As políticas sociais, tão caras à história do modo petista de governar, estão voltando a ganhar destaque na agenda política com a proximidade das eleições de 2006. Um dos principais pilares da possível campanha de reeleição do presidente Lula, as políticas de segurança alimentar apresentam avanços, mas não superaram fragilidades no que se refere ao controle social. Esta foi a avaliação feita por diversas entidades que estiveram reunidas na capital federal na semana passada para o seminário "Construindo estratégias de exigibilidade do direito humano à alimentação adequada", promovido por um conjunto de ONGs (Organizações Não-Governamentais), com o apoio da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, órgão do Ministério Público Federal.
Para as organizações presentes ao seminário, a primeira tarefa a ser cumprida para fortalecer o controle social é a articulação dos diversos mecanismos já existentes – desde conselhos de segurança alimentar (Conseas) nos âmbitos federal, estadual e municipal até órgãos específicos de cada setor, como é o Conselho de Alimentação Escolar (CAE).
Para Flávio Valente, da Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos (ABRANDH), além de articular as políticas entre si, outro desafio para o fortalecimento do controle social é a incorporação do conceito de alimentação como direito humano. "A pessoa primeiro precisa saber que tem o direito, o que hoje é um dos principais gargalos. Depois ela precisa saber onde reclamar quando tem esse direito violado. E, por fim, ela precisa que o Estado tenha mecanismos de resposta e solução para essas violações", explica Valente.
Descentralização
Um dos principais aliados da sociedade civil no monitoramento do direito humano à alimentação e controle sobre as políticas de segurança alimentar tem sido o Ministério Público (MP). Apesar de preocupado com o tema, o MP tem buscado ultrapassar um obstáculo ‘jurisdicional‘ para conseguir fiscalizar efetivamente as denúncias na ponta. "O mais importante hoje é conseguir descentralizar e municipalizar o controle do [Poder] Judiciário e do MP. O Bolsa-Família é um programa federal e a repressão só pode ser feita pelo MP Federal e não pelos MPs Estaduais", comenta Francisco Salles de Albuquerque, presidente do Conselho Nacional de Procuradores Gerais de Justiça.
Segundo Salles, o problema de jurisdição cria uma dinâmica que deseduca a população, pois acaba havendo uma grande demora entre a denúncia e a repressão. Ele cita também como problema o pouco alcance da justiça federal nos Estados. "Como é que alguém da Justiça Federal, que geralmente fica na capital, vai fiscalizar um município a 800 quilômetros de distância? É por isso que estamos propondo uma parceria entre o MP Federal e os MPs Estaduais", diz.
Para Salles, no entanto, a ação do MP é insuficiente se não houver mobilização da sociedade civil para exercer o controle social. "Só o promotor não adianta, essa fiscalização tem que ser feita pela sociedade, pois só a sociedade sabe quem tem ou não, quem deve receber ou não", afirma. Para o procurador, a falta de controle por parte da sociedade beneficia as fraudes e gera o risco do programa se tornar puramente assistencialista, pois não educa a população à fiscalização de seus direitos e não garante o cumprimento das condicionalidades. Hoje, para receber os recursos do Bolsa Família, a família tem de apresentar algumas documentações, como freqüência escolar e carteira de vacina dos filhos assinada.
Bolsa Família
No seminário realizado em Brasília, a gama ampla de programas do governo e de seus respectivos mecanismos de controle foi analisada, mas foi dispensada especial atenção para o Bolsa Família, programa de transferência de renda que está atingindo este mês 8 milhões de famílias e pretende chegar a 11 milhões em 2006. Os recursos destinados ao programa passaram de R$ 5,7 bilhões em 2003 para R$ 12,2 bilhões neste ano.
Na opinião de Vanessa Schottz, integrante da ONG Fase e autora de uma dissertação de mestrado sobre o programa, a combinação entre crescimento rápido e falta de controle social gerou uma quantidade considerável de distorções no programa. "Até novembro do ano passado só havia a Lei, e não a sua regulamentação. A lei dizia que o controle social deveria ser exercido por algum conselho, com no mínimo 50% de participação da sociedade civil, mas não definia as atribuições do conselho", lembra.
Essa lacuna foi essencial para que o cadastro dos beneficiários do Bolsa Família fosse feito sem qualquer forma de controle na ponta, situação que foi agravada pelas limitações estruturais do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS). "Trabalham hoje em todo ministério mil pessoas. Como é que eles vão fazer a fiscalização do Bolsa Família em cinco mil municípios para saber se aquela família está recebendo ou se tem gente que deveria receber e não está?", questiona Caio Luis Brandão, da Coordenação-Geral de Orçamento e Finanças do MDS. No final do ano passado, o MDS formou uma comissão que elaborou uma norma estabelecendo como seria o controle social, que foi editada no início de 2005.
Entretanto, na opinião de Vanessa, a norma carece de um movimento paralelo de criação e fortalecimento dos conselhos em perspectiva autônoma. "Após um ano com controle social altamente deficiente, este ano ainda se colocam os desafios de minimizar a influência do Executivo na nomeação dos conselheiros e de capacitar os conselheiros, pois não há controle sem compreensão da função e da importância de controlar", defende.
Cadastro
Para a pesquisadora da Fase, as fragilidades no controle social do Bolsa Família prejudicam a fiscalização sobre seu "calcanhar de Aquiles": o cadastro dos beneficiários dos recursos. "O cadastramento anda junto com o controle social e é alvo de preocupação da sociedade civil, pois é nele que acontece o desvio na operação do programa, gerando repasse de recurso para quem não precisa e privando pessoas que precisam recebê-lo". Além dos desvios e da gestão dos dados, outro problema do cadastro sublinhado por Vanessa é a inclusão de pessoas em condições precárias, como indivíduos sem documentação civil ou moradia regular e populações indígenas. "Se o programa se propõe a ser realmente estruturante, precisamos conseguir incluir essas pessoas", coloca.
A falta de transparência, de a
cordo com a tese de dissertação de Vanessa, confunde a população e reforça a noção de privilégio, "quando não há compreensão da população sobre os critérios, por que um ganha e outro não", em detrimento da idéia de direito, que deve ser garantido de maneira universal.
Da Agência Carta Maior