Pobreza tem sexo

Em todo o Brasil, no campo e na cidade, cresce cada vez mais o número de lares sustentados exclusivamente por mulheres. Elas, no entanto, continuam ganhando menos que os homens e enfrentando quase sempre sozinhas o desafio de conciliar maternidade, emprego e atividades domésticas. Nesse contexto, desenvolve-se uma nova realidade encarada como um dos principais desafios deste milênio para os formuladores de políticas públicas: a feminização da pobreza
Texto e Fotos: André Campos
 22/06/2005

Fim de tarde, dezenas de mulheres se aglomeram na porta da Creche Lar Criança Feliz, zona sul da capital paulista. Entre elas está Ivonete do Carmo, que aguarda a saída de Igo, seu único filho. Baiana de 32 anos, Ivonete é mãe solteira, assim como grande parte das outras mulheres ali presentes. Às quatro e meia, Igo aparece na porta, os dois se abraçam. É hora de ir para casa.

Mas, para ela, o fim do dia ainda está longe. São duas horas e meia de ônibus até o Jardim Rosana, periferia da zona sul da cidade. Em casa, ainda há todo o serviço doméstico por fazer. E, lá pelas nove da noite, quando finalmente termina suas atividades, Ivonete vai direto dormir, exausta.

 Ivonete, mãe solteira: trabalho para completar a renda reduziu folga a dois dias por mês

No dia seguinte, a rotina recomeça cedo, às cinco da manhã. Mais duas horas e meia no ônibus lotado até a creche. Depois de deixar seu filho, ela dirige-se a uma residência próxima, onde trabalha como empregada doméstica. Ganha aproximadamente um salário mínimo e meio. Sustenta a si e ao filho sem auxílio do pai ou de qualquer outra pessoa. No fim de semana, ainda realiza pequenos trabalhos como manicure e faxineira para complementar a renda. Em média, tira apenas dois dias de folga por mês.

Apesar das dificuldades, ela conta já ter vivido dias piores. Devido à carência de creches públicas, não faz muito tempo que Ivonete gastava quase metade dos seus rendimentos para deixar Igo em uma escola particular. "Eu ia chorando até às creches pedir uma vaga para o meu filho", lembra.

Histórias como essa, de mulheres chefes de família que fazem o possível e o impossível para conciliar maternidade, atividade doméstica e vida profissional, são cada vez mais comuns no dia-a-dia do Brasil. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 28,8% das famílias brasileiras eram encabeçadas em 2003 por pessoas do sexo feminino, índice que cresceu 23% nos últimos dez anos.

O aumento da responsabilidade financeira das mulheres, no entanto, ainda contrasta com os grandes problemas enfrentados por elas no mercado de trabalho. Soma-se a isso uma carência de serviços públicos como creches, restaurantes e lavanderias comunitárias, além de uma cultura machista que ainda joga nos ombros da mulher toda a responsabilidade pela vida familiar e doméstica, dificultando seu crescimento profissional. Nesse caldeirão de fatores, desenvolve-se em silêncio um fenômeno econômico e social que é encarado, no Brasil e em nível internacional, como um dos principais desafios deste milênio para os formuladores de políticas públicas: a feminização da pobreza.

Desvantagem no mercado

 Mercado informal e empregos precários atingem mais mulheres que homens (foto: Carina Burigo)

Contrariando o que ocorre na maioria dos países, a mulher brasileira possui, de maneira geral, nível de escolaridade superior ao do homem. Uma radiografia das estatísticas sobre o mercado de trabalho, no entanto, mostra que tal vantagem não corresponde a maior valorização dentro do mundo profissional. Muito pelo contrário: atualmente, o rendimento médio das mulheres ocupadas no Brasil, segundo o IBGE, não chega a 70% dos ganhos masculinos. Para piorar, são elas as mais atingidas pelo desemprego e as que mais se concentram em empregos precários e no mercado informal.

Para militantes do movimento feminista, a desvalorização da força de trabalho da mulher é fruto de uma realidade cruel, em que mitos e preconceitos ainda formam barreiras invisíveis para sua ascensão profissional. Eline Jonas, coordenadora-geral da União Brasileira de Mulheres (UBM), exemplifica: "Imaginemos uma promoção dentro de uma empresa, com quatro mulheres e um homem disputando a vaga. É muito comum o homem ser promovido, com o argumento de que ele é um chefe de família".
Situações como essa também revelam por que é tão inexpressivo o número de mulheres em posições de comando das empresas do país. A pesquisa Perfil Social, Racial e de Gênero das 500 Maiores Empresas do Brasil e suas Ações Afirmativas, realizada pelo Instituto Ethos em 2003, mostra que 58% das grandes companhias brasileiras não têm nenhuma mulher nos cargos diretivos. Na média geral da amostra, apenas 9% dos postos de direção são ocupados por mulheres, dado bastante acanhado diante da participação delas nessas empresas.

