção histórica dessa situação tem feito com que muitos bons profissionais desistam de estar nas ações – cuja participação tem caráter voluntário. De acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego, a falta de recursos humanos para realizar as fiscalizações já levou ao cancelamento de cinco dessas operações apenas em 2005.
O gasto com um aumento nas diárias é pequeno se comparado com o alcance social do trabalho dos grupos móveis e mesmo com o aumento na arrecadação de impostos trazido pela legalização das relações trabalhistas. O problema é principalmente burocrático, pois há uma diária fixa para os servidores federais em viagem às capitais e outra para o interior. As entidades participantes da Conatrae defendem que seja garantida, pelo menos, uma diária de capital (variando em torno de R$ 120,00) para os membros da móvel.
O problema tem sido discutido no âmbito da Conatrae desde instalação da comiss&atild
e;o há dois anos e há quatro anos entre as instituições governamentais e da sociedade civil envolvidas no tema. Diversas moções por uma solução foram tomadas, mas nenhuma delas obteve sucesso, permanecendo nas declarações de boas intenções.
Dezenas de denúncias estão na fila para serem verificadas, o que representam centenas de trabalhadores em condição de escravidão que não conquistarão sua liberdade tão cedo, nem terão sua dignidade respeitada. Ao todo, são cerca de 25 mil pessoas em situação de escravidão no Brasil que ficarão à própria sorte com a paralisação das atividades.
Tendo em vista a responsabilidade do poder executivo com a atual situação e reconhecendo a impossibilidade de continuar as operações dos grupos móveis de fiscalização sem risco à vida desses servidores, a Conatrae exige um aumento no valor das diárias sob pena de ser confirmada a paralisação do principal instrumento de combate ao trabalho escravo do país a partir de abril.
Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae)