Um minuto de silêncio em homenagem a todos os mortos nas chacinas de Eldorado dos Carajás, Candelária, Carandiru, Castelinho, Jardim Paulista, Jardim Portinari e tantas outras que vieram à memória dos presentes. Assim teve início uma audiência pública realizada no último dia 10, em São Paulo, para marcar o Dia Mundial Contra a Pena de Morte. A data, proposta por entidades como a Federação Internacional das Ligas dos Direitos do Homem e a Federação Internacional de Ação dos Cristãos contra a Tortura, foi celebrada em várias cidades do mundo. Aqui no Brasil, foi um dia para se debater a pena de morte ilegal e extra-judicial que ainda é aplicada. A pena de morte vigorou no país, legalmente, durante o Império e as ditaduras militares. Mas todas as constituições brasileiras votadas em período republicano parlamentar – 1891, 1934, 1946 e 1988 – foram categoricamente contra a inclusão desse instituto para penalizar qualquer crime que fosse. Na Assembléia Constituinte de 1987 a pena de morte foi rejeitada por 392 votos contra 90. A atual Constituição proíbe a pena em seu artigo 5, inciso XLVII, assim como a prisão perpétua, e estabelece 30 anos como limite máximo para o cumprimento de penas de reclusão.
Em contraste com a proibição legal, a pena de morte tem sido usada ilegalmente no país através de execuções sumárias e extra-judiciais, por policiais militares e civis, por agentes do Estado nas prisões e, no caso específico de São Paulo, nas unidades da Febem (Fundação para o Bem Estar do Menor). Sempre contra as populações pobres e marginalizadas. De acordo com um dossiê lançado dia 10 pelas entidades defensoras dos direitos humanos no país, a prática é evidenciada pelo número de pessoas executadas pela polícia nas periferias das grandes cidades; pelo número de detentos mortos no sistema prisional (não só relacionadas à tortura e aos maus tratos, mas também às condições de habitabilidade a que estão submetidos os presos e a disputas entre grupos rivais); e pelas mortes de adolescentes em conflito com a lei nas instituições de internação.
“Quando a pessoa é presa, já entra no presídio com a perspectiva de morte, tamanha é a situação das carceragens”, conta o Padre Valdir, da Pastoral Carcerária. De acordo com o dossiê elaborado pelas entidades, o Brasil tem apresentado um expressivo crescimento de suas taxas de encarceramento. Em 1969, a taxa era de 30 presos por 100 mil habitantes. Em 1995, era de 95,4, o que equivale a um aumento de 218% em 26 anos. Depois disso, o aumento foi ainda mais acentuado: no ano de 2000, a taxa chegou a 134,9 presos por 100 mil habitantes –um crescimento de 41% em apenas 5 anos.
“Há uma tendência de a Justiça brasileira em privilegiar a utilização de pena privativa de liberdade em regime fechado em detrimento dos regimes mais brandos”, explica o documento. Além do problema da superlotação das prisões, “os direitos à saúde e à integridade física são constantemente negligenciados pelo Estado, que deveria ter sobre sua responsabilidade a tutela desses presos”, aponta o dossiê. Segundo dados oficiais da Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo (SAP), de 1999 a novembro de 2004, 2.414 presos morreram, sendo que 15,16% por “causas criminais”, 1,4% por “suicídios” e 83,43% por “causas naturais”. A morte de portadores de HIV, tuberculose ou qualquer outra doença que se dissemina com facilidade em ambientes como a prisão em geral é classificada como tendo “causas naturais”.
Preso nas carceragens do 80° Departamento de Polícia da Vila Joaniza, em São Paulo, Sérgio Roberto de Carvalho faleceu no dia 29 de setembro deste ano após contrair tuberculose pulmonar em decorrência da fragilidade imunológica causada pelo vírus da Aids. Desde janeiro deste ano, ele recebia apenas remédios para controlar convulsões, que aconteciam com freqüência, e não recebia do Estado o coquetel recomendado para portadores do HIV. “Meu marido chegou a ficar quinze dias sem comer. Quando o visitei pela última vez, ele parecia um lixo jogado no chão. O que eu quero não volta mais, mas então eu quero justiça”, disse a viúva de Sérgio Carvalho, Ana Paula, durante a audiência pública. Ela disse que vai abrir um processo contra o governo de São Paulo por descaso e omissão em relação à morte de seu marido.
