Trabalho escravo é uma realidade também na cidade de São Paulo

Imigrantes latino-americanos em situação ilegal no Brasil são vítimas de trabalho escravo na maior cidade do país. Bolivianos, paraguaios, peruanos e chilenos compõem um "exército" de mão-de-obra barata e abundante na capital paulista
Por Camila Rossi e Leonardo Sakamoto
 27/04/2005

A novela “América”, veiculada pela Rede Globo, colocou em pauta o martírio dos brasileiros que tentam entrar ilegalmente nos Estados Unidos para trabalhar. Sem entrar no mérito da qualidade técnica ou do enredo da produção, é fato que mais atenção passou a ser dada aos relatos de dezenas de brasileiros barrados e presos na região da fronteira mexicana – a começar pelo principal telejornal da emissora. De repente, o Brasil ficou horrorizado por ver seus filhos sendo mal tratados nas terras além do Rio Grande. Contudo, apesar de não ser tema de novela, a situação dos imigrantes ilegais latino-americanos na cidade de São Paulo é uma realidade mais dolorosa, pois muitas vezes acabam como escravos em oficinas de costuras na região central da capital, como Brás, Bom Retiro e Pari.

Os preços baixos de roupas em ruas como a José Paulino ou a Oriente que tanto atraem os consumidores do varejo e do atacado muitas vezes são obtidos através da redução dos custos no processo de produção. A maior parte dos funcionários utilizados na confecção dessas roupas é composta por imigrantes latino-americanos em situação ilegal no Brasil. Bolivianos, paraguaios, peruanos, chilenos compõem um verdadeiro exército de mão-de-obra barata e abundante em São Paulo. Saem de seus países de origem em busca de uma vida melhor em solo brasileiro, fugindo da miséria. Das comunidades latino-americanas na capital paulista, os bolivianos destacam-se por constituir a mais numerosa. Além disso, encontram-se nas situações mais graves de exploração e degradação do trabalho humano.

Para buscar soluções para essa situação, medidas estão sendo avaliadas por entidades da sociedade civil e governo federal. A Organização Internacional do Trabalho lançará, em breve, um relatório sobre a situação do trabalho escravo no mundo e outro no Brasil. Neste último, é tratado do tema trabalho escravo latino-americano em São Paulo. Além disso, neste ano, a Câmara dos Vereadores instalou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o trabalho escravo no município – predominantemente formado por imigrantes ilegais.

Reunindo-se todas as terças-feiras, às 10h, os vereadores têm menos de dois meses para concluir seus trabalhos. Serão convocados a participar das reuniões o setor de imigrações da Polícia Federal, representantes patronais das confecções, o Ministério Público do Trabalho e a Polícia Civil. O Ministério Público de São Paulo vai acompanhar o andamento das investigações.

De acordo com a relatora Soninha (PT), a CPI tem dois focos de atuação: o primeiro, no sentido de pressionar o governo federal em Brasília para a concessão de anistia aos trabalhadores, agilizar mudanças no Estatuto do Estrangeiro e alterar o tratamento dado ao imigrante ilegal libertado da escravidão. O outro, é inserir a questão urbana nos debates sobre o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, previsto para ser lançado por entidades da sociedade civil, empresas e governo federal em maio.

Estatísticas precárias
As autoridades brasileiras não têm números precisos que permitam quantificar esses trabalhadores. O Centro Pastoral do Migrante – entidade ligada à Igreja Católica que fornece apoio aos imigrantes no país e que é considerada uma das maiores especialistas no tema – estima que existam hoje, na capital paulista, de 600 mil a 700 mil latino-americanos, dos quais 40% em situação irregular. A população total estimada do município de São Paulo em 2004, de acordo com o IBGE, é de 10, 8 milhões de pessoas.

Especificamente para os bolivianos, a Pastoral trabalha com estimativas de 400 mil pessoas (das quais 240 mil já documentadas), sendo que 12 mil estariam em condição de escravidão. Já o Consulado Geral da Bolívia em São Paulo é mais modesto e apresenta cifras menores: calcula que 25,6 mil estejam em situação legal e permanente na capital paulista. A estimativa é feita com base nos números da última anistia concedida no Brasil, em 1998, quando cerca de 7 mil bolivianos regularizaram sua situação no município. A respeito dos imigrantes ilegais, o Consulado não se arrisca a estipular uma quantidade.

A situação socioeconômica na Bolívia hoje é delicada. O país, que tem aproximadamente 8 milhões de habitantes, possui os piores indicadores sociais da América do Sul. De acordo com o ranking mundial de desenvolvimento humano, medido anualmente pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a Bolívia está na 114ª posição de um total de 177 países – números de 2004. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) boliviano é de 0,681. Para se ter uma idéia, o Brasil ocupa a 72ª posição no ranking da PNUD e tem um IDH de 0,775.

Os bolivianos entram no território brasileiro através de cinco portas principais: Corumbá (Mato Grosso do Sul), Cáceres (Mato Grosso), Foz do Iguaçú (Paraná), Guajará-Mirim (Rondônia, por via fluvial) e Manaus (Amazonas, por via fluvial). Aqueles que não conseguem cruzar a fronteira por meios legais – porque não têm documentos ou não querem ou não podem pagar pelo visto – têm de desviar da fiscalização da Polícia Federal. Uma opção é seguir até o Paraguai e aguardar nos chamados “ninhos”. Nestes pequenos apartamentos, em que os coiotes colocam até 40 imigrantes, os bolivianos esperam o momento de poder atravessar a fronteira. Em alguns, a superlotação é tão grande que fica impossível deitar-se para descansar. A situação de higiene também não é das melhores, com um único banheiro atendendo a todos, que chegam a ficar o dia inteiro sem água e comida.