 Eline Jonas, presidente da UBM: 'mitos prejudicam mulheres no mundo profissional' (Foto:Rita Polli)

Segundo Angela Fontes, subsecretária de planejamento de políticas para as mulheres da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, órgão vinculado diretamente à Presidência da República, uma outra falácia muito difundida é a de que contratar mulheres representa custos maiores para empregadores devido a direitos garantidos por lei como a licença-maternidade. "Estudo recente da Organização Internacional do Trabalho (OIT) mostra que os custos são muito pequenos, pois é a previdência que paga a maioria desses encargos", afirma. Em março deste ano, foi lançada pela OIT em Brasília a publicação Questionando um Mito: Custos do Trabalho de Homens e Mulheres. Resultado de pesquisas em cinco países da América Latina, entre eles o Brasil, o estudo revela que, na média, os custos para o empregador associados à proteção da maternidade e ao cuidado infantil representam menos de 2% da remuneração bruta mensal feminina.

A concentração da mão-de-obra feminina em determinados guetos profissionais, como as atividades de costura ou relacionadas ao cuidado de crianças e doentes, também colabora para a construção desse quadro negativo. Em geral, as mulheres tendem a ocupar espaços de trabalho pouco valorizados socialmente (recepção, telefonia, secretariado) ou cuja importância não se traduz em boas remunerações, a exemplo das professoras de educação básica.

O mais significativo desses guetos é, de longe, o emprego doméstico. A categoria conta, atualmente, com cerca de 6 milhões de integrantes, quase 20% da ocupação feminina em todo o país. Sua importância dentro
do universo trabalhista da mulher, no entanto, contrasta com a baixa remuneração e as precárias condições laborais e de proteção social enfrentadas pelas profissionais. Para a presidente da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), Creuza Maria Oliveira, esse tipo de emprego ainda guarda resquícios da relação casa-grande e senzala. "Cerca de 80% das empregadas domésticas trabalham sem carteira assinada, e boa parte delas ganha salários absurdamente menores do que o mínimo garantido pela Constituição", denuncia. Na busca pela equiparação legal da categoria aos demais empregos formais, militantes feministas defendem a aprovação do projeto de lei 1.626/89, que obriga o patrão a depositar o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).

A questão do emprego doméstico foi um dos temas abordados pela Comissão Externa da Feminização da Pobreza, que funcionou até o ano passado na Câmara dos Deputados com o objetivo de fazer um diagnóstico da situação e recomendar ações futuras. Entre os diversos projetos destacados no relatório final, está a proposta de emenda constitucional (PEC) 385/2001, que visa conceder aposentadoria de um salário mínimo a donas-de-casa de baixa renda com mais de 60 anos, independentemente de contribuição.

Segundo a relatora da Comissão Externa e autora da PEC, deputada federal Luci Choinacki (PT-SC), a aprovação da proposta beneficiaria cerca de 1 milhão de mulheres.

 A dep. federal Luci Choinacki defende salário mínimo para dona-de-casa de baixa renda (Foto:Salú Parente)

Luci ressalta que são elas que absorvem tarefas onde o Estado não chega, e defende a criação de mecanismos que reconheçam e recompensem seu trabalho na esfera da reprodução social – expressão que designa as tarefas domésticas, cuidado com as crianças, enfermos e idosos do grupo familiar. "O Estado brasileiro encara essas ocupações – não remuneradas – como uma obrigação feminina. É necessário mudar nosso conceito de trabalho, de modo a incluí-las", diz a deputada.

A idéia, no entanto, é motivo de controvérsia mesmo entre defensores dos direitos da mulher, e mostra como pode ser movediço o território que separa a garantia de direitos femininos e a reafirmação de velhos preconceitos da sociedade patriarcal. "É preciso cuidado, pois, com idéias desse tipo, existe o risco de cristalizar-se a idéia de que a mulher é a única responsável pela realização dessas atividades", questiona Angela Fontes.