Já as mortes em presídios classificadas como “criminais” resultam de maus-tratos, torturas, conflitos de presos, rebeliões, tentativas de fuga e da ação policial na contenção desses episódios. Em quatro anos, 337 presos foram mortos em decorrência de causas criminais.
As mortes contabilizadas como “suicídios” também aumentaram nos últimos anos, sobretudo a partir de 2003, quando começou a funcionar o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), que prevê que presos que contrariem a ordem e/ou a disciplina interna do presídio estarão sujeitos a um regime de punições severas, com duração de até 360 dias em cela de recolhimento individual. O RDD já funcionava nos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro por meio de resolução, e foi aprovado formalmente em dezembro de 2003 pelo Congresso Nacional. As entidades de direitos humanos denunciam constantemente que o regime tem provocado sérios danos psicológicos àqueles que estão submetidos a ele, como a desestruturação da personalidade, o comprometimento da identidade da pessoa e prejuízo da auto-estima.
Em onze meses do ano de 2004, o número de casos de suicídios cometidos foi cerca de 500% maior do que no ano de 2003 inteiro. Enquanto em todo o ano de 2003 foram cometidos 4 suicídios, entre janeiro e novembro de 2004 esse número subiu para 30 ocorrências. Os suicídios poucas vezes são comprovados, deixando dúvidas sobre as circunstâncias em que ocorreram e trazendo suspeitas de continuidade da prática de execução dos presos do período da ditadura. Na avaliação das entidades, mesmo que os presos tenham se suicidado, isso não retira do Estado a responsabilidade por não fornecer condições dignas e adequadas para a sobrevivência dos reclusos, incluindo aí assistência médica e psicológica.
Execuções sumárias
Nas ruas, fora das celas, a situação não é diferente para aqueles que vivem sobretudo nas periferias das grandes cidades. Os dados apresentados pelo dossiê “Pena de Morte Ilegal e Extra-judicial” referem-se a São Paulo, mas não divergem muito do que acontece em todo o país. Na capital paulista, de 1995 até o primeiro semestre de 2005 foram registradas pela Ouvidoria da Polícia do Estado 3.203 casos de homicídios praticados por policiais militares e civis. Com algumas quedas alternadas, os homicídios cometidos por policiais vêm aumentando a cada ano. De 1995 a 2001, foram 256 casos de homicídios cometidos por policiais civis, 1.310 casos de autoria de policiais militares e 46 casos envolvendo policiais civis e militares. De 2002 até o 1º semestre de 2005, a Ouvidoria recebeu 121 casos de homicídios praticados por policiais civis, 1.457 por policiais militares e 13 casos envolvendo policiais civis e militares. Ou seja, em três anos (de 2002 a 2005) morreram vítimas da ação policial praticamente o mesmo número de pessoas que foram mortas pela polícia nos sete anos anteriores (de 1995 a 2001).
A maioria dos casos de homicídios praticados por policiais é classificada pela polícia civil como sendo “resistência seguida de morte”. Os inquéritos referentes a homicídios praticados por policiais geralmente não apuram a ação dos agentes envolvidos, e sim os fatos relativos às condutas das vítimas. No Poder Judiciário, os casos não são distribuídos às varas do júri, responsáveis pela apuração de crime doloso contra a vida, mas sim às varas comuns, para apuração de denúncia de crime atribuído à vítima. Em muitos casos, o Ministério Público e o Poder Judiciário se manifestam somente sobre a ação das vítimas e não sobre a ação dos policiais.
Segundo uma pesquisa realizada recentemente pela Ouvidoria da Polícia, dentre as vítimas fatais em ações envolvendo policiais, 51% foram atingidas por tiros nas costas e em outras partes do corpo e 36% por disparos na cabeças, o que indicaria que a vítima estava em fuga e não constituía ameaça aos policiais. Em média, cada vítima foi alvejada por 3,17 disparos. Mais da metade dessas vítimas não tinha antecedentes criminais nem havia cometido infrações. Essas estatísticas revelam “o padrão de ação policial que tem sido exercida no Estado de São Paulo nos últimos anos e que demonstra claramente uma política de extermínio sem precedentes”, afirma o dossiê.
