No ano 2000, a convite do governo nacional, o relator das Nações Unidas sobre tortura, Nigel Rodley, esteve no Brasil e visitou carceragens policiais, penitenciárias e centros de detenção para meninos infratores. A partir de conversas com testemunhas do tratamento dispensado aos detentos nestes estabelecimentos, representantes de organizações não governamentais e autoridades, divulgou um relatório onde qualificava a prática da tortura como generalizada e sistemática no país. O governo brasileiro respondeu com agilidade, lançando o Plano Nacional contra a Tortura e outras medidas destinadas a resolver a problemática. Em 2003, motivadas pela inquietude de saber quais medidas concretas recomendadas pelo relator tinham sido colocadas em práticas, várias organizações de direitos humanos lançaram um outro estudo, comparativo, em que analisavam o quanto o combate à tortura tinha avançado no país. A conclusão foi negativa (leia matéria “Prática da tortura continua sistemática nos presídios”).
Hoje, cinco anos após a visita que originou esses relatórios, a Comissão da ONU contra a tortura volta mais uma vez ao Brasil. Desde a última semana, representantes das Nações Unidas têm visitado instituições acusadas pela sociedade civil de serem palco de tortura e outros tratamentos desumanos. Convidados pelo governo brasileiro, eles têm liberdade pra entrar em toda e qualquer instituição a qualquer hora, sem aviso prévio. Na semana passada, depois de uma reunião com entidades de direitos humanos em São Paulo em que recebeu indicações de locais em que prática da tortura se mostrava mais crítica, a comissão visitou o presídio de Guarulhos, o 39o DP, que fica na zona norte da capital – onde encontraram os detentos numa situação de superlotação e sob risco de saúde, devido às condições higiênicas –, e unidades da Febem no complexo da Vila Maria – onde, há 15 dias, os jovens internos haviam apanhado brutalmente do Grupo de Intervenção Rápida (GIR); alguns apresentavam, inclusive, marcas de bala de borracha.
“Antes de divulgar oficialmente o relatório de sua missão, o comitê da ONU não pode dar declarações sobre o que viu em sua visita”, explica a socióloga Beatriz Affonso, do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil), que se reuniu com a comissão internacional neste final de semana, no Rio de Janeiro. Segundo ela, as informações são colhidas in loco, e ainda sigilosas. À ONU, depois, cabe decidir se há motivos acionar ou não o Estado brasileiro em função da situação relatada. “Mas, se vieram ao Brasil, é porque consideram que o nosso governo ainda não tem nenhuma política eficiente de combate à tortura. Desde a vinda do relator da ONU em 2000, as Nações Unidas receberam informações dispersas sobre o que acontece no país. Se resolveram que estava na hora de voltar, é porque perceberam que muita coisa ainda continuava como antes”, acredita Beatriz.
A opinião é compartilhada por Antonio Maffezoli, presidente do Sindicato dos Procuradores do Estado de São Paulo e membro do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana. Na sua avaliação, a situação pouco mudou nos últimos cinco anos. “Tentando não ser pessimista, hoje há processos de apuração das denúncias de tortura e uma ou outra sentença de condenação. Mas isso é muito pouco dentro de um contexto em que ao Estado precisa mudar sua postura. Mesmo que a Justiça fosse a melhor possível, que o Ministério Público e os órgãos de investigação conseguissem apurar todas as denúncias e punir os culpados, não se pode conviver com a tortura pra depois punir quem a pratica. O Estado brasileiro ainda utiliza a tortura como meio de produção de provas e de contenção disciplinar. Isso não mudou”, afirma o procurador.
A razão, na visão dos defensores de direitos humanos, é simples: para conseguir informações, continua sendo mais fácil usar a força do que investir na construção de um sistema de investigações e de inteligência policial; o mesmo vale para conter detentos no sistema prisional ou nas unidades da Febem. É mais barato e menos complexo usar da tortura do que desenvolver um sistema de ressocialização, baseado em instalações seguras, técnicos capacitados, atendimento psicológico e educacional, atividades profissionalizantes.
“E é mais fácil também porque não há uma resistência ou repulsa da sociedade em relação a este tipo de tratamento dispensado às pessoas nos presídios e na Febem. Há um entendimento médio na sociedade de que bandido merece isso. Então fica fácil para os governos manterem esta lógica”, argumenta Maffezoli. “Em relação à Febem, especificamente, nesses cinco anos, o mesmo tipo de prática de agressão se repete periodicamente. Não houve nenhum avanço na maneira como o governo de São Paulo trata os jovens e na utilização da força para a manutenção da disciplina. Na semana que vem, o problema vai ser nas unidades da Raposo Tavares; na outra, na Vila Maria. Em paralelo, o governador diz que vai construir outras unidades com capacidade para 150 adolescentes, quando já sabemos que os internatos da Febem para 70 jovens não têm rebelião, porque ali se consegue dar atenção especial aos jovens, com atividade educacional e profissionalizante para todos”, pondera.
Tortura sistemática
Na semana em que a Comissão da ONU contra a tortura visitou a Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor, o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana encontrou os adolescentes da Unidade de Internação 1, no complexo do Tatuapé, em regime de “tranca” – que acontece como forma de castigo depois de alguma tentativa de rebelião. Segundo o relato dos internos, eles haviam se rebelado quando souberam que os adolescentes da ala vizinha haviam apanhado gratuitamente. O movimento foi contido com a entrada do GIR, que teria agredido os jovens mesmo depois de todos já estarem controlados.
“Quando se entregam, os jovens vão para o pátio, tiram a roupa, sentam no chão e abraçam os joelhos. Mesmo depois disso, eles tomaram socos, pontapés e cacetadas nas costas e na cabeça. Alguns continuaram recebendo essas agressões no voltar para as selas. Vários ainda apresentavam marcas, vergões nas costas, cortes na cabeça e marcas de bala de borracha disparadas a curta distância. Eram machucados bem feios. Desde então, estavam trancados o tempo todo, sem nenhuma atividade”, conta o promotor.
Até a vinda do relator da ONU ao Brasil no ano 2000, não havia nenhuma denúncia criminal contra funcionários da Febem pela prática de tortura, e o governo do Estado de São Paulo seguia negando sistematicamente a violação dos direitos humanos dentro de suas unidades. De lá pra lá, segundo dados da Vara da Infância e da Juventude de São Paulo, houve 16 denúncias criminais, envolvendo cerca de 220 funcionários. Em 2003, foram 64 inquéritos requisitados pela Promotoria da Infância e Juventude. Em 2004, 87. E até agora, em 2005, 46.
“Trata-se de uma produção que tem virado ações penais com gente processada e condenada. Se pensarmos que, em 1999, tínhamos os complexos de Tatuapé e de Imigrantes e que agora temos 16 unidades fora da capital, isso é um ganho, mesmo que não estejamos trabalhando no modelo mais adequado”, acredita Wilson Ricardo Coelho Tafner, promotor da Infância e da Juventude de São Paulo.
Para ele, a pressão internacional resultante da visita de uma comissão da ONU ao país tem resultados positivos, e serve para trazer o problema à tona, para o questionamento da sociedade. Depois da vinda de Nigel Rodley ao país, a Anistia Internacional publicou um relatório intitulado “Waste of Lifes” (Desperdício de Vidas) somente sobre a Febem. Foi o primeiro estudo da organização acerca de uma instituição específica de um país. A partir daí, a Anistia já publicou vários relatórios sobre unidades da Febem-SP.
Da Agência Carta Maior