Demarcação é moeda de troca com aliados, dizem indígenas

Documento do Fórum em Defesa dos Direitos Indígenas diz que demarcações de terras indígenas estão cada vez mais lentas. Funai argumenta que processos estão avançando, mas reconhece atraso
Por Verena Glass
 17/08/2005

Um balanço das ações do Estado referentes à questão indígena – em especial o reconhecimento de territórios de vários povos que enfrentam situação de conflito -, divulgado terça-feira (16) em um documento do Fórum em Defesa dos Direitos Indígenas (FDDI), acusa o governo, através do Ministério da Justiça e da Funai, de promover a paralisação dos processos demarcatórios e de usar um direito constitucional dos povos indígenas como moeda de troca com a sua base aliada.

Depois de mobilizar dezenas de índios em Brasília no chamado Abril Indígena e de uma série de conversas com o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, o FDDI afirma que, ao invés de agilizar o processo de reconhecimento de suas terras, o ministério está promovendo um retraso burocrático que paralisou o reconhecimento de 29 terras indígenas, entre as quais as 14 apresentadas em abril ao ministro como de alta prioridade para o movimento.

“O Ministério da Justiça, ao contrário do que se espera, tem retardado as providências administrativas para a demarcação das terras indígenas, tornando prática comum a devolução dos procedimentos à Funai, como nos casos das terras Manoki (MT), Morro dos Cavalos (SC), Toldo Imbu (SC), Balaio (AM), Pitaguary (CE) e Kariri-Xokó (AL). Como conseqüência assistimos a uma grave redução do número de expedição de Portarias Declaratórias, o pior desempenho dentre os últimos governos. Em 2005, apenas uma terra foi declarada pelo Ministério da Justiça, Yvy Katú (MS)”, diz o documento, que também afirma que “a Funai tem reduzido o número de Grupos Técnicos (GT) destinados à identificação e delimitação das terras indígenas, bem como a publicação de resumos de relatórios de identificação”.

Por outro lado, as lideranças indígenas também se dizem contrariadas com afirmações do presidente da Funai, Mércio Pereira, de que as demarcações de terras indígenas no Brasil estariam chegando ao fim.

“Mércio tem declarado publicamente e por diversas vezes, inclusive na ONU, que as demarcações de terras indígenas no país estão praticamente concluídas. Isto é muito preocupante para nós, principalmente porque inúmeros grupos indígenas ainda esperam ser reconhecidos oficialmente pela Funai”, explica Gersen Baniwá, assessor da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). Não exclusivamente, mas também em função disso, das cerca de 240 Terras Indígenas que são reivindicadas junto à Funai e aguardam demarcação, apenas 64 tiveram seus processos administrativos para demarcação iniciados pelo órgão, denunciam as lideranças indígenas.

Moeda de troca
Segundo o FDDI, o mais grave é que “questionamentos de cunho supostamente técnicos ou diligências destinadas a esclarecimentos assumem caráter meramente protelatório e/ou de atendimento a interesses políticos”. Ou seja, a burocracia que atravanca o reconhecimento das terras indígenas estaria sendo usada pelo governo como instrumento nas negociações de apoio político com setores conservadores ligados à sua base aliada no Congresso.

De acordo com o documento do Fórum, “percebe-se que os entraves verificados nos processos administrativos para a demarcação das Terras Indígenas coincidem, na maioria esmagadora dos casos, com a pressão da base parlamentar e política de sustentação do governo no Congresso Nacional, caracterizando-se uma negociação política, sem precedentes, do direito indígena à terra. As condutas do ministro da Justiça e do presidente da Funai adequam-se, assim, às preocupações do Palácio do Planalto no sentido de não contrariar interesses regionais”.

E conclui: “evidência desta atitude é a criação de uma inconstitucional comissão no Estado de Santa Catarina, constituída por representantes da União e do Estado, para analisar as terras a serem demarcadas, o que tem resultado na paralisia das demarcações naquele Estado. Do mesmo modo, a moratória das demarcações de Terras Indígenas solicitada pelo sojicultor e governador de Mato Grosso, Blairo Maggi, também foi atendida pelo Governo Federal, e as demarcações em Mato Grosso também estão paralisadas”.

Para Baniwá, esta conjuntura tem levado ao acirramento dos conflitos entre indígenas e fazendeiros, principalmente porque são as áreas menores e com maior tensão social as ignoradas pela Funai. Neste sentido, segundo as organizações indígenas, o número de assassinatos de índios está crescendo de forma alarmante: em 2003, afirma o FDDI, 33 índios foram assassinados. Em 2004, o número caiu para 30, mas apenas no primeiro semestre de 2005, já foram registrados 23 homicídios de índios brasileiros.

Mais diálogo
Segundo Nadja Havt Bindá, Coordenadora Geral de Identificação e Delimitação (CGID) da Funai, realmente está havendo lentidão no processo de reconhecimento das terras indígenas, mas não haveria motivação política.

Como explica Bindá, a demarcação das terras indígenas passa por uma série de processos, começando pelo estudo antropológico das áreas na busca da comprovação de que realmente foram ocupadas ancestralmente por indígenas.

“Este laudo antropológico tem que estar bem fundamentado para que não seja contestado. Depois de pronto, este estudo é publicado nos diários oficiais da união e do Estado, a abre-se um prazo de 90 dias para contestação por qualquer pessoa ou entidade. Depois deste período, o Ministério da Justiça recebe o estudo e as eventuais contestações. Os estudos falhos voltam para a Funai. Mas se estiver tudo em ordem, o ministro assina a portaria declaratória, que dá aos índios o direito sobre as terras em questão. Depois disso, a Funai faz a demarcação física, que vai para homologação do presidente”.

Nestes entremeios, explica a coordenadora do CGID, podem – e freqüentemente vêm ocorrendo – uma série de interferências da Justiça, na maioria dos casos desfavoráveis aos indígenas. “Os juízes estão decidindo cada vez mais a favor das contestações. Por isso precisamos ter mais cuidado ao apresentar os estudos. Por outro lado, existe um grande número de processos antigos que estão sendo concluídos agora. Mas é verdade que o trabalho está mais lento, também em função da diminuição da equipe e do contingenciamento das despesas. Muita gente do departamento está em estágio probatório ainda, nunca teve contato com processos administrativos ou mesmo a questão indígena”, reconhece.

Em documento enviado nesta quarta (17) ao FDDI, Bindá afirma que “de fato, poucos estudos de identificação de terras têm tido seus resultados publicados. No entanto, é preciso reconhecer também que o diálogo insuficiente faz parecer que estamos diante apenas de uma questão de vontade política”, afirma, convidando o FDDI para estreitar os diálogos.

Ela também afirma que “a CGID não tem sido pressionada por setores políticos locais, regionais ou nacionais. Da mesma forma, a presidência da Funai não tem condicionado os trabalhos da CGID em razão de pleitos políticos externos”.

Da Agência Carta Maior

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