Artigo – Reforma agrária deixou de ser “coisa de comunista”

Com a queda do Muro de Berlim em 1991, acabou também o medo de muitos governos de tratar a temática da reforma agrária, carimbada anteriormente de "coisa de comunista", como mecanismo indispensável para o desenvolvimento rural. Demandas por novas políticas foram levadas a FAO, que quer agora debate ampliado em Conferência internacional
Por Verena Glass
 13/11/2005

A visão sobre a reforma agrária como um acinte ao direito de propriedade, "coisa de comunista" que, em países como o Brasil e o Chile, teve influência significativa nos processos de golpe de Estado engendrados pelas Forças Armadas com apoio das oligarquias rurais, ainda assombra o imaginário de alguns setores mais conservadores, mas já deixou de ser parte das políticas de Estado como, em muitos casos, aconteceu na época de florescência dos antigos regimes comunistas.

Desde a queda do muro de Berlim em 1991, vários países começaram a rediscutir as estruturas fundiárias como estratégia de desenvolvimento nacional, e a temática voltou a fazer parte das demandas apresentadas à Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), explica o diretor do Serviço de Reforma Agrária e Colonização do órgão, Paolo Groppo, apesar da resistência de alguns membros da ONU.

“É verdade que houve até um pedido formal de que a reforma agrária fosse retirada das competências da FAO, mas a hipótese destes que apostaram que desaparecendo o comunismo também desapareceria o debate sobre reforma agrária, se mostrou um equívoco. Nos anos 90, a FAO novamente começou a ser requisitada para elaborar projetos nesta área na África e no Leste Europeu, e até o Banco Mundial entrou na discussão, apresentando, é verdade, a reforma agrária de mercado (distribuição de terras através da compra financiada e não da desapropriação), mas ampliando o debate também em pontos como mudanças na legislação dos países. Nesse ponto específico, muitos Estados africanos pediram auxilio à FAO, em vista principalmente dos direitos dos povos originários. É verdade que a FAO recomeçou praticamente do zero, mas hoje tem muita presença no campo, infelizmente com pouquíssima visibilidade”, explica Groppo.

Sobre o embate entre a agricultura familiar e o agronegócio – entendendo-se este último como a agricultura intensiva voltada à produção e exportação de commodities -, onde os defensores da primeira acusam o segundo de predatório e fator de desagregação socioambiental, e os defensores do segundo consideram a primeira um modelo obsoleto e um retrocesso tecnológico, Groppo afirma que a FAO procura priorizar o diálogo, defendendo inclusive a importância da inserção da agricultura familiar no mercado. Mas o órgão também tem dúvidas sobre a eficiência do grande agronegócio.

“Este funciona bem em terras de primeira qualidade e como parte de todo um pacote tecnológico, que inclui máquinas pesadas, insumos e defensivos. Com a gradativa queda do valor das commodities, no entanto, e a conseqüente necessidade de aumentar a produção para garantir a lucratividade, não existem terras suficientes no mundo para sustentar este modelo. O pacote não funciona em terras de “segunda”, é como botar uma Ferrari em uma estrada de terra. O desenvolvimento rural tem que ser parte de uma discussão sistêmica, não setorial, baseado em um conceito agrosociocultural”, diz o diretor da FAO.

Sobre as perspectivas de participação dos 178 Estados esperados para a Conferência Internacional sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural da ONU, que deve ocorrem em março de 2006 em Porto Alegre, Groppo afirma que a FAO está apostando, acima de tudo, no diálogo. Segundo ele, a concepção de desenvolvimento rural sustentável está aumentando, mesmo não estando integrada, na maioria dos casos, de forma sistêmica nas políticas públicas.

Outro aspecto fundamental que deve ser debatido na Conferência é o papel dos Estados no setor produtivo. “Os governos estão perdendo espaço neste setor para as grandes transnacionais, que passaram a dominá-lo sem, no entanto, ter deveres ou assumir responsabilidades. Os países estão perdendo o controle de sua soberania e os Estados têm que reassumir seu papel. O mundo é composto por nações, e são os governos que devem ter o poder de decisão. Não estamos querendo dizer qual o papel a ser assumido, só que os Estados têm que ter um”.

Rumo à Conferência
Não só pelo fato de a proposta de realização da Conferência sobre Reforma Agrária ter partido de um ministério brasileiro – o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) -, o país, que também é o anfitrião do evento, deve ter um papel político de grande importância no evento.

Segundo o embaixador brasileiro na FAO, Flavio Perri, uma inovação desta Conferência em relação aos demais eventos da ONU será a abertura para uma ampla participação da sociedade civil. Por um lado, a FAO procurará garantir uma intervenção igualitária nos espaço de debates para as organizações da sociedade civil, que normalmente são convidadas a se colocar ao final das falas governamentais sem grande poder de influência. Por outro, também promoverá um intercâmbio entre o evento oficial e uma conferência paralela, que está sendo organizado por ONGs e movimentos sociais.

Em relação à abertura para a participação social nas definições políticas, o Brasil já se adiantou e iniciou um processo de debates com a sociedade civil, que inclui o Congresso Nacional sobre Extrativismo na Amazônia, a Conferência Nacional do Meio Ambiente, o seminário da FAO sobre experiências de desenvolvimento rural sustentável e a plenária do Condraf, que acontecem entre dezembro deste ano e março de 2006.

Já o primeiro evento deste processo, a oficina preparatória para a Conferência que reuniu, na última semana, governo, FAO e representantes dos principais movimentos sociais do campo (incluindo os étnicos e de gênero), produziu um primeiro documento, fruto de três dias de debates, que deve ser incorporado à posição oficial que o país apresentará na Conferência.

Segundo Paolo Groppo, o processo brasileiro é muito estimulante, mas será provavelmente o único desta envergadura na preparação da Conferência. “O documento brasileiro será fortemente pautado no debate com a sociedade civil, é muito bom e estimulante. Mas outros países não terão isso. Por isso vamos investir no diálogo”. E Perri adverte: “não imaginem que vamos pegar o documento brasileiro e impor aos outros. Mas vamos lutar por ele”.

No cômputo geral, avalia Groppo, a expectativa é que a reforma agrária e o desenvolvimento rural sustentável voltem a ter um papel importante nas políticas e programas da FAO. “Mas a Conferência será apenas um início. Posteriormente, precisamos de um sistema de monitoramento dos compromissos assumidos.”

Da Agência Carta Maior

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