O sistema previdenciário é considerado um dos pontos centrais nas discussões sobre a feminização da pobreza no país. O fato de a maior parte da mão-de-obra feminina estar ocupada no mercado informal, assim como o de sua participação no mercado de trabalho ser intermitente em razão de suas atividades na esfera da reprodução social, são tidos como fatores de exclusão do sistema. Entidades feministas reivindicam a implantação de políticas para incorporar famílias que atuam na informalidade, e que considerem o tempo destinado ao trabalho reprodutivo para o acesso aos benefícios.

Muito além da aprovação de novas leis, pessoas engajadas na defesa dos direitos da mulher lutam pelo cumprimento de conquistas já alcançadas e constantemente desrespeitadas no país. Diversas empresas ainda exigem exame de gravidez ou atestado de esterilização para contratar mulheres, prática expressamente proibida pela legislação. Além disso, entidades feministas denunciam o constante desrespeito a garantias como o auxílio-creche e a licença-maternidade. "É necessário que as empresas sejam fiscalizadas e punidas, mas também defendemos políticas de estímulo para aquelas que cumprem a legislação", afirma Eline Jonas. Em setembro de 2004, o Instituto Ethos, ONG cuja proposta é estimular empresas na gestão dos negócios de forma socialmente responsável, lançou a publicação O Compromisso das Empresas Com a Valorização da Mulher. Ela oferece subsídios para que as organizações brasileiras incorporem políticas de promoção da eqüidade entre os gêneros em suas práticas de responsabilidade social.

Empresa química localizada no interior de São Paulo, a Fersol é considerada referência na promoção de políticas para a valorização da mulher dentro do mercado de trabalho. Entre seus cerca de 350 funcionários, 63% são do sexo feminino, proporção que se mantém nos cargos de chefia e de gerência.

 Michael Haradom, da Fersol: 'mulher é mais organizada e dedicada'

A companhia adaptou sua linha de produção para que elas pudessem ocupar cargos tradicionalmente masculinos, e oferece a seus funcionários políticas de licença-maternidade e auxílio-creche mais abrangentes do que o exigido pela lei.

Contrariando o discurso de que contratar mulheres é caro devido aos encargos da maternidade, Michael Haradom, diretor presidente da Fersol, afirma que o grande número de nascimentos não representa um impacto significativo na folha de pagamentos. Além disso, diz obter diversos benefícios por investir em mão-de-obra feminina. "Temos observado que a mulher é, no geral, mais organizada, limpa e dedicada, talvez mesmo por ter menos oportunidades no mercado. E é vantajoso investir na capacitação delas a médio e longo prazo, porque as chances de uma mulher permanecer no emprego são maiores do que as de um homem."

Pobreza no campo

No Brasil, o quadro de empobrecimento das mulheres extrapola os limites das cidades e atinge em cheio a vida de milhões de trabalhadoras rurais. A questão do acesso à terra, principal fonte de conflitos sociais no campo, é caracterizada por exclusão ainda maior no caso da mulher. Uma estimativa grosseira, elaborada a partir do censo da reforma agrária de 1996, revela que a participação feminina no total de assentados em toda a história do país era de apenas 12%. Estudos derivados do censo agrícola de 1995 mostram que o número de proprietárias de terra era ainda muito menor.

Buscando reverter esse panorama, cerca de 40 mil trabalhadoras rurais foram a Brasília, em agosto de 2003, realizar a Marcha das Margaridas, manifestação que exigiu maior inserção feminina nas políticas de reforma agrária do governo, entre outras reivindicações. Atendendo a
um desejo histórico das mulheres do campo, o governo federal emitiu portaria, dois meses depois, que torna obrigatória a titulação conjunta de terras da reforma agrária no caso de casamentos ou de uniões estáveis.

 Margaridas foram à Brasília exigir mais inserção feminina na reforma agrária (Foto:Rita Polli)

Outra conquista recente foi a criação, através do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), de uma linha de crédito voltada especificamente ao público feminino. O Pronaf Mulher disponibilizará R$ 1,2 bilhão na safra 2004/2005. Historicamente, apenas 10% do crédito rural é destinado às mulheres. Há ainda, no entanto, grandes entraves na apropriação desses recursos, devido à falta de divulgação do serviço, ao despreparo das agências bancárias para cumprir as determinações que garantem o acesso a ele e à dificuldade entre as mulheres de conseguir os documentos necessários.

A ausência de documentação, um problema crônico no mundo rural brasileiro, atinge com especial ênfase as mulheres, fato que colabora para a invisibilidade das funções femininas e dificulta o acesso a benefícios como a aposentadoria rural, garantida a todos os que provem ter trabalhado 180 meses no campo. "Muitas mulheres não têm nem documento próprio, RG e CPF, imagine então algo que comprove atividade profissional", questiona Maria de Fátima Rodrigues, secretária de Política Social da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag). "Ainda mais porque, normalmente, era o companheiro delas que ia ao banco, que possuía carteira de associação, esse tipo de coisa."