Omissão do governo do Estado
Desde 2002, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo é ocupada por Saulo de Castro Abreu, acusado pela Ouvidoria de Polícia, pela Ordem dos Advogados do Brasil, pelo Centro Santo Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo e pela Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos de estar envolvido em ações ilegais praticadas por policiais do Grupo de Repressão e Análise dos Delitos de Intolerância (Gradi), integrado por policiais civis e militares e ligado diretamente ao seu gabinete. O Gradi foi criado em março de 2000 para investigar delitos de intolerância em virtude de preconceito ou discriminação. Policiais militares que integravam o grupo passaram a recrutar nas prisões presos condenados para trabalhar como agentes infiltrados em organizações criminosas, com autorização do secretário de Segurança Pública e de juízes corregedores dos presídios. Em 2002, a partir de denúncias, o Ministério Público passou a investigar a atuação do Gradi, considerou ilegal o recrutamento de presos para trabalhar como agentes infiltrados em organizações criminosas e solicitou ao Tribunal de Justiça a abertura de inquérito para apurar a responsabilidade do governo do Estado.
“Há uma omissão geral do secretário de Segurança Pública, Saulo de Abreu Castro, que representa a conivência do governador Alckmin com essa violência a que estamos assistindo. Se vivêssemos num Estado que respeitasse o cidadão, o governo apuraria isso”, afirmou o procurador regional dos direitos do cidadão, do Ministério Público, Sérgio Suiama. “Antes as pessoas eram mortas por causas políticas, hoje são os negros e pobres da periferia. É a concepção ignorante e cretina de que a segurança da sociedade depende da violência praticada pela polícia”, diz Suiama.
“A Secretaria não trabalha com transparência, nem de dados, nem da ação da polícia. O próprio ouvidor da polícia tem dificuldade de acesso aos números. Assim, vamos acumulando chacinas em cima de chacinas, nenhuma é apurada e, no máximo, alguns policiais são afastados. Um secretário de Segurança Pública como este não casa com um Estado Democrático de Direitos que a gente quer construir. É extremamente autoritário e suas declarações legitimam a ação dos policiais, que se sentem à vontade para agir assim”, afirma João Frederico dos Santos, presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe).
Ao todo, se for somado o número de pessoas mortas pela polícia de 1999 a 2004 com o número de pessoas mortas sob tutela do Estado no mesmo período, chega-se a 5.152 mortes. Em cinco anos, morreram por ano uma média de 1.030 pessoas, revelando um sistema de execução por ação ou omissão do Estado mesmo quando a Constituição Federal proíbe a pena de morte. Tal morticínio é acompanhado da impunidade quase absoluta dos criminosos, através de barreiras formadas principalmente pelo corporativismo dentro das polícias e nas corregedorias. A impunidade é apontada como um dos fatores que mais tem favorecido o aumento da violência policial.
Segundo a advogada Valdênia Paulino, do Centro de Defesa dos Direitos Humanos do Sapopemba, os métodos de investigação em casos onde a vítima é pobre são diferentes dos utilizados quando a vítima é de família mais rica. “Quando são os nossos, não conseguimos apurar os responsáveis”, diz Valdênia. “Vivemos em estado de sítio na periferia, com a polícia entrando direto, invadindo a casa das pessoas. Isso é criminalização da pobreza; é o governo Alckmin, que diz que tem respeito pelo cidadão”, critica a advogada.
Ao final do dossiê, as entidades que assinam o documento fazem uma série de recomendações ao governo estadual e às polícias. A principal delas é a formulação de uma política de prevenção da violência na atuação de policiais, que inclua ações punitivas que promovam um estilo de policiamento que alie a eficiência na prevenção e na investigação do crime ao respeito à lei e aos direitos humanos. Além disso, afirmam a necessidade de criação de um sistema permanente de monitoramento e avaliação da atuação da polícia e de mapeamento e prevenção da corrupção e violência policial, como uma forma de reduzir a letalidade na atuação dos policias e a distância que existe hoje entre a polícia e a sociedade.
Da Agência Carta Maior