Quando o sonho vira pesadelo

Em busca de uma vida melhor, mulheres migram para países desenvolvidos, mas acabam caindo nas mãos de máfias internacionais e enfrentando a prostituição, maus-tratos, escravidão e até a morte
Renata Summa
 29/09/2005

Maria acorda cedo, levanta-se antes do sol. Pega duas conduções para chegar a um bairro grã-fino, onde trabalha. Chega em casa exausta. Sabe que a vida pode ser mais do que isso. Maria tem um sonho: dar um destino melhor para seu filho e seus pais. É bonita, a Maria. E um dia recebe uma proposta para trabalhar em uma boate na Espanha. Desconfia, mas o dinheiro é tanto, dizem. Pode garantir o Futuro. Sem saber o que a espera, resolve arriscar.

Maria ainda não sabe, mas terá o mesmo destino de outras 75 mil brasileiras que foram traficadas para a Europa. Assim que chegar à boate combinada, ficará sabendo que deve a passagem. Seu passaporte será retido pelos cafetões, para que ela não fuja. Do dinheiro prometido, não vai ver nem a cor. Talvez seja proibida de sair, talvez seja ameaçada, talvez seja espancada. Mas, com certeza, será obrigada a prostituir-se.

Esse é um drama que atinge cada vez mais mulheres. Segundo a Organização das Nações Unidas, o tráfico de seres humanos é a terceira maior atividade ilegal do mundo, perdendo somente para o tráfico de drogas e o de armas. Ele movimenta, anualmente, cerca de US$ 9 bilhões. Mas, comparado aos outros dois, é o que mais cresce.

A maior atividade do tráfico de seres humanos é o abastecimento do mercado da prostituição dos países desenvolvidos. Segundo dados do Escritório das Nações Unidas Contra Drogas e Crimes (UNODC), 92% dos casos analisados por eles eram de vítimas aliciadas para a exploração sexual. Existem ainda outras três grandes atividades comandadas pelo tráfico: a adoção ilegal, o trabalho forçado e o tráfico para a remoção de órgãos.

À medida que o processo de globalização se consolida, esse crime desenvolve-se. A crescente vulnerabilidade social enfrentada pelos países subdesenvolvidos ou em via de desenvolvimento aumenta a oferta de mulheres. A demanda cresce com a ajuda do marketing, da Internet e do turismo sexual. A fiscalização precária e a facilidade de transportar-se ajudam a entrada da mulher que será explorada.

As brasileiras representam 15% das mulheres que deixam a América Latina para prostituir-se, fazendo do Brasil um dos países que mais "exporta" pessoas para fins de exploração sexual. Na Europa, representam o terceiro maior grupo, perdendo apenas para as mulheres de países do Leste Europeu. Não é difícil entender esses números em uma nação que alia miséria, desigualdade social e venda da imagem de "sedutora" para o exterior.

"Essa imagem foi vendida pelo Brasil por muitos anos, até hoje. Mulata bonita, sexy, é um fetiche europeu", explica Dalila Figueiredo, fundadora da Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da Juventude (Asbrad), ONG de Guarulhos que recebe vítimas e viabiliza o retorno delas aos seus Estados de origem. Até maio deste ano, eles haviam atendido mais de 50 pessoas.

Pestraf

Em 2002, a Universidade de Brasília (UnB) e a Cecria (Centro de Referência, Estudos e Ações sobre a Criança e Adolescente), com a ajuda de organizações não-governamentais, desenvolveram uma pesquisa a fim de entender como esse crime se dá no Brasil. "A Pestraf (Pesquisa Sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual) ampliou a discussão (do assunto) no país", afirma Maria de Fátima Leal, do Núcleo de Estudos da Violência da UnB e uma das coordenadoras do estudo.

"Não só é a maior pesquisa sobre esse assunto realizada no país, como serviu para abrir os olhos do governo", complementa Eloísa de Santos, pesquisadora do Serviço à mulher marginalizada, ONG de São Paulo que atua há 14 anos na proteção da mulher e organiza campanhas de prevenção ao tráfico.

O transporte da vítima se dá através de 241 rotas de tráfico, segundo o estudo. As regiões mais atingidas são a Norte e a Nordeste. Goiás é o Estado que registra o maior número de menores aliciados. "A rota do tráfico é o caminho da pobreza no Brasil", conclui Eloísa. O país que mais recebe brasileiras é a Espanha, seguida pela Holanda, Venezuela, Itália, Paraguai e Suíça.

As vítimas têm entre 13 a 25 anos, moram em bolsões de miséria, em geral são mães solteiras e atuam pela necessidade de sustentar a família. As menores de idade, na sua maioria, são traficadas internamente ou então enviadas a países que fazem fronteiras com o Brasil. Já as que possuem mais de 18 anos vão para a Europa, Estados Unidos, Oriente Médio ou Ásia.

