A Convenção n° 29 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1930, define sob o caráter de lei internacional o trabalho forçado como "todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente." A mesma convenção, ratificada por 165 dos 178 países membros da OIT, proíbe este tipo trabalho. Em 1957, o acordo foi complementado pela Convenção para a Abolição do Trabalho Forçado, adotada durante uma época em que esta prática estava crescendo por motivos políticos. Novamente, 163 países se comprometeram a dar fim ao trabalho forçado em seus territórios. Além desses dois instrumentos, a Declaração da OIT sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho compromete todos os Estados a respeitarem e promoverem a abolição do trabalho forçado, mesmo que estes ainda não tenham ratificado as duas convenções.
Apesar disso, 12,3 milhões de pessoas em todo o mundo ainda vivem sob essas condições. É este o número revelado no relatório global divulgado nesta quarta-feira (11), em Brasília, pela organização internacional. Desse total, 9,8 milhões são explorados por indivíduos ou empresas privadas, incluindo 2,4 milhões de pessoas em trabalho forçado como um resultado de tráfico humano. Os 2,5 milhões restantes são obrigados a trabalhar pelo Estado ou por grupos militantes rebeldes. “Uma das tendências reveladas pelo relatório é que a exploração do trabalho forçado acontece mais hoje pelo setor privado do que pelo público. E isso é algo que está crescendo. Atualmente, os agentes privados exploram muito mais a mão-de-obra forçada do que antigamente, pela questão econômica”, disse à Agência Carta Maior a coordenadora nacional do projeto de combate ao trabalho escravo da OIT no Brasil, Patrícia Audi.
O trabalho forçado ocorre quando os trabalhadores são controlados através de privações severas, como a violência física ou o abuso sexual; têm sua liberdade restrita; seus salários ou seus documentos detidos; ou são retidos por meio de uma dívida fraudulenta da qual não podem escapar. Cerca de 43% dos trabalhadores traficados são usados para exploração sexual comercial forçada, 32% das vítimas são usadas para exploração econômica forçada e 25% para uma mistura dos dois fatores ou por razões indeterminadas. Segundo o estudo, os rendimentos do tráfico de trabalho forçado totalizam 31,6 bilhões de dólares. Somente na Europa e nos Estados Unidos, ou seja, nos países industrializados, o lucro com a exploração humana ultrapassa os 15 bilhões de dólares. “São pessoas que vão em busca de condições melhores. Mas não é uma migração simplesmente ilegal. É tráfico com fins de exploração, é aliciamento, transporte recorrendo à ameaça e uso da força e até seqüestro. A pessoa é ludibriada para então ser explorada ou até para ter seus órgãos extraídos”, relata Patrícia.
O relatório mostra ainda que 40% a 50% de todo trabalho forçado são realizados por crianças menores de 18 anos. Mulheres e crianças contabilizam quase todo o comércio sexual forçado e 56% da exploração econômica forçada. Mesmo assim, as formas de combate ao trabalho forçado voltadas especificamente para esta população ainda não muito insipientes. O maior número de trabalho forçado encontra-se na Ásia e na região do Pacífico (77% do total), seguido pela América Latina e o Caribe (11%).
“No mundo inteiro o trabalho forçado tem características fundamentais: a coação das pessoas, que não estão voluntariamente neste trabalho, e, principalmente, a falta de liberdade. Independente das diversas nomenclaturas – aqui no Brasil, por exemplo, chamamos de trabalho escravo – essas características são comuns em todo mundo. Trata-se de uma prática que não respeita países desenvolvidos ou em desenvolvimento; está em todo tipo de economia e em todo lugar”, diz Patrícia. “Este tipo de trabalho não pode ser confundido com trabalho com baixos salários ou realizado em condições precários. A OIT condena e procura combater todas as formas de trabalho não decente. Mas não é disso que estamos falando. Trabalho escravo é uma grande violação dos diretos humanos”, afirma.
Segundo o relatório, há casos que permitem ser denominados de “trabalhos forçados tradicionais”. São, por exemplo, sistemas de trabalho em servidão que estão muito arraigados em algumas zonas da Ásia Meridional; as práticas residuais relacionadas com a escravidão que atualmente se dão em toda a África Ocidental; e a servidão por dívida que afeta principalmente as populações indígenas de alguns países da América Latina e o Brasil como um todo. Aqui, as estimativas apontam para 25 mil pessoas mantidas sob condições análogas às de escravidão, principalmente nos estados amazônicos do Pará e Mato Grosso, oriundas de uma população vítima da exclusão econômica e social. Globalmente, o trabalho forçado está, na maioria das vezes, conectado com a pobreza, a desigualdade e a discriminação, e é incentivado pelo lucro gerado ao custo de trabalhadores desprotegidos.