Para atravessar a fronteira do Paraguai com o Brasil em Cidade do Leste/Foz do Iguaçu, a estratégia dos gatos é esperar o momento em que os policiais federais não estejam checando a documentação de todos (o que ocorre quando há muita gente trafegando pela Ponte da Amizade, que liga os dois países, e os policiais não dão conta da tarefa). Do lado brasileiro, um ônibus espera os bolivianos aliciados para levá-los a São Paulo.

Trabalho degradante e escravo
As oficinas funcionam em porões ou locais escondidos, pois a maior parte delas é ilegal, sem permissão para funcionar. E para que suspeitas não sejam levantadas pelos vizinhos, que acabariam alertando a polícia, as máquinas funcionam em lugares fechados, onde o ar não circula e a luz do dia não entra. Para camuflar o barulho das máquinas, música boliviana toca o tempo todo. Os cômodos são divididos por paredes de compensado. Essa é uma estratégia para que os trabalhadores fiq
uem virados para a parede, sem condições de ver e relacionar-se com o companheiro que trabalha ao lado – o que poderia resultar em mobilização e reivindicação por melhores condições.

Em muitos casos, o dono da firma, quando se ausenta, tranca a porta pelo lado de fora, para que ninguém entre ou saia do recinto. Além disso, os locais não oferecem as mínimas condições de segurança e higiene: a fiação é exposta e traz riscos de choques e incêndios. O valor das três refeições diárias – café da manhã, almoço e jantar, com duração de cerca de 20 minutos cada uma – é descontado do saldo a receber, assim como água, luz e moradia.

Outro ponto que alimenta a manutenção do sistema é a coerção psicológica a que são submetidos os bolivianos. Por estarem, a grande maioria, em situação ilegal no país, sofrem ameaças por parte dos patrões de que, se tentarem fugir ou reclamarem daquela situação degradante, serão denunciados à Polícia Federal. Os patrões adotam ainda uma outra prática que contribui para manter o trabalhador sob seu domínio. Logo no primeiro dia de trabalho, o dono da oficina recolhe os documentos dos imigrantes e os guarda em seu poder. A prática de retenção de documentos é largamente utilizada entre os fazendeiros da região de fronteira agrícola.

Regularização
Todas as medidas preventivas passam por encontrar alternativas de tratamento legal aos imigrantes latino-americanos que vivem no Estado de São Paulo. Há algumas possibilidades, que envolvem mudanças no Estatuto do Estrangeiro e a legalização do trabalho do imigrante. Outras incluem uma espécie de anistia às pequenas oficinas de costura, para que elas possam se legalizar e a seus funcionários. A partir daí, seria possível fazer um acompanhamento da situação.

Parte do processo de combate ao trabalho escravo passa por uma ação de conscientização junto aos consumidores e a identificação da cadeia produtiva e, no caso dos imigrantes latino-americanos, não é diferente. É necessário identificar quem realmente lucra com esse tipo de exploração e alertar o consumidor.

O problema envolvendo o trabalho degradante e escravo de bolivianos e outros imigrantes latino-americanos é bem conhecido entre as autoridades brasileiras. Com o objetivo de combater essa prática foi criada uma força-tarefa formada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), Delegacia Regional do Trabalho (DRT), Polícia Federal (PF) e Ministério da Justiça. Infelizmente, as operações de fiscalização não asseguram qualquer tipo de direito trabalhista ao imigrante, pois ele está em uma situação irregular no Brasil, e também podem levar à deportação do trabalhador.

O Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980) veda aos estrangeiros com visto de turista, temporário ou de trânsito, o exercício de qualquer atividade remunerada. Exceção é feita quando o estrangeiro tem uma comprovação da entidade que o contratou. Como este não é o caso dos imigrantes latino-americanos que vêm trabalhar ilegalmente nas oficinas de costura em São Paulo, o trabalho deles é considerado, pela legislação brasileira, um trabalho ilícito, ilegal. Dessa forma, não recebem qualquer direito trabalhista e não podem reivindicar nada quando a força-tarefa faz uma diligência e liberta os imigrantes.

Os Ministérios do Trabalho, da Justiça e das Relações Exteriores pretendem modificar o Estatuto. O novo texto inova alguns valores ao reconhecer que o estrangeiro não-documentado não é passível de deportação. O tratamento será outro, já que a intenção é dar um visto de permanência de dois anos para que a pessoa possa comprovar, durante esse período, residência e meio lícito de sobrevivência no país.

Enquanto o novo Estatuto do Estrangeiro não entra em vigor, alguns órgãos estudam a implementação de ações paliativas e temporárias. O Ministério do Trabalho e Emprego, por exemplo, analisa a criação de uma portaria que transforme o trabalho do boliviano de ilegal para proibido. A idéia é que o projeto dê ao imigrante uma carteira de trabalho provisória e um tempo para regularizar-se no país. Somente depois desse prazo é que a força-tarefa faria valer a lei, aplicando a multa e determinando a deportação das pessoas que ainda estivessem ilegais. A Pastoral do Migrante, contudo, defende que a carteira de trabalho venha acompanhada de um visto temporário.

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