Em 2003, o médico cearense Mário Mamede assumiu a secretaria-adjunta da Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH) da Presidência da República, tendo como seu superior imediato o então ministro Nilmário Miranda. Era o início do governo Lula, e as entidades de direitos humanos comemoravam o status de ministério dado pelo presidente à secretaria, diante de uma perspectiva de fortalecimento das políticas para o setor. O que se mostrou realidade, no entanto, foi algo bastante diferente. A SEDH sofreu, assim como outros órgãos do governo, limitações técnicas e orçamentárias – o que, na opinião das organizações da sociedade civil, prejudicou muito sua atuação. Em julho deste ano, no bojo da reforma ministerial, outra surpresa: a perda de status de ministério da SEDH, que passou a responder à Secretaria Geral da Presidência da República e a seu ministro, Luiz Dulci (leia matéria “Após pressão social, Secretaria deve ir para a Presidência”). A sociedade civil reagiu à notícia e segue se manifestando contrária. Na semana passada, reunidas no Encontro Nacional de Direitos Humanos 2005, em Brasília, protestaram contra a mudança.
“O rebaixamento da condição institucional da Secretaria Especial dos Direitos Humanos representa simbolicamente a falta de prioridade dos direitos humanos na agenda governamental e dificulta a articulação programática do órgão dentro do Poder Executivo. Apelamos ao presidente da República que reveja sua posição neste sentido e faça retornar a Subsecretaria de Direitos Humanos à sua condição política anterior”, afirma o documento final do encontro.
É neste quadro que Mamede substitui Nilmário Miranda e passa a comandar a agora subsecretaria. Militante do movimento pela Anistia e pelas Diretas, Mamede foi eleito deputado estadual no Ceará pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Teve dois mandatos consecutivos e em seus oito anos na Assembléia Legislativa do Ceará presidiu a Comissão de Direitos. Sua atuação parlamentar sempre foi voltada para a questão da segurança pública, da criminalidade e da realidade prisional, e para a defesa dos direitos das crianças e adolescentes, dos portadores de deficiência e das mulheres. Em 1994, durante uma visita da pastoral carcerária e outras entidades ao Instituto Penal Paulo Sarasate, para apuração de denúncias de maus-tratos e de más-condições das instalações carcerárias em seu estado, foi feito refém após o início de uma rebelião dos detentos.
Nesta entrevista exclusiva concedida à Agência Carta Maior, Mário Mamede fala de mudanças na secretaria para o próximo um ano e meio de governo. Admite que haverá novos cortes orçamentários, mas afirma que trabalhará incessantemente para recuperar o patamar alcançado pelos Direitos Humanos no governo Lula. Leia os principais trechos desta conversa:
O que muda na Secretaria de Direitos Humanos com a sua gestão a partir de agora?
Mário Mamede – Do ponto de vista das linhas e diretrizes políticas que Nilmário Miranda implementou na secretaria, que deram uma visão mais alargada à generalidade e à importância dos direitos humanos, não há porque redirecionar, em absoluto. Será uma gestão de continuidade a um trabalho exitoso, com grande expressão inclusive no cenário internacional, e que colocou na agenda da imprensa, do governo e do movimento social a discussão dos direitos humanos com um caráter permanente, continuado. Creio que isso é positivo. O que precisamos entender é que uma continuidade da gestão não precisa ter uma visão continuísta. É preciso fazer uma análise muito cuidadosa da nossa intervenção, atuação política e capacidade de articulação para reforçar aquilo que precisa ser reforçado, para dar prioridade àquilo que precisa ser priorizado – até porque, daqui pra frente, há somente um ano e meio de gestão, um tempo curto do ponto de vista cronológico e político.
E o que deve ser priorizado a partir de agora?
MM – Estamos num processo continuado de reuniões dentro da secretaria. Mas uma questão que deve ser reforçada e foco de ação continuada e permanente é o programa de combate à exploração sexual de crianças e adolescentes, sobretudo em sua forma mais perversa, para fins comerciais. É uma prática criminosa, organizada, que explora a criança e o adolescente nos mais diversos locais deste país, seja voltado para o turismo sexual, seja nos entroncamentos rodoviários, nos pequenos municípios. É um fenômeno nacional, que está bem estudado inclusive nas suas rotas intermuncipais e interestaduais, que cruzam o país de norte a sul e deslocam crianças para regiões distantes onde elas não sejam localizadas. Então é um trabalho hábil, que precisa ser permanentemente continuado.
Outra prioridade é o combate ao trabalho infantil, que já vem acontecendo e hoje é referência positiva importante. O Brasil tem recebido elogios constantes em relatórios da OIT [Organização Internacional do Trabalho] neste sentido. Assim como a coordenação do trabalho escravo, outra experiência que tem mostrado resultados satisfatórios e que é motivo de elogios.
