A Repórter Brasil está sob censura judicial desde o dia 9 de outubro de 2015. Saiba mais.

Trabalho escravo é uma realidade também na cidade de São Paulo

Imigrantes latino-americanos em situação ilegal no Brasil são vítimas de trabalho escravo na maior cidade do país. Bolivianos, paraguaios, peruanos e chilenos compõem um "exército" de mão-de-obra barata e abundante na capital paulista

A novela “América”, veiculada pela Rede Globo, colocou em pauta o martírio dos brasileiros que tentam entrar ilegalmente nos Estados Unidos para trabalhar. Sem entrar no mérito da qualidade técnica ou do enredo da produção, é fato que mais atenção passou a ser dada aos relatos de dezenas de brasileiros barrados e presos na região da fronteira mexicana – a começar pelo principal telejornal da emissora. De repente, o Brasil ficou horrorizado por ver seus filhos sendo mal tratados nas terras além do Rio Grande. Contudo, apesar de não ser tema de novela, a situação dos imigrantes ilegais latino-americanos na cidade de São Paulo é uma realidade mais dolorosa, pois muitas vezes acabam como escravos em oficinas de costuras na região central da capital, como Brás, Bom Retiro e Pari.

Os preços baixos de roupas em ruas como a José Paulino ou a Oriente que tanto atraem os consumidores do varejo e do atacado muitas vezes são obtidos através da redução dos custos no processo de produção. A maior parte dos funcionários utilizados na confecção dessas roupas é composta por imigrantes latino-americanos em situação ilegal no Brasil. Bolivianos, paraguaios, peruanos, chilenos compõem um verdadeiro exército de mão-de-obra barata e abundante em São Paulo. Saem de seus países de origem em busca de uma vida melhor em solo brasileiro, fugindo da miséria. Das comunidades latino-americanas na capital paulista, os bolivianos destacam-se por constituir a mais numerosa. Além disso, encontram-se nas situações mais graves de exploração e degradação do trabalho humano.

Para buscar soluções para essa situação, medidas estão sendo avaliadas por entidades da sociedade civil e governo federal. A Organização Internacional do Trabalho lançará, em breve, um relatório sobre a situação do trabalho escravo no mundo e outro no Brasil. Neste último, é tratado do tema trabalho escravo latino-americano em São Paulo. Além disso, neste ano, a Câmara dos Vereadores instalou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o trabalho escravo no município – predominantemente formado por imigrantes ilegais.

Reunindo-se todas as terças-feiras, às 10h, os vereadores têm menos de dois meses para concluir seus trabalhos. Serão convocados a participar das reuniões o setor de imigrações da Polícia Federal, representantes patronais das confecções, o Ministério Público do Trabalho e a Polícia Civil. O Ministério Público de São Paulo vai acompanhar o andamento das investigações.

De acordo com a relatora Soninha (PT), a CPI tem dois focos de atuação: o primeiro, no sentido de pressionar o governo federal em Brasília para a concessão de anistia aos trabalhadores, agilizar mudanças no Estatuto do Estrangeiro e alterar o tratamento dado ao imigrante ilegal libertado da escravidão. O outro, é inserir a questão urbana nos debates sobre o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, previsto para ser lançado por entidades da sociedade civil, empresas e governo federal em maio.

Estatísticas precárias
As autoridades brasileiras não têm números precisos que permitam quantificar esses trabalhadores. O Centro Pastoral do Migrante – entidade ligada à Igreja Católica que fornece apoio aos imigrantes no país e que é considerada uma das maiores especialistas no tema – estima que existam hoje, na capital paulista, de 600 mil a 700 mil latino-americanos, dos quais 40% em situação irregular. A população total estimada do município de São Paulo em 2004, de acordo com o IBGE, é de 10, 8 milhões de pessoas.

Especificamente para os bolivianos, a Pastoral trabalha com estimativas de 400 mil pessoas (das quais 240 mil já documentadas), sendo que 12 mil estariam em condição de escravidão. Já o Consulado Geral da Bolívia em São Paulo é mais modesto e apresenta cifras menores: calcula que 25,6 mil estejam em situação legal e permanente na capital paulista. A estimativa é feita com base nos números da última anistia concedida no Brasil, em 1998, quando cerca de 7 mil bolivianos regularizaram sua situação no município. A respeito dos imigrantes ilegais, o Consulado não se arrisca a estipular uma quantidade.

