Em dezembro de 2004, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) determinou medidas cautelares em relação aos adolescentes do complexo Tatuapé da Febem (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor) de São Paulo, acolhendo as denúncias de que havia risco iminente de danos irreparáveis aos internos. Por conta do descumprimento das medidas, o caso foi encaminhado à Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA e acolhido por ela na semana passada. O Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil), um dos peticionários, considera esse um grande marco para a abertura de um espaço de negociação entre as organizações da sociedade civil e o Estado, em relação à defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes. A primeira reunião com a Corte – em que estarão presentes representantes da CIDH, as entidades que apresentaram as denúncias e o Estado – ocorrerá dia 29 de novembro, na sede do Tribunal, na Costa Rica.
As medidas cautelares, que têm caráter emergencial, recomendavam que o Estado adotasse todas as providências necessárias para garantir a integridade pessoal e a vida dos internos, adequasse a estrutura física das unidades, investigasse e punisse os responsáveis pela prática de tortura, e que fosse permitida a fiscalização do complexo por parte das entidades de defesa dos direitos da criança e do adolescentes, que deveriam fazer visitas periódicas a serem relatadas à CIDH. As denúncias haviam sido apresentadas, em abril do ano passado, pelo Cejil e pela Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos, por causa das violações à vida e à integridade pessoal dos adolescentes no complexo Tatuapé, devido a uma série de torturas denunciadas em duas unidades, em dezembro de 2003.
Em reunião de trabalho sobre o caso, no dia 21 de outubro, em Washington, ao mesmo tempo em que o Estado pedia a suspensão das medidas cautelares, alegando já garantir as condições adequadas aos internos, as entidades solicitavam que o caso fosse enviado à Corte Interamericana porque as medidas estabelecidas pela Comissão não estavam sendo seguidas.
“No âmbito da Corte Interamericana, passa a ter um caráter mais jurisdicional. Enquanto a Comissão é mais política e faz apenas recomendações, a Corte é um órgão jurídico, um tribunal, que dá sentenças internacionais, o que demonstra melhor a gravidade do caso”, explica Eloísa Machado, advogada da Conectas Direitos Humanos, que participou da última reunião em Washington. Ela acredita que as medidas provisórias determinadas pela Corte podem ser mais efetivas, apesar de também haver poucos mecanismos para garantir o cumprimento delas.
Segundo Rita Lemy Freund, advogada do Cejil, não só as medidas cautelares determinadas pela Comissão não foram cumpridas pelo Estado como a situação da Febem ainda piorou muito nesse ano. Um dos motivos, de acordo com a advogada, foi a “demissão irresponsável” de 1.751 funcionários em fevereiro, que depois foram readmitidos por decisão da Justiça. Outra razão são as novas denúncias de tortura no complexo Tatuapé, cujas marcas nos adolescentes puderam ser constatadas nas três visitas que o Cejil conseguiu fazer, agravadas pelo fato de nenhuma ação penal ter sido proposta contra funcionários da instituição esse ano. Além disso, outro problema grave, é que funcionários do sistema penitenciário estão sendo contratados para trabalhar na Febem. Nesse ano integrantes do Grupo de Intervenção Rápida (GIR), criado no sistema prisional para conter rebeliões e grandes motins, começaram a intervir na Febem, normalmente encapuzados. Os adolescentes denunciam que eles têm atuado não só para conter rebeliões como também para agredir os internos, às vezes sem nenhum motivo.
“A CIDH também havia determinado que as medidas fossem tomadas pelo Estado com consulta aos peticionários e outros interessados, mas isso nunca foi feito, pois eles nunca abriram o diálogo”, diz Rita. Além disso, a Febem passou a impedir a entrada de organizações da sociedade civil, a não ser daquelas que realizam projetos dentro da instituição, medida que impossibilitou a fiscalização e, assim, aumentou os riscos para os adolescentes. Esse foi um dos argumentos utilizados em relação ao descumprimento das medidas cautelares. As entidades presentes na reunião apresentaram à comissão provas de que o Estado não está cumprindo as medidas cautelares como fotos, laudos médicos e relatórios de visita às unidades do Complexo do Tatuapé.
Também foram levadas ao conhecimento da CIDH, para demonstrar a dimensão da omissão do Estado frente a esses jovens, as mortes de três internos ocorridas desde o início do ano no complexo Tatuapé e a de um que havia sido transferido ao presídio de Tupi Paulista. Na primeira delas, em janeiro, um adolescente caiu do telhado durante uma rebelião, em que há suspeitas de que tenha sido incitada por funcionários da Febem, insatisfeitos com a prisão de alguns colegas acusados de maus-tratos aos internos. O segundo caso, em fevereiro, diz respeito a um adolescente que foi espancado por outros internos. Também suspeita-se que foram os próprios funcionários que entregaram a chave do seguro para os internos, em protesto relativo à demissão coletiva ocorrida na época. A terceira morte, em março, ocorreu após uma rebelião. Um dos adolescentes fugiu da Unidade 4 do Complexo Tatuapé e foi torturado e executado no mesmo dia, com seis tiros.
Enquanto as entidades relatavam torturas e mortes, com a apresentação de diversas provas, o Estado afirmava que vem tomando diversas providências para alterar a situação denunciada, mas não mostrou medidas imediatas e efetivas. O representante do governo estadual apenas mencionou propostas a longo prazo e mostrou projetos de computação gráfica de como serão as novas unidades da Febem que eles pretendem construir.
Na audiência pública na Costa Rica, no dia 29 de novembro, a Corte Interamericana irá ouvir os argumentos das partes, informar-se sobre os detalhes dos fatos e especificar as ações que devem ser realizadas pelo Estado. Por enquanto, as medidas provisórias concedidas pela Corte, à pedido da Comissão, determinam que o Estado tome providências urgentes para proteger a vida e a integridade pessoal de todos os adolescentes internados no complexo do Tatuapé da Febem, bem como de todos os indivíduos que estejam no interior do estabelecimento.
Da Agência Carta Maior