Há poucos dias, a imprensa deu destaque à crítica feita por algumas entidades em relação à diminuição dos recursos do governo para o Fundo da Infância – a verba seria a menor dos últimos anos. O contingenciamento de recursos vem se mostrando uma realidade da Secretaria de Direitos Humanos também. Com a perda do status de ministério, como fica a questão orçamentária agora?
MM – Desde o momento que Nilmário me convidou para assumir a secretaria, disse que só haveria sentido em ocupar uma função pública se eu pudesse manter todo o meu modo de pensar, de ver o mundo, de ser militante de direitos humanos. Pra mim, é um compromisso absolutamente inarredável. Em nenhum momento vou questionar a legitimidade da crítica social. Ela existe e tem embasamento na realidade objetiva. Há um contingenciamento de recursos que tem acompanhado todas as ações do governo. Entendo as razões do governo também – é preciso equilíbrio na condução da gestão público – e devo chamar a atenção para o fato de que, na gestão do Nilmário, houve um grande esforço para a redução do contingenciamento. Mas há a compreensão de que, num país como o nosso, com graves desigualdades sociais, com uma dívida história enorme para com o seu povo, os recursos públicos serão sempre finitos diante de demandas. Portanto, essa equação recursos finitos para uma demanda que é bastante grande sempre acontecerá neste e em qualquer outro governo. Nilmário foi buscar parceria com outros setores da sociedade, com as empresas estatais, de economia mista, para viabilizar ações políticas e destinar recursos para o Fundo da Criança. No passado, o maior volume aportado ao fundo tinha sido em torno de um milhão. Nós fizemos uma estimativa de 42 milhões para o fundo; não chegamos a isso, mas temos a certeza de um aporte de 20 milhões, algo que nunca se tinha sido visto. O meu papel é buscar convencimento dentro do espaço de governo para que o contingenciamento à secretaria seja o menor possível.
Mas para o próximo ano há uma previsão de cortes ou o orçamento continua o mesmo?
MM – O Brasil tem uma economia que se coloca no cenário da globalização com compromissos que têm que ser honrados. Está em curso um estudo conduzido pela área econômica no sentido de prever o disponível orçamentário para cada uma das secretarias do ministério no ano de 2006. É claro que meu papel é lutar, discutir, convencer, fazer planilhas, mostrar as ações que desenvolvemos, os diversos programas e mostrar as enormes dificuldades que temos de subtrair recursos deste ou daquele programa. Qual é pra nós, considerando a questão da dignidade humana, a garantia dos direitos fundamentais, o programa que pode ter aporte de recursos reduzidos? O sistema de proteção dos adolescentes sob situação de ameaça de morte por grupos criminosos organizados e pelo narcotráfico, o programa de vítimas, familiares e de testemunhas sob ameaça…? Qual deles? Os programas exigem, na verdade, ampliação. É este o discurso que tenho que ter pra dentro do governo.
Mas a partir de agora não é o senhor que vai sentar pra negociar isso com o ministro Palocci. O ministro Dulci é que vai ser o porta-voz dos direitos humanos. Isso não pode dificultar este processo de negociação que, pelo visto, terá que ser muito mais intenso do que vinha sendo?
MM – Entendo que há uma perda de status simbólica da secretaria, mas devo respeitar as decisões do presidente. Não seria correto dizer que isso não tem implicações no ponto de vista administrativo. Mas agora, na condição de subsecretário da Secretaria Geral da Presidência, eu devo me reportar ao ministro Dulci, por quem tenho o maior respeito. É um companheiro que conheço desde 1986, uma pessoa por quem tenho estima, afeto e uma grande confiança política. Acho que vai ser uma relação extremamente tranqüila. Mas não posso me dar ao direito de rebaixar o patamar ao qual chegou a secretaria. Pelo contrário. Devo ampliar a ação política, a articulação com a sociedade e procurar mostrar, com a competência que possa me caber e a equipe que dirijo, a grande importância da política de direitos humanos. Afinal de contas, sendo um militante, eu trabalho com a utopia permanente. A minha construção é utópica. E essa utopia tem objetivo muito claro: buscar o resgate da secretaria ao patamar que ela outrora ocupava na condição de um órgão com representação ministerial.
Essa crítica, que o senhor considera legítima, afirma que, por conta do contingenciamento de recursos, de falta de pessoal, de estrutura técnica, muitos programas não puderam ser desenvolvidos, e que a SEDH era muito mais um órgão de pressão política do que de execução de programas. Hoje, com a mudança de status, é exatamente este lado que é atingido. Recuperar este status desta forma não parece ser uma tarefa quase impossível?