Elas são recrutadas por aliciadores, geralmente brasileiros, que prometem empregos de dançarina, empregada doméstica, babá ou recepcionista de boate no exterior, ganhando em dólares ou euro. Mesmo as que sabem que vão ter que se prostituir, decepcionam-se com as condições de trabalho, o endividamento, os maus-tratos e a coerção. "Muitas vão iludidas em relação ao tipo de trabalho, mas todas vão iludidas quando se trata de escravidão. Ninguém espera por isso", explica Débora Giannico, assessora da defesa da cidadania do Escritório de Combate e Prevenção ao Tráfico de Seres Humanos do Estado de São Paulo.

Reação

"Após a Pestraf, tivemos duas mudanças de lei importantes: conseguimos que o tráfico interno fosse considerado crime, e a mudança do termo 'tráfico de mulheres' para 'tráfico de seres humanos'", comemora Maria de Fátima.

Desde a publicação da pesquisa, o Brasil avançou consideravelmente no combate a esse tipo de crime. "Nos últimos três anos o governo passou a criar políticas públicas que estão resultando no aperfeiçoamento do aparato policial. A Polícia Federal tem feito muitas prisões, desfazendo grandes redes", afirma Dalila.

Foram relizadas campanhas de prevenção nos aeroportos e estradas. Além disso, o Ministério da Justiça e a ONU instalaram escritórios de atendimento às vítimas e familiares em São Paulo, Goiás, Fortaleza e Rio de Janeiro. Segundo Débora, o atendimento é importante porque "a prostituta não se sente vítima, acha normal os maus tratos, acha que não tem direitos".

Mas de todas as medidas, a mais importante foi a ratificação, em 2004, do "Protocolo para Prevenir, Suprimir e Punir o Tráfico de Pessoas, Especialmente Mulheres e Crianças". O protocolo complementa as determinações da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, também conhecida como "Protocolo de Palermo", ratificado por 94 Estados. Dessa forma, o Brasil passou a ter amparo legal para o combate desse tipo de crime.

Mas, segundo Maria de Fátima, ainda não é o suficiente. "Só o Protocolo não basta, os país
es têm que estar mais integrados entre si, precisa haver um agendamento político com os países receptores dessas pessoas, criando medidas para coibir esse fenômeno. A convenção tem que sair do papel", critica.

Débora acredita que só a repressão não adianta: "É um problema ligado à falta de oportunidade, apresenta um forte fator social". Dalila concorda. "Elas vêm de uma situação complicada. Possuem uma história de vida difícil. Estão, sem dúvidas, dispostas a arriscar tudo para realizar esse sonho".

"Quando chega a ponto de a mãe denunciar a filha, é porque já está demais".

Nessa vida, já fez de tudo. Antes, trabalhava como demonstradora de produto em supermercado, na Barra da Tijuca. Um dia, Cirlene parou de voltar para a casa. Dizia à mãe que na hora em que saía, já tinham acabado os ônibus. Começou a prostituir-se. Mas ficou pouco tempo. Esperta, logo juntou dinheiro e começou o seu próprio negócio. Virou cafetina e aliciava mulheres para trabalharem no exterior.

"Ela iludia as moças dizendo que era pra ganhar R$ 10.000 por semana, que era para fazer show, para dançar", conta Marlene Cisneiros de Oliveira, costureira e mãe de Cirlene. "Chegava em casa dizendo que já tinha arrumado mais uma cabeça, assim, como se fosse gado. Mandou mais de 100 para trabalhar lá fora".

Um dia, disse para a mãe que ia mudar de vida. Pediu para usar a casinha de trás para montar uma empresa de decoração. Queria ajudar o pai. Levou computador, mesa, começou a trabalhar lá. Marlene descobriu depois que a empresa era fantasma. Na verdade, servia para recrutar moças para trabalhar em outros países. Ela possuía um site na Internet, as moças interessadas mandavam fotos. "Tenho tudo isso aqui para provar, são dez anos de investigação", afirma Marlene.

Em 2002, Cirlene fugiu para a Suíça. Havia mandado dez mulheres para a Espanha que ficaram presas na imigração. Elas mandaram um homem para ameaçá-la. "Acabou em uma casa, cheia de câmeras, ela ficava trancada o tempo todo, tentou até suicidar-se. Achou que isso só acontecia com as outras, que com ela seria diferente", ironiza Marlene. Cirlene tem uma filha. Quer tirá-la do país, a todo custo.

Cansada, Marlene decidiu procurar a Polícia Federal. "É para proteger minha neta que eu estou acusando minha filha. Eu a criei. Ela tem câncer e já foi espancada pela mãe mesmo sob efeito de quimioterapia. Já me espancou também. Não agüento mais", desabafa.

