Durante nove meses, jornalistas da ONG Repórter Brasil usaram técnicas de apuração para rastrear a cadeia produtiva que une grandes empresas brasileiras a fornecedores que têm ligações com o trabalho escravo. Durante quatro meses, a OIT e o Instituto Ethos negociaram com empresários a adesão ao Pacto Nacional lançado ontem em Brasília. Já há resultados. Um deles: desde janeiro, todos os seis mil fornecedores do Pão de Açúcar assinaram um contrato se comprometendo a não tolerar nas suas relações comerciais qualquer ligação com o trabalho escravo.
Carrefour e Wal-Mart também já estão exigindo a mesma coisa de seus fornecedores. Votorantim Papel e Celulose, Coteminas, os usineiros de açúcar e álcool, Petrobras, Suzano, Belgo Mineira. Um a um, setores e empresas foram aderindo ao pacto lançado ontem na Procuradoria Geral da República na presença de três ministros: Ricardo Berzoini, Patrus Ananias e Nilmário Miranda. O Banco do Brasil aderiu. Decidiu cancelar R$ 100 milhões de empréstimos a 60 empresas que tiveram casos comprovados de trabalho escravo. A Febraban aderiu: decidiu que não dará financiamento a quem estiver na lista suja; aquela lista de 163 empresas nas quais houve flagrantes de equipes do Ministério do Trabalho e depois comprovou-se a existência dessa prática.
Ruth Vilela, que coordena o combate ao problema no Ministério do Trabalho, esteve em operações de libertação de trabalhadores:
— Quando a gente chega se depara com uma cena que nunca viu. Pessoas tratadas como coisas, como propriedade, sem poder sair do local por supostas dividas. O gado é mais bem tratado, tem remédio, veterinário e alojamento melhores.
Ela diz que não se deve confundir o trabalho escravo com o mal remunerado ou informal. O que caracteriza o problema é não poder sair do local e ter sido ludibriado com promessas de pagamentos que se transformam em dívidas. Patrícia Audi, da OIT, diz que o critério para definir trabalho escravo não se confunde com nenhum outro problema trabalhista:
— Há casos de guardas armados impedindo a saída dos trabalhadores.
Na semana passada, uma boa notícia: o Brasil, foi apontado como exemplo pela OIT no combate ao trabalho escravo. Porém existem ainda 25 mil trabalhadores nesta situação, segundo o próprio governo.
O presidente do Instituto Ethos, Oded Grajew, reuniu-se com empresas e associações. Mostrou o rastreamento feito e negociou a adesão ao pacto. A idéia de Oded é que denunciar apenas valeria pouco. Melhor seria costurar o apoio.
Nem todos aderiram, houve quem hostilizasse até a proposta, mas, aos poucos, foi se construindo uma extensa rede de empresas comprometidas com a erradicação desta chaga tão vergonhosa, quanto inacreditável. Hoje os integrantes da lista suja não têm acesso a fundos constitucionais e, se for aprovada a emenda que está na fase final de votação no Congresso, poderão ter suas terras desapropriadas. A partir de agora, eles começarão também a perder seus clientes.
O ator Marcos Winter — que estava lá junto com outros atores da ONG Humanos Direitos, como Chico Diaz — na hora de falar, leu antes a notícia do desmatamento de 26 mil quilômetros quadrados. O que tem a ver uma coisa com a outra? Tudo. Há uma coalizão entre os crimes. Quem escraviza é porque grilou terra pública para desmatar. Fechar os olhos para um problema é concordar com o outro. Consumir o produto sem se perguntar a origem pode ser a forma de viabilizar a existência desses crimes associados.
A Confederação Nacional da Agricultura, CNA, não aderiu ao pacto e está no Supremo Tribunal Federal contra a lista suja. O vice-presidente da CNA, Rodolfo Tavares, garante que a Confederação tem lutado contra o problema e admite que ele existe:
— Nossa divergência é com o fato de que a pessoa é julgada pelo Ministério do Trabalho e não pela Justiça. As empresas estão recebendo pena sem terem tido o direito de defesa e o devido processo legal.
— O Ministério do Trabalho faz um processo administrativo, que exige primeiro auto de infração em que tudo é fotografado e todos os depoimentos tomados. Depois há o julgamento na primeira instância, quando as empresas têm prazo para apresentar sua defesa. Podem recorrer à segunda instância desse processo administrativo. E, se discordarem, podem recorrer à Justiça — afirmou Ruth Vilela, do Ministério do Trabalho.
O vice-presidente da CNA acha que as leis trabalhistas urbanas não podem valer para o campo, e que muitas vezes trabalhadores são levados de outras regiões por decorrência da própria localização do empreendimento:
— E moram em locais cobertos de lona, ou têm condições que se pode dizer inadequadas. No campo se trabalha com sazonalidade e não se deveria exigir as mesmas condições de trabalho da área urbana. Em todo país há essa diferenciação.
Ruth diz que não são exigências descabidas e dá exemplo de situações que viu:
— Trabalhadores que não têm acesso à água potável, que tem que cavar seu próprio poço e usar água enlameada para cozinhar, tomar banho e beber. Não exigimos alojamento de alvenaria, mas eles têm que ser minimamente habitáveis, tem que haver uma fossa coberta que seja. Vimos trabalhadores que se ferem, não são atendidos e perdem membros por isso. Mas principalmente o que caracteriza o trabalho escravo é ele não poder deixar o local.
O que está em jogo neste pacto não é o trabalho informal com salários baixos. É o trabalho escravo. Inadmissível, seja qual for o argumento.