Maria de Fátima Rodrigues ressalta problema da falta de documentação (Foto:César Ramos)

Sujeitas a dupla discriminação, racial e de gênero, as mulheres negras também constituem um capítulo especial nas discussões sobre a feminização da pobreza. Os últimos dados do IBGE dão a dimensão do abismo entre elas e o restante da sociedade: o rendimento médio mensal de todos os trabalhos realizados por mulheres pretas e pardas – a terminologia é do próprio IBGE – é equivalente a apenas 53% do das mulheres brancas e 35% do dos homens brancos.

Márcia Lima, pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e colaboradora do Geledés – Instituto da Mulher Negra, denuncia a discriminação dentro do mercado e afirma desconhecer a existência de uma política pública vigente que trate do tema. "O termo boa aparência, por exemplo, era uma forma velada de discriminação racial", diz. "Ele foi proibido em anúncios de emprego, mas não adiantou muito, pois agora eles pedem boa apresentação." Ela acredita que algumas políticas amplas na área de trabalho podem favorecer a população preta e parda. "Nenhuma política vai inserir, num curto espaço de tempo, as empregadas domésticas, que são maioria negra, em outra categoria ocupacional", raciocina. "Portanto, melhorar as condições dessa ocupação já pode ser um avanço."

Vitórias políticas

Em resposta aos grandes desafios que se impõem no combate à feminização da pobreza, as mulheres brasileiras podem ao menos comemorar a conquista recente de espaços inéditos voltados à formulação de políticas que levem em conta suas reivindicações. Em 2003, foi criada a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), órgão com status de ministério vinculado diretamente à presidência da República. No final de 2003, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou lei que instituiu 2004 como o Ano da Mulher no país, iniciativa que impulsionou diversas atividades destinadas a estabelecer condições de igualdade para a inserção feminina na sociedade.

Como resultado de articulações realizadas no Ano da Mulher, a SPM apresentou, em dezembro de 2004, o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, que reúne 198 ações a ser desenvolvidas pelo governo nos próximos três anos. Com um capítulo dedicado à autonomia e à igualdade da mulher dentro do mercado de trabalho, a proposta inclui metas como a elevação em 5,2% da taxa de atividade das mulheres na população economicamente ativa (PEA) até 2007 e a concessão de crédito a 400 mil trabalhadoras rurais entre 2005 e 2006.

 Plano Nacional de Políticas para as Mulheres prevê 198 ações nos próximos três anos (Foto:Rita Polli)

A SPM pretende agora dar atenção especial à integração de todas as esferas governamentais para a execução do plano. "Sabemos que, para que o Plano traga resultados efetivos de melhoria das condições de vida das mulheres brasileiras, ele precisa ser abraçado pelos executivos estaduais e municipais", afirma a ministra Nilcéa Freire, à frente da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres.

Apesar da conquista de novos espaços políticos, as mulheres ainda são minoria em todos os níveis de governo no Brasil. Nas eleições de 2002, apenas 8,6% das cadeiras da Câmara dos Deputados foram preenchidas por mulheres. Segundo o relatório "A Democracia na América Latina", divulgado em 2004 pela Organização das Nações Unidas (ONU), num ranking de 18 nações da América Latina, o Brasil perde apenas para a Guatemala, cuja representação feminina foi de 8,2% nas eleições de 2003, e para Honduras, que em 2001 elegeu mulheres para 5,5% das cadeiras. São números sensivelmente menores que os de países como Suécia (45,3%) e Noruega (38,2%), considerados dos mais igualitários no que diz respeito a direitos e oportunidades entre os sexos. E também, não por acaso, os dois que encabeçam a lista dos melhores índices de desenvolvimento humano (IDH) do planeta.

 Para Nilc&eacute
;a Freire, melhorar vida da mulher é beneficiar a sociedade. (Foto:Paula Azevedo)

Pesquisas sobre a desigualdade de gênero no mercado de trabalho mostram que, eliminando a discriminação nas ocupações e nos salários e benefícios, haverá aumento não apenas na renda das mulheres, mas também na do próprio país. Nas palavras de Nilcéa Freire: "Quando uma mulher cria sua empresa, ela gera empregos. Quando mudamos para melhor a vida de uma mulher, a de sua família também melhora. Quando uma mãe tem seus anseios reconhecidos, os maiores beneficiados são seus filhos".

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