Para a costureira, a filha poderia ter escolhido outra vida: "Eu já fui doceira, camelô, se precisar sou cabeleireira, faço salgadinho… tudo para não ter que entrar nessa vida". Lamenta-se também da polícia: "A polícia é conivente. Quando chega ao ponto da mãe denunciar a filha, é porque já está demais".

O caso Simone

 

Simone Borges Filipe, então com 25 anos, morava em Goiânia com os pais. Em janeiro de 1996, embarcou para a Espanha com um objetivo: ganhar muito dinheiro para ajudá-los. Segundo sua família a jovem teria aceitado um emprego de garçonete oferecido pelas irmãs Eulícia e Eleuza Magalhães de Brito, que trabalhava como prostituta na Espanha. "Elas foram à minha casa, convidaram Simone e a levaram para a Espanha, prometendo que ela ia trabalhar como garçonete", conta João Felipe, pai da moça.

No início de fevereiro, Simone ligou para a mãe chorando muito. Disse que era obrigada a trabalhar até de manhã e que aquilo era um inferno. Pediu que contatasse o Consulado Brasileiro na Espanha, para tirá-la de lá.

Segundo Maria Felipe, mãe da jovem, quando falava ao telefone, parecia que Simone nunca estava sozinha. As poucas vezes que ela reclamava do tratamento na Espanha, ela estava na rua, em um orelhão.

Outra mulher que trabalhou na mesma boate, César Palace, conta como era: "Todas as meninas estavam drogadas, bebiam muito e circulavam seminuas entre as mesas. Faziam strip-tease e programas mesmo".

Simone chegou a comprar a passagem de volta para o dia 24 de abril. Mas no dia seis seus pais foram informados da sua morte, causada por uma "tuberculose aguda". A causa da morte é suspeita porque Simone deu entrada três vezes no hospital antes de morrer. Nas duas primeiras, nada foi diagnosticado.

Uma colega acusa o hospital: "os remédios eram dados em enorme quantidade. Quando tomava os medicamentos, ela se queixava de falta de ar e sentia dores fortíssimas".

O corpo foi trazido para o Brasil e a família pediu uma nova autópsia. Desta vez, a hipótese de tuberculose foi descartada e tudo indica que Simone pode ter morrido mesmo de overdose.

Posteriormente, o Instituto Nacional de toxicologia da Espanha descartou de vez a hipótese de tuberculose, o que levou o hospital Basurto a admitir o erro no diagnóstico.

Imigração ilegal x tráfico de pessoas

No dia da estréia da novela América, 76% dos televisores de São Paulo estavam acompanhando a tentativa da protagonista Sol de entrar ilegalmente nos Estados Unidos para realizar seu sonho. Todos torcem para que, de fato, ela consiga "fazer a América". Mas, na vida real, qual é a semelhança entre a imigração ilegal e o tráfico de pessoas.

"Essa diferença é muito tênue", explica Maria de Fátima Leal, do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de Brasília (UnB) e uma das coordenadoras da Pestraf (ver matéria principal). Segundo a pesquisadora, os dois realizam o transporte e o abrigo de pessoas, mas, na imigração ilegal, o aliciamento quase nunca está presente, uma grande diferença em relação ao tráfico de seres humanos.

"O imigrante ilegal, em geral, é quem procura a quadrilha e paga antecipado. Quando ele chega ao país de destino, estará livre. O problema é que muitas vezes ele não encontra trabalho, contata a quadrilha e aí acaba caindo nas mãos deles, tendo que realizar trabalho forçado, só então seu passaporte é confiscado por eles", ilustra.

Os imigrantes ainda não mereceram a mesma atenção do governo brasileiro destinada ao tráfico de seres humanos. A Convenção Internacional para Proteção dos Direitos dos Trabalhadores Migrantes e de suas Famílias, de 1990, ainda não foi ratificada pelo governo. "É um instrumento de particular valor, pois prevê a proteção e a defesa dos direitos dos trabalhadores imigrantes, sejam eles documentados ou sem documentos. Reconhece-os e os ampara como cidadãos do mundo", diz Rosita Milesi do Instituto Migrações e Direitos Humanos.

Mas este tipo de integração não é a ordem do dia. A tendência &ea
cute; que os países industrializados cada vez se fechem mais para a imigração, estimulando assim a ação do crime organizado.

"Enquanto os traficados são vistos como vítima, os imigrantes sofrem discriminações. Isso gera um grande problema social", lamenta-se Maria de Fátima. Ela ainda acrescenta: "No mundo de hoje, não se globalizam os direitos, se globalizam os produtos".

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