Ainda não foi constituído um sistema de educação que atenda às demandas, expectativas e necessidades educacionais dos povos indígenas, embora esteja garantido a eles na legislação brasileira o direito a um ensino específico. Essa foi a principal constatação da relatora nacional do direito à educação, Edla Soares, a partir de encontro, na terça-feira (19), com representantes de povos indígenas de Pernambuco, Bahia, Ceará, Alagoas e Paraíba, e de organizações não governamentais ligadas ao movimento indigenista, para recolher informações sobre as violações do direito desses povos a uma educação de qualidade específica, diferenciada e intercultural. A partir de tais denúncias, a relatoria vai realizar visitas in loco para identificar casos emblemáticos da situação da educação dos povos indígenas e fazer recomendações para o governo brasileiro baseando-se nas deficiências encontradas.
Uma das principais reivindicações apresentadas à relatora é a regulamentação da carreira de professor indígena e de outros profissionais ligados a essa modalidade de educação. Eles exigem formação e concurso público específicos para os educadores indígenas, que atualmente são admitidos via contrato temporário, e não é raro terem seus pagamentos atrasados por diversos meses. Vários estados ainda não contam com resolução do Conselho Estadual de Educação que regularize as escolas indígenas e elas sequer são reconhecidas formalmente.
O direito a um currículo específico, que leve em conta a cultura dos povos indígenas, é outro direito que não vem sendo respeitado no Brasil. Apesar de estar previsto na Constituição de 1988, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1996, e na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais, ratificada pelo Brasil em 2002, ainda há muita dificuldade para convencer as secretarias estaduais da validade dessa demanda. Um exemplo disso é a exigência de que esses povos obedeçam a um calendário escolar pré-estabelecido, quando querem um calendário diferenciado que respeite suas particularidades culturais e econômicas. Para os índios da etnia Funi-ô, que vivem em Pernambuco, por exemplo, as férias escolares não deveriam ser de dezembro a fevereiro, mas sim entre setembro e dezembro, quando ocorre sua principal festa religiosa e as aulas acabam parando inevitavelmente.
Outro problema é a ausência de iniciativas que favoreçam a gestão participativa dos povos indígenas na elaboração e monitoramento de políticas públicas voltadas para o desenvolvimento de uma proposta pedagógica diferenciada, ainda que a Convenção 169 da OIT assegure a esses grupos étnicos instâncias em que eles possam decidir sobre essas políticas. Em Pernambuco, por exemplo, alguns povos propuseram a criação de um conselho de educação escolar indígena, com representantes de cada etnia do estado, do governo estadual e da sociedade civil, para deliberar sobre as políticas voltadas a esses grupos, mas ainda não conseguiram garantir e existência desse espaço de participação.
Para além dessas dificuldades específicas, a situação da educação escolar indígena, em muitos aspectos, é bastante semelhante à das escolas brasileiras no meio rural: problemas de infra-estrutura, falta de material, deficiência na formação dos professores, ausência de proposta pedagógica adequada e de políticas de universalização do acesso às séries finais do ensino fundamental e às do ensino médio.
“Alagoas, Ceará e Bahia foram escolhidos porque apresentam de forma acentuada os problemas relatados e não têm iniciativas nesse sentido”, explica a relatora Edla Soares. A decisão foi tomada com a participação de representantes do povo Tapeba, do Ceará, Tuxá, da Bahia, Xukuru, de Pernambuco, Potiguara da Paraíba, e Wassu, de Alagoas, e da Associação Nacional de Ação Indigenista (Anai), do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e do Centro de Cultura Luiz Freire.
A relatoria nacional costuma trabalhar com casos emblemáticos, selecionados durante as missões, que sirvam para exemplificar a situação encontrada no país. “Mas os indígenas sugeriram que fosse considerado o conjunto, que a relatoria fizesse uma leitura dos estados nordestinos como um todo, identificando os elementos comuns, para apresentar recomendações”, conta Edla. A viabilidade da proposta ainda será estudada.
Avanço só no papel
A legislação brasileira sobre o assunto é considerada bastante vasta e avançada. A Constituição Federal de 1988 e a LDB, de 1996, garantem especificamente aos povos indígenas o direito a um currículo específico. Na LDB, também está assegurada uma educação escolar bilíngüe e intercultural aos indígenas, com o objetivo de recuperar suas memórias históricas, reafirmar suas identidades étnicas e valorizar suas línguas e ciências. Além de prever programas de formação de pessoal especializados, destinados à educação escolar nas comunidades indígenas, currículos e programas específicos, neles incluindo os conteúdos culturais correspondentes às respectivas comunidades, e material didático específico e diferenciado.
“O problema é que, quando vai executar, há uma grande distância do que está previsto na lei. As secretarias estaduais não conseguem lidar com essas especificidades, elas não respeitam ou não sabem o que é realmente um currículo intercultural”, afirma Eliene Amorim, coordenadora do programa de educação do Centro de Cultura Luiz Freire, organização não governamental pernambucana que vem trabalhando com a educação escolar indígena no estado há 15 anos.
Da Agência Carta Maior