A situação socioeconômica na Bolívia hoje é delicada. O país, que tem aproximadamente 8 milhões de habitantes, possui os piores indicadores sociais da América do Sul. De acordo com o ranking mundial de desenvolvimento humano, medido anualmente pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a Bolívia está na 114ª posição de um total de 177 países – números de 2004. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) boliviano é de 0,681. Para se ter uma idéia, o Brasil ocupa a 72ª posição no ranking da PNUD e tem um IDH de 0,775.

Os bolivianos entram no território brasileiro através de cinco portas principais: Corumbá (Mato Grosso do Sul), Cáceres (Mato Grosso), Foz do Iguaçú (Paraná), Guajará-Mirim (Rondônia, por via fluvial) e Manaus (Amazonas, por via fluvial). Aqueles que não conseguem cruzar a fronteira por meios legais – porque não têm documentos ou não querem ou não podem pagar pelo visto – têm de desviar da fiscalização da Polícia Federal. Uma opção é seguir até o Paraguai e aguardar nos chamados “ninhos”. Nestes pequenos apartamentos, em que os coiotes colocam até 40 imigrantes, os bolivianos esperam o momento de poder atravessar a fronteira. Em alguns, a superlotação é tão grande que fica impossível deitar-se para descansar. A situação de higiene também não é das melhores, com um único banheiro atendendo a todos, que chegam a ficar o dia inteiro sem água e comida.

Para atravessar a fronteira do Paraguai com o Brasil em Cidade do Leste/Foz do Iguaçu, a estratégia dos gatos é esperar o momento em que os policiais federais não estejam checando a documentação de todos (o que ocorre quando há muita gente trafegando pela Ponte da Amizade, que liga os dois países, e os policiais não dão conta da tarefa). Do lado brasileiro, um ônibus espera os bolivianos aliciados para levá-los a São Paulo.

Trabalho degradante e escravo
As oficinas funcionam em porões ou locais escondidos, pois a maior parte delas é ilegal, sem permissão para funcionar. E para que suspeitas não sejam levantadas pelos vizinhos, que acabariam alertando a polícia, as máquinas funcionam em lugares fechados, onde o ar não circula e a luz do dia não entra. Para camuflar o barulho das máquinas, música boliviana toca o tempo todo. Os cômodos são divididos por paredes de compensado. Essa é uma estratégia para que os trabalhadores fiquem virados para a parede, sem condições de ver e relacionar-se com o companheiro que trabalha ao lado – o que poderia resultar em mobilização e reivindicação por melhores condições.

Em muitos casos, o dono da firma, quando se ausenta, tranca a porta pelo lado de fora, para que ninguém entre ou saia do recinto. Além disso, os locais não oferecem as mínimas condições de segurança e higiene: a fiação é exposta e traz riscos de choques e incêndios. O valor das três refeições diárias – café da manhã, almoço e jantar, com duração de cerca de 20 minutos cada uma – é descontado do saldo a receber, assim como água, luz e moradia.

Outro ponto que alimenta a manutenção do sistema é a coerção psicológica a que são submetidos os bolivianos. Por estarem, a grande maioria, em situação ilegal no país, sofrem ameaças por parte dos patrões de que, se tentarem fugir ou reclamarem daquela situação degradante, serão denunciados à Polícia Federal. Os patrões adotam ainda uma outra prática que contribui para manter o trabalhador sob seu domínio. Logo no primeiro dia de trabalho, o dono da oficina recolhe os documentos dos imigrantes e os guarda em seu poder. A prática de retenção de documentos é largamente utilizada entre os fazendeiros da região de fronteira agrícola.

Regularização
Todas as medidas preventivas passam por encontrar alternativas de tratamento legal aos imigrantes latino-americanos que vivem no Estado de São Paulo. Há algumas possibilidades, que envolvem mudanças no Estatuto do Estrangeiro e a legalização do trabalho do imigrante. Outras incluem uma espécie de anistia às pequenas oficinas de costura, para que elas possam se legalizar e a seus funcionários. A partir daí, seria possível fazer um acompanhamento da situação.

Parte do processo de combate ao trabalho escravo passa por uma ação de conscientização junto aos consumidores e a identificação da cadeia produtiva e, no caso dos imigrantes latino-americanos, não é diferente. É necessário identificar quem realmente lucra com esse tipo de exploração e alertar o consumidor.