MM – Nos direitos humanos, a gente deve trabalhar tudo que é possível considerando o impossível. O impossível pra nós é uma tentativa permanente, mesmo que o tempo seja curto. Tenho um respeito hierárquico e devo tratar esta questão com muito cuidado, dentro do ambiente institucional. Mas não posso ser subtraído do direito de pensar a secretaria do patamar que ela outrora ocupou. É importante que isso fique bem claro. No entanto, acho que a crítica feita por alguns segmentos da sociedade tem uma visão focal. É uma crítica a partir do seu mundo, da sua realidade, dos seus interesses; não consegue perceber a amplitude da nossa gestão e da nossa ação política. Outro aspecto é que precisamos entender a secretaria como um órgão que tem um papel muito menos executor e muito mais de articulação política. A nossa ação de execução direta se faz em dois programas. O Pró-Vita, de proteção às vítimas da violência e testemunhas familiares, que está em 17 estados da federação, com cerca de 700 protegidos; e o programa de aplicação das medidas sócio-educativas em regime fechado em adolescentes em conflito com a lei. Os demais programas são em parceira com a sociedade, através das ongs e da academia. Então trabalhamos mais no cenário da articulação.
E é exatamente por conta desta articulação política que há a preocupação da secretaria não sentar mais na mesa com os ministros.
MM – Eu entendo essa preocupação, mas quero acreditar que eu possa ser capaz, com uma equipe de alto nível de capacitação, de ter condições e envergadura para colocar essa necessidade de resgate da secretaria. É dessa maneira que eu devo agir. Agora há também insuficiência na crítica pela não percepção de que há um modelo de gestão que sofreu modificações no governo Lula. Dá pra alguém dizer que o Programa Fome Zero, que o Programa Bolsa Família, os programas voltados para as pessoas com deficiência mental, de amparo ao idoso não são programas de direitos humanos? Não são programas voltados para o resgate da cidadania? Para retirar pessoas do espaço da exclusão social? Todos esses programas que o governo vem desenvolvendo através de ações intersetoriais – e que nós sempre somos parte – são programas voltados para a garantia dos direitos humanos, econômicos, sociais, culturais. O Fome Zero é um programa que cobre 7 milhões e 600 mil famílias e que as pessoas não estão percebendo que tem forte conteúdo de direitos humanos. É a minha leitura do orçamento que permite uma visão mais alargada das ações que são desenvolvidas pela secretaria.
Sobre a relação com as grandes entidades de direitos humanos que atuam no Brasil, em vários momentos houve críticas à falta de diálogo por parte do ministro Nilmário, além do conflito que se estabeleceu durante a IX Conferência Nacional de Direitos Humanos, realizada no ano passado. Pessoalmente, como o senhor vai conduzir este processo de relação com as entidades?
MM – Tenho discordância da crítica feita ao Nilmário nesses moldes. Qualquer gestor público está exposto a situações e é merecedor de críticas. Mas quem conhece o Nilmário e sabe do seu perfil e modo de fazer política, sabe que ele faz isso sempre num processo de construção. Isso é uma característica muito forte dele. Mas aconteceram curtos-circuitos ou momentos que foram negativos na relação com a sociedade. Dentro da Conferência, que era a primeira deliberativa, aconteceu um processo que não era desejado: estabeleceu-se um cenário de disputa a partir de alguns movimentos da sociedade. Isso não era desejado, não se trabalhava com essa lógica. Tínhamos obrigatoriamente que estabelecer uma forte parceria entre os militantes de direitos humanos que ocupavam naquele momento o governo, a gestão pública, e os movimentos que estavam na seara social. Mas, lamentavelmente, por alguns equívocos, de alguns segmentos do movimento social, estabeleceu-se outra forte disputa. Resultado: a conferência não teve vitoriosos; o resultado não foi o desejado; a disputa ali não cabia nos moldes em que aconteceu. Mas estamos – não só o governo – buscando resgatar este aspecto negativo e que teve a influência não desejada na gestão da secretaria. Estamos buscando um intenso processo de superação. Tanto que em janeiro o Nilmário reuniu 43 grandes expressões de direitos humanos, procurando trazer pessoas de todas as regiões e de várias áreas de atuação, para estabelecer os dez pilares da política de direitos humanos, para que possamos dar respostas àquilo que a sociedade produziu num momento crítico de discussão. Superar o processo negativo da conferência e caminhar em direção ao horizonte. Não adianta ficar caminhando pra frente com a cabeça voltada ao passado.
Temos quatro conferências nacionais importantes pela frente: a conferência de direitos humanos, a primeira conferência nacional de pessoas portadoras de deficiência, o primeiro encontro nacional de educação para direitos humanos e a conferência da criança. São eventos grandes, em que haverá uma oportunidade riquíssima de diálogo com a sociedade. Não há política pública que se sustente se não for com forte apoio social. Queremos que a sociedade se apodere da política como se fosse sua. É ela que faz as modificações na gestão pública, é ela que muda o perfil do Estado, que direciona os recursos, que cobra. Ela que é a vanguarda.
Da Agência Carta Maior