No entanto, para a OIT, a pobreza não pode justificar a ocorrência do trabalho forçado. A miséria humana é sim um fator de vulnerabilidade, que tem que ser combatido. Mas o estudo mostra que há países pobres que, felizmente, não apresentam vítimas de trabalho escravo. “A principal causa do trabalho forçado ainda é impunidade”, diz Patrícia. Uma legislação inadequada e a falta de um efetivo cumprimento das leis significam que os responsáveis, onde quer que estejam, raramente são condenados ou punidos. Neste clima de impunidade, os ganhos potenciais dos empregadores, agentes e traficantes que fazem uso desta mão-de-obra ultrapassam qualquer riscos que possa ser corrido.
“Mas o quadro está mudando. No Brasil, por exemplo, há muita coisa importante acontecendo, como as ações civis públicas por danos morais e a publicação da “lista suja”. Países como Gana alteraram seu Código Penal para punir esta prática. Em países desenvolvidos houve um recrudescimento em relação às questões de tráfico. Há todo um esforço mundial neste sentido”, pondera a representante da OIT.
Ação junto aos governos
O trabalho forçado constitui um tema delicado e os governos se mostram as vezes receosos para investigar e reconhecer a existência deste fen&oc
irc;meno dentro de suas fronteiras. Por isso, a Organização Internacional do Trabalho vem desenvolvendo ações específicas junto aos países na tentativa de erradicar esta prática. Desde o lançamento do primeiro Relatório Global em 2001, a avaliação é a de que há sinais encorajadores de comprometimento dos Estados-membros da OIT, sindicatos, organizações trabalhistas e da comunidade internacional no sentido de atacar o trabalho forçado. Por isso, a organização vê os próximos quatro anos como cruciais para a luta contra o trabalho forçado moderno. “Com a determinação para encarar o crime e a corrupção, e mediante a consignação dos recursos necessários, os Estados membros e a comunidade internacional poderão realizar progressos consideráveis e tangíveis até a erradicação das diversas formas de trabalho forçado”, diz o documento. Uma das mensagens chaves que se pretende transmitir no informe é que, por mais audaz que seja, o objetivo de erradicar o trabalho forçado pode ser alcançado.
A última parte do estudo lançado nesta quarta-feira propõe a criação de uma Aliança Global contra o Trabalho Forçado, com o apoio de recursos adequados e sob a liderança e com a cooperação técnica da OIT. O projeto se daria em torno de programas já realizados em países como o Brasil e o Paquistão – que integram o Programa de Ação Especial para combater o Trabalho Forçado, em operação desde 2002 –, citados como exemplos positivos no combate ao trabalho escravo, e com a implementação e ratificação das convenções internacionais.
No Brasil, por exemplo, o projeto visa combater as práticas de aliciamento abusivo que conduzem ao trabalho forçado particularmente na agricultura e pecuária. Auxilia a fortalecer e a coordenar as atividades das agências governamentais e outros parceiros importantes no combate ao trabalho forçado e na prevenção para que os trabalhadores resgatados não caiam novamente na exploração. E dá ênfase na criação de um mecanismo efetivo para o melhor cumprimento das leis, incluindo sanções apropriadas para os exploradores.
No Paquistão, o trabalho tem sido focado na reabilitação dos resgatados ou famílias Hari fugitivas do trabalho forçado por dívida, que vivem em sete campos dentro e no entorno de Hyderabad, na província de Sindh. Um esquema experimental de arrendamento de terra vai permitir que os beneficiários sejam donos de seus lotes e tenham, com mais facilidade, acesso aos seus direitos. Outras atividades incluem uma gama de programas de treinamento para funcionários públicos e do Judiciário, treinamentos em níveis locais dos Comitês de Vigilância, e um serviço-piloto de assistência legal para os trabalhadores forçados por dívida, que buscam assistência através dos tribunais.
A OIT também desenvolve ações de combate ao trabalho escravo no Sudeste Asiático (Hong Kong, Malásia, e Cingapura), na China, Índia, Nepal, Gana, Nigéria e no Leste Europeu (Albânia, Moldóvia e Ucrânia). “Temos a certeza de que uma ação efetiva de cooperação técnica pode fazer diferença. Todas as iniciativas no Brasil estão sendo impulsionadas com o apoio da OIT, que começou seu projeto em abril de 2002. Esta experiência – que não deve ser copiada porque é preciso respeitar as características de cada local – pode ser difundida como boa prática nos demais países do mundo”, conclui Patrícia Audi.