O problema envolvendo o trabalho degradante e escravo de bolivianos e outros imigrantes latino-americanos é bem conhecido entre as autoridades brasileiras. Com o objetivo de combater essa prática foi criada uma força-tarefa formada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), Delegacia Regional do Trabalho (DRT), Polícia Federal (PF) e Ministério da Justiça. Infelizmente, as operações de fiscalização não asseguram qualquer tipo de direito trabalhista ao imigrante, pois ele está em uma situação irregular no Brasil, e também podem levar à deportação do trabalhador.

O Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980) veda aos estrangeiros com visto de turista, temporário ou de trânsito, o exercício de qualquer atividade remunerada. Exceção é feita quando o estrangeiro tem uma comprovação da entidade que o contratou. Como este não é o caso dos imigrantes latino-americanos que vêm trabalhar ilegalmente nas oficinas de costura em São Paulo, o trabalho deles é considerado, pela legislação brasileira, um trabalho ilícito, ilegal. Dessa forma, não recebem qualquer direito trabalhista e não podem reivindicar nada quando a força-tarefa faz uma diligência e liberta os imigrantes.

Os Ministérios do Trabalho, da Justiça e das Relações Exteriores pretendem modificar o Estatuto. O novo texto inova alguns valores ao reconhecer que o estrangeiro não-documentado não é passível de deportação. O tratamento será outro, já que a intenção é dar um visto de permanência de dois anos para que a pessoa possa comprovar, durante esse período, residência e meio lícito de sobrevivência no país.

Enquanto o novo Estatuto do Estrangeiro não entra em vigor, alguns órgãos estudam a implementação de ações paliativas e temporárias. O Ministério do Trabalho e Emprego, por exemplo, analisa a criação de uma portaria que transforme o trabalho do boliviano de ilegal para proibido. A idéia é que o projeto dê ao imigrante uma carteira de trabalho provisória e um tempo para regularizar-se no país. Somente depois desse prazo é que a força-tarefa faria valer a lei, aplicando a multa e determinando a deportação das pessoas que ainda estivessem ilegais. A Pastoral do Migrante, contudo, defende que a carteira de trabalho venha acompanhada de um visto temporário.


Apoie a Repórter Brasil

saiba como

6 Comentários

  1. juliana borsatto

    ta muito legal esse trabalho que alguem fez

  2. Wilson Avelino Gomes

    O que o governo federal tem que fazer imediatamente é tomar atitude e dar igualdade as burocracias internacionais para imigrações, tanto de ida, o quanto para os que vem de fora, principalmente, para os E.Unidos, moro próximo ao Consulado Americano, vejo sempre quando passo por perto e me afronto quando vejo aquele corredor de vamos dizer, iludidos em uma fila para tentar pegar visto e ou retirar o passaporte, porque não esperar internamente e confortável se estão resolvendo uma situação legal. O prédio parece uma fortaleza, tem mais segurança de que a própria casa da Moeda, os Brasileiros é como cachorro dos americanos, vivem no Pais da Realidade, mas a cabeça no Pais da (FANTAZIA).

  3. lea alves de avelar batalha

    Que tristeza saber que isto está acontecendo em nosso pais.Somos hermanos.

  4. Edson Queiroz

    Tenho uma empresa de prestacao de servico (buffet em domicilio) e necessitaria deste trabalho temporario, uma vez que, o mercado nacional esta carente de profissionais e os que tem tem um alto custo; improprio para a absorcao do consumidor final.

  5. EDSON DOMINGUES

    Sou professor de espanhol e gostaria muito de saber especificamente a quantidade de Bolivianos, Peruanos, Paraguaios, Chilenos e outros hispanohablantes que vivem no Brasil no brasil e as localidades onde estão concentrados… Aguardo resposta Obrigado!

  6. Jacintia

    gosty

Trackbacks/Pingbacks

  1. Quantos escravos trabalham pra você? | PapodeHomem - [...] século 21, aqui, no Brasil, o trabalho escravo não está só na manufatura têxtil. Esse é só o exemplo…
  2. Quantos escravos trabalham pra você? | Blog do Mesquita - [...] século 21, aqui, no Brasil, o trabalho escravo não está só na manufatura têxtil. Esse é só o exemplo…
  3. QUANTOS ESCRAVOS TRABALHAM PARA VOCÊ? | ZÉducando - [...] século 21, aqui, no Brasil, o trabalho escravo não está só na manufatura têxtil. Esse é